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HOMENAGEM A DRUMMOND
30 anos sem Carlos Drummond de Andrade, poeta de Itabira e do mundo
Vanessa Dias

Ao se completarem 30 anos da morte do poeta Carlos Drummond de Andrade, sua obra permanece como um patrimônio de incontáveis maravilhas em nossa literatura. Com seu jeito simples, mostrou que a genialidade poética está nas pequenas e grandes coisas. De Itabira ao vasto mundo. Dos bois que veem os homens às batalhas em defesa da União Soviética.

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Tendo ainda em vida se tornado um consagradíssimo poeta brasileiro, reconhecido pela academia, pela imprensa, pelas grandes instituições – mas também pelas pessoas de pé no chão que encontravam algo que lhes tocasse em sua poesia – Drummond jamais perdeu seu jeito simples de quem escreve porque quer, porque precisa, e nada mais. Nem fortuna, nem vaidade lhe marcaram a trajetória de poeta.

Vindo de família tradicional de Itabira, no interior de Minas Gerais, Drummond elegeu a vida pacata de funcionário público no Rio de Janeiro como o seu ganha pão. E, assim, com “muito papel e tempo” à disposição, como ele mesmo dizia, escreveu uma monumental obra poética. Não foi nenhum cultuador da “última flor do lácio”, como o “príncipe dos poetas” Olavo Bilac. Fez da poesia seu instrumento de narrar, perguntar, atuar sobre a vida, indo das questões políticas e concretas da vida dos homens às especulações metafísicas que coçavam em sua alma. Apesar de ter ficado mais conhecido como poeta, Drummond escreveu também contos e crônicas que merecem ser lidos.

É tão difícil falar de Drummond em poucas palavras porque sua obra não se rende fácil a definições pétreas. Tentando aprisionar o poeta em fórmulas fáceis de livros didáticos, apostilas e vestibulares lhe definiram de forma rasa e simplória, pasteurizando seus poemas. O “poeta pessimista”, o “gauche”, diziam alguns. Sim, nos poemas de Drummond ele viu a dureza da vida, sua própria inadequação. Em seu já canônico “poema de sete faces”, do livro “Alguma Poesia” (1930), Drummond fala do “anjo torto” que disse “Vai, Carlos! Ser gauche na vida”. O “gauche” (esquerda, em francês), termo já em desuso, falava dos estranhos, dos deslocados, dos arredios. A inquietação de Drummond estava nas suas palavras, e sua poesia era também o espelho do gauche, que se via por muitas faces: “O homem atrás do bigode/ é sério, simples e forte./ Quase não conversa./ Tem poucos, raros amigos/ o homem atrás dos óculos e do bigode.” A timidez se esvaia em versos.

Seus versos iam do coração para o mundo, e de lá para o homem de novo. Em um de seus mais célebres livros, “A Rosa do Povo”, de 1945, Drummond mergulhou com ímpeto nos conflitos de seu tempo, e tomou partido claro: seu lado era o dos que eram explorados, dos que nada tinham, dos que lutavam contra a injustiça. No conhecido poema “A Flor e a Náusea” ele faz alusão às suas primeiras inquietações, como no episódio em que ainda menino, em 1918, fora expulso da escola autoritária com a pecha impingida a ele de “anarquista” pela direção.

Nesse poema, como em todo esse livro, Drummond grita o desespero de quem vê o mundo injusto e desigual, mas sabe que se suas belas palavras podem falar dele, não podem, contudo, muda-lo. Disse Drummond: “Melancolias, mercadorias, espreitam-me./ Devo seguir até o enjôo?/ Posso, sem armas, revoltar-me?”. Sua revolta está ali, nas palavras que até hoje ressoam com as inquietações que encontram nossos sentimentos e se fundem com eles. Com Drummond, contemplamos um mundo horrível e, no entanto, alimentamos uma esperança: “Não, o tempo não chegou de completa justiça./ O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera./ O tempo pobre, o poeta pobre/ fundem-se no mesmo impasse.” Sua esperança, a de uma flor “feia” mas “realmente uma flor”, que brota do asfalto, traduz o sentimento que ainda hoje, em um tempo de fezes e maus poemas, alimentamos em nossa luta.

A melancolia de Drummond não derrubava seus poemas, suas palavras persistentes. Ele falava sobre “a pedra no meio do caminho” que na vida de suas retinas fatigadas nunca se esqueceria, e de José, para quem a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou... mas, que, no entanto, não morre, porque é duro. À poesia de Drummond, não terei a pretensão mesquinha de reduzir em definições ridículas que deixariam escapar tudo. Mas posso dizer que em minha vida tantas vezes me acompanhou com sua dureza e sua ternura. Com a sobriedade do funcionário público itabirense, e com os sonhos de um poeta que vê a imensidão do mundo, ele consegue traduzir a pequeneza e a imensidão que nos criam e nos matam a cada dia. Assim, ora ele diz “mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é meu coração”, sentindo caber dentro de si todas as coisas que existem na imensidão de sua poesia, ora se depara com a sua impotência, de suas pequenas mãos e de sua poesia diante da crueza desse mundo, e diz: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”.

Em suas décadas de poesia Drummond falou de tanta coisa. Não apenas do sentimento do mundo, mas de sua infância, de seus amores. De tantos amores. Falou da revolta dos homens e de suas lutas. Como nos versos inesquecíveis dos poemas d’A Rosa do Povo, Drummond quis lutar. Drummond, em sua veia política, nunca teve a verve de ser “homem de gabinete”. Como escreveu: “As leis não bastam./ Os lírios não nascem da lei./ Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra.” Quis sair também de apenas palavras e ir à ação, e assim ingressou no PCB em 1945 e tornou-se editor do jornal “Tribuna Popular”. A relação com o partido durou pouco, tendo permanecido como membro de maio a novembro daquele ano, porque ele não se enquadrava regime burocrático e de imposições sem discussão do stalinismo que já dominava há muito o partido de cima a baixo. A concepção artística única e estéril do realismo socialista já estava imposta como dogma desde 1934, e não é preciso ir muito longe para vermos que Drummond não se encaixa nem remotamente em tal doutrina artística estéril.

Contudo, uma das principais divergências de Drummond que o levou à ruptura com o PCB não foi por suas concepções artísticas, mas sim pelo apoio que o partido deu à Vargas em 1945, após ter perseguido, torturado e colocado na ilegalidade os comunistas, e exilado para a Alemanha nazista a dirigente Olga Benário Prestes, onde essa permaneceu em um campo de concentração até sua morte.

É bastante provável que a relação de Drummond com aquilo que conheceu como a representação do comunismo – o PCB dominado pelo stalinismo – tenha contribuído decisivamente para que se afastasse da atuação política. Em seus livro derradeiros, a paixão pela luta social e pelos conflitos de uma sociedade injusta cedem espaço para as inquietações mais subjetivas, metafísicas e amorosas.

Drummond morre em 1987, deixando uma obra sem igual como sua herança para a humanidade. Em uma entrevista derradeira, Drummond oferece um retrato de como enxergou a recepção de sua obra, e que podemos entender como uma feliz expressão de que ela não se assentou ao “uso didático” lamentável de poetas engessados como Bilac, ou como uma triste expressão de que a obra de Drummond, com toda sua maravilha, continua sendo – como no momento dessa entrevista – algo tão distante das massas que deveriam poder desfrutá-la plenamente:

Nenhum poema meu ficou popular. A verdade é essa. Considero popular, nas gerações antigas, o "Ouvir Estrelas", de Olavo Bilac; o "Mal Secreto", de Raimundo Correia; "Meus Oito Anos", de Casimiro de Abreu; "A Canção do Exílio", de Gonçalves Dias. São dois ou três. Nenhum outro fica. Geralmente são poemas pequenos que a memória guarda com mais facilidade. De mim, ficaram versos. "E agora, José?" não é verso; é uma frase. "Tinha uma pedra no meio do caminho" — e só. Não creio que tenha ficado nada mais. Não houve poema meu propriamente popular. Em geral, as pessoas guardam a imagem do poeta, mas não guardam o verso, até porque a maior parte dos poemas é em verso livre. Não são metrificados nem rimados. Então, é mais difícil guardar

Tudo o que posso esperar dessas breves linhas é que expressem um pouco da importância que vejo nesse que é para mim um dos maiores, e que inquiete alguns leitores a descobrirem por si mesmos a incrível poesia de Drummond. E deixo-lhes com o poema “Mãos Dadas”, do livro “Sentimento do Mundo”, de 1940:

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

 
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