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CRÔNICA
[CRÔNICA] Da felicidade no cotidiano desumano à ambição de desfrutar a vida plenamente
Zuca Falcão
Professora da rede pública de MG

A praia tem um significado de liberdade muito mais profundo do que se possa imaginar. Não só de um horizonte sem limites nem só de blocos de pedra gigantes que nos fazem sentir minúsculos. E nem só das pipas que bailam lindas no ar como certamente gostaríamos de estar, nem só da criança que ignora a imensidão do mar e joga seu corpinho delgado em meio à ondas muitas vezes maiores que ela, com a certeza que as crianças tem de que podem chegar onde quiserem...

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A praia tem um significado de liberdade muito mais profundo do que se possa imaginar. Não só de um horizonte sem limites nem só de blocos de pedra gigantes que nos fazem sentir minúsculos. E nem só das pipas que bailam lindas no ar como certamente gostaríamos de estar, nem só da criança que ignora a imensidão do mar e joga seu corpinho delgado em meio à ondas muitas vezes maiores que ela, com a certeza que as crianças tem de que podem chegar onde quiserem...

Agora eu observava a companheira que minutos antes dividia comigo um espaço pra tomar sol na pedra e as reflexões sobre viver uma vida cheia de contradições que nos impedem de desfrutá-la plenamente. Eu observava a sua felicidade em estar no mar, como se aquele momento arrancasse à força todo o sofrimento do qual falávamos pouco antes. Corri os olhos pela praia e pude observar como todas as pessoas ali estavam felizes e plenas, a maioria esmagadora com cara de gente simples, trabalhadora, a maioria esmagadora negra. O vendedor que apesar do seu posto de trabalho informal que talvez não lhe desse mais do que a garantia do sustento naquele dia sorria e brincava, fazia seu trabalho brincando. As adolescentes negras que apesar de todo o sofrimento que essa sociedade reserva à mulher negra desde a mais tenra idade, davam gargalhadas e brincavam tentando se equilibrar na pedra ao meu lado. A mulher passeando com o cachorrinho, os dois felizes e tranqüilos em um dos lugares que talvez seja um dos poucos no Rio de Janeiro em que se pode ter a tranqüilidade de caminhar. As três criancinhas negras que brincavam com seu baldinho na areia, muito bem protegidas por um adulto que provavelmente fosse o pai, e foi nesse momento que eu chorei. Eu chorei quando me dei conta de que aquelas três crianças tão lindas, felizes e despreocupadas poderiam ter um dia, antes mesmo de chegar à adolescência, o destino cruel que muitas crianças já tiveram naquela cidade, de ter seus sonhos interrompidos por um tiro da polícia racista e assassina, sob a desculpa descarada da bala perdida.

O vento que soprava fez o enorme favor de jogar meu cabelo para esconder as lágrimas que escorriam como um rio, enquanto eu pensava em como todas aquelas pessoas tinham o direito de viver essa felicidade plena todos os dias de suas vidas e que a praia não deveria ser um refúgio, um momento de fuga, um espaço e contexto isolados onde se pode ser feliz por algumas horas, onde as mocinhas negras podiam se afastar por um momento da cultura de objetificação dos seus corpos que às vezes só querem brincar, eu pensava em como queria abraçar aquelas crianças e não deixar que nada de mal acontecesse nunca com elas, mas elas são milhares e não cabem todas nos meus braços, e eu pensei então como era tão necessário e urgente algo que permitissem que todas elas sejam abraçadas e estejam um dia em segurança. E eu senti muito forte a necessidade de lutar para que um dia possamos viver a vida em toda sua plenitude, desfrutando de toda a felicidade a qual temos direito. Eu senti a convicção da necessidade de lutar pelo fim dessa sociedade dividida em classes e baseada na exploração e de construir um mundo onde não tenhamos momentos isolados de liberdade mas onde sejamos totalmente livres, como disse Rosa Luxemburgo, que nunca deve ter pisado no Rio de Janeiro mas que compreendia e nos ensinou que na Alemanha e espalhada por todas as partes do mundo existe uma classe que vive cativa e que precisa e vai se libertar.

Vendo aquele povo maravilhoso que consegue arrancar momentos de felicidade plena no fio da navalha que é o Rio, onde tanques de guerra desfilam em um dia comum pelas avenidas, onde um fuzil na cara é uma cena cotidiana, onde filhos de juízas ficam livres após serem surpreendidos com quilos de drogas enquanto Rafael Braga está preso desde 2013 por portar uma garrafa de Pinho Sol (!), onde a polícia racista assassinou Maria Eduarda dentro da escola, eu senti a plena convicção de que não dá mais pra aceitar as migalhas que nos oferece esse sistema, e o povo do Rio me deu uma lição de que, se eles tem a força pra forjar momentos de felicidade e liberdade em meio ao cotidiano desumano que é imposto pelo governo daquele estado, podemos forjar coisas muito mais grandiosas e devemos ambicionar, no mínimo, desfrutar a vida em toda sua plenitude.

E assim eu saí caminhando, ao lado da companheira que com muito sofrimento deixou o mar, retomando as reflexões sobre a necessidade de destruir esse mundo cheio de contradições e construir um mundo novo, um mundo que vai ser construído com a força daquelas pessoas simples que estavam na praia. Eu caminhava e observava como as minhas pegadas se juntavam às centenas de pegadas que aquelas pessoas deixavam e como era bonito as marcas de todos nós caminhando juntas, como um exército de oprimidos que marcha, abrindo caminho no peito e construindo o próprio futuro, sendo sujeito da sua luta. Então eu pensei: Trotsky tem razão, a vida é bela.

 
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