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CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO
Exclusivo: Entrevista com Wendy Goldman sobre as mulheres na Revolução Russa
Redação

Publicamos entrevista feita por Natália Angyalossy, das Edições Iskra, à Wendy Goldman, historiadora norte-americana, autora do livro "Mulher, Estado e Revolução", publicado no Brasil em 2014 pelas Edições Iskra e a Boitempo Editorial. O livro contou com prólogo de Diana Assunção.

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Natália Angyalossy: Em 2017 comemoramos o centenário da Revolução Russa. Na sua visão, qual foi a importância dessa revolução?

Wendy Goldman: Em outubro de 1917, os sovietes alcançaram o poder, e assim substituíram o Governo Provisório que assumiu o poder após a abdicação do czar. Os sovietes foram os primeiros órgãos democraticamente eleitos da Rússia que representavam os trabalhadores. Eram um exemplo de “democracia direta”, pela qual os delegados dos sovietes respondiam diretamente aos trabalhadores, camponeses e soldados no front que os elegiam como representantes.

A Revolução Russa foi a primeira na qual trabalhadores tomaram o poder e conseguiram exercê-lo no país inteiro. Eles imediatamente se voltaram à tarefa de mudar as relações de propriedade e controle, e de criar um novo modo de vida que beneficiaria os trabalhadores. Os camponeses tomaram a terra da nobreza e a redistribuíram de acordo com o tamanho das famílias. Operários tomaram fábricas. As pessoas começaram a repensar a organização da vida em todas as suas esferas de forma mais livre. Houveram muitos experimentos fascinantes com o planejamento econômico, o direito, a educação, a arte, e também mudanças básicas na vida material.

No final da década de 1920, o Estado Soviético lançou o primeiro plano quinquenal, direcionado à industrialização e o desenvolvimento do país. Foi o primeiro exemplo de tal desenvolvimento que não era submetido ao capital estrangeiro e aos interesses de classe da elite.

A importância da Revolução Russa é que ela traz muitas lições a nos ensinar hoje. Devemos nos perguntar: Onde erraram os revolucionários? Por que o Stalinismo surgiu de uma revolução com ambições democráticas? E como pode se gerir melhor o desenvolvimento entre a cidade e o campo? A Revolução Russa deve ser estudada por todos que tem interesse em construir um futuro melhor que não é controlado pelo princípio do lucro. As ideias do planejamento são particularmente interessantes para as milhões de pessoas que tem sofrido com as crises econômicas cíclicas que são endêmicas do capitalismo, e a destruição do meio ambiente.

Edição brasileira de "Mulher, Estado e Revolução", de Wendy Goldman.

NA: Em seu livro, “Mulher, Estado e Revolução”, você traça um panorama histórico das conquistas que as mulheres obtiveram no período pós-revolução. Em sua opinião, quais foram as principais conquistas?

WG: Os Bolcheviques alcançaram o poder com um programa básico de libertação feminina que se baseava em quatro princípios: união livre, emancipação da mulher através da independência econômica, socialização do trabalho doméstico, e o gradual e inevitável desaparecimento da unidade familiar patriarcal.

Imediatamente instituíram esse programa na lei. Foi o primeiro país a estabelecer plena igualdade jurídica entre homens e mulheres, divórcio sem culpabilidade, e aborto legal e gratuito em hospitais e clínicas. A década de 1920 foi um período difícil com alta taxa de desemprego, muitas crianças sem lar e uma economia em ruínas em decorrência dos longos anos de guerra e guerra civil. Mas em 1930, com a adoção do primeiro plano quinquenal, a economia havia se recuperado e houve o fim do desemprego pelo país todo. Mulheres ingressaram no trabalho [fora de casa] em números recordes. Pessoas começaram a estudar e aprender. Camponeses se tornaram operários, trabalhadores não-qualificados se tornaram qualificados e trabalhadores qualificados se tornaram engenheiros e administradores.

Foi um período de grande oportunidade e mobilidade social. Em nenhum outro país as mulheres ingressaram no trabalho assalariado industrial em tão pouco tempo. Brigadas de mulheres estudavam quais funções nas fábricas e minas poderiam ser executadas por mulheres. Se propuseram a abrir postos de trabalho semiqualificados e qualificados para mulheres, que eram antes reservados só para homens. Foram bem sucedidas em romper muitas barreiras no mundo do trabalho. Cantinas públicas, creches, e lavanderias foram criadas para socializar o trabalho doméstico. Relações sociais entre homens e mulheres começaram a mudar.

NA: Como foi possível, em um país saído de uma guerra, de maioria camponesa e com altos níveis de pobreza, alcançar tamanhas conquistas? Qual o papel do partido bolchevique nesse processo?

WG: Devemos entender que a União Soviética não foi sempre bem sucedida em seus esforços. Os obstáculos como a pobreza, a baixa escolaridade, o alto desemprego, a economia arruinada da década de 1920, o patriarcado e as relações fundiárias camponesas, e a falta de recursos do Estado, tornaram a realização de muitos ideais muito difícil.

O Partido Bolchevique cumpriu um papel nesse processo, mas o Partido em si não era uma entidade monolítica. Era composto por membros que tinham seus próprios preconceitos e perspectivas. O papel mais importante para avançar nas pautas das mulheres trabalhadoras foi realizado pelas próprias trabalhadoras e camponesas do Partido Bolchevique, que conheciam as dificuldades que as mulheres enfrentavam. Mulheres como Aleksandra Artiukhina e Klavdia Nikolaeva, mulheres que, sob o czar, foram trabalhar ainda na infância, que vieram da pobreza: filhas de operárias têxteis e lavadeiras. Essas militantes agitaram, dentro do Partido, pela criação de uma organização separada para mulheres e pelos direitos e oportunidades para as mulheres.

Os homens, na direção, nos vilarejos e no chão das fabricas eram frequentemente hostis a essas demandas. Mas essas mulheres entendiam que a liberdade nunca é dada, ela é conquistada, inclusive pelas mulheres. Embora o Partido oficialmente tinha acordo com a libertação feminina, as mulheres militantes tiveram que lutar para levar suas demandas ao Partido.

O Partido era uma organização muito grande com vários níveis de liderança, das instâncias primárias do Partido até o nível dos distritos, províncias e da Republica. Teve centenas de milhares de membros (quase 990.000 em 1927) que tinham níveis de consciência muito variados. Oficialmente, o Partido tinha um programa muito progressista. Mas isso não significa que homens, em particular os trabalhadores e camponeses, inclusive lideranças locais, sempre tratavam as mulheres e as questões femininas com respeito. Lenin ajudou a desenvolver um programa progressista, mas como você sabe, ele não era o único militante do Partido. Haviam muitos níveis de liderança e muitos militantes. Como qualquer organização, até aqueles que aderiam ao programa progressista, o Partido tinha suas disputas internas e tinha camaradas que não sempre simpatizavam com as lutas das mulheres.

NA: Em meados da década de 1920, alguns retrocessos começaram a acontecer no que tange às conquistas das mulheres. Quais foram essas e porquê você avalia que tais retrocessos aconteceram?

WG: Os principais retrocessos decorreram do altíssimo nível de desemprego feminino durante a primeira década após a revolução e da fome de 1921. A fome, junto à ruína econômica e à destruição dos longos anos de guerra, produziram milhões de crianças órfãs. Embora o Estado pretendesse socializar a reprodução social e criar lares e orfanatos para as crianças, não havia meios para realizar isso.

O primeiro retrocesso programático veio no começo da década de 1920 quando o Partido decidiu incentivar camponeses a adotar as crianças. A princípio isso tinha sido proibido para evitar que os camponeses usassem as crianças como mão-de-obra gratuita. Outros problemas ocorreram devido à alta taxa de desemprego feminino acoplado à facilidade do divórcio. Mulheres desempregadas foram forçadas a entrar na prostituição. Isso foi tido como a grande vergonha da revolução.

NA: Quais lições as mulheres que lutam por igualdade hoje podem tirar da Revolução Russa?

WG: Existem muitas lições importantes que podemos tirar. Primeiramente, o programa revolucionário dos Bolcheviques conteve muitas ideias que valem ser estudadas, em especial o conceito de emprego pleno como um direito, independência financeira, e a socialização do trabalho doméstico. As mulheres na maioria dos países hoje não tem acesso aos restaurantes públicos; creches boas e plenamente financiadas pelo Estado; lavanderias; e outros serviços que as libertariam do fardo do trabalho doméstico.

Na última vez que eu fiz uma palestra no Brasil, duas empregadas domésticas me abordaram. Elas se empolgaram muito com o programa de socializar o trabalho doméstico para todas as mulheres. “Por quê”, elas perguntaram, “as mulheres pobres devem limpar os lares dos ricos?”

Acesso livre ao aborto e a métodos contraceptivos seguros são importantes direitos. As mulheres devem ter controle sobre seus próprios corpos para se realizarem plenamente enquanto seres humanos iguais aos homens. A escolha livre de matrimônio e parceria é crítica. Mulheres e homens devem ser livres para escolherem seus parceiros com base no respeito mútuo e amor, e devem ser livres para dissolver um relacionamento se ele não mais se sustenta sob essas bases.

Segundo, as militantes Bolcheviques nos mostraram que o poder nunca é cedido às pessoas por aqueles que o detém. Elas tiveram que lutar pelos direitos das mulheres dentro e fora do Partido. E nunca foi fácil. Suas lutas ficam como uma lição para todos que lutam por um mundo melhor.

 
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