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ESCRAVIDÃO DO LAR
Rodrigo Hilbert, divisão das tarefas domésticas e a emancipação das mulheres
Ítalo Gimenes
Mestre em Ciências Sociais e militante da Faísca na UFRN

Rodrigo Hilbert, “homão da porra” das redes sociais, cozinha, faz tricô (e até robôs, brincam), além de dividir as tarefas domésticas com sua esposa. Seria ele um exemplo da possibilidade de emancipação das mulheres através da ressignificação dos costumes no capitalismo? A simples divisão de tarefas do lar garantem uma igualdade entre os sexos perante a vida? Veja o que uma importante história da luta das mulheres trabalhadoras nos ensina sobre isso.

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Nos últimos dias a internet trouxe à tona a discussão sobre a divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres após jornalistas pedirem para alguém parar o ator global e “galã” Rodrigo Hilbert, estaria sendo reivindicado pelo seu “perfil homem moderno”, através da simples divisão de tarefas domésticas e cuidado dos filhos.

Ao saber dessa pensei nas discussões apresentadas pela revolucionária Wendy Goldman a respeito da divisão das tarefas domésticas e a igualdade perante a vida.

Está longe das minhas intenções negar a real necessidade de que um casal que decidiu por uma vida compartilhada (inclusive LGBTs), tenha a obrigação de dividir, sem distinção de gênero, as tarefas que lhes cabem: cozinhar, lavar a louça, varrer, passar pano, cuidar dos filhos. Porém, é fato que realidade da maioria das mulheres ainda hoje é a de sujeição aos mandos do marido – além dos perturbadores casos de violência contra a mulher – e de responsabilidade perante às tarefas domésticas, realidade que os setores políticos dos mais reacionários, como Bolsonaro, defendem ainda neste século ser a “ordem natural” das coisas.

Dessa forma, naturaliza-se no conjunto social a dura realidade da dupla jornada de trabalho diária que cumprem as mulheres, coisa que existe desde a entrada da mulher no mercado de trabalho. Além de cuidar da casa e dos filhos, a mulher também sustenta a família. Acorda cedo, perde horas no ônibus o serviço, em geral precarizado, como serviços de limpeza, atendimento, mal remunerados, e ainda recebe menos que o seu colega de trabalho homem. Chegando em casa, tem mais serviço, cuidar da casa, só que sem remuneração por isso. Como diriam o revolucionário Leon Trotsky, trata-se de uma verdadeira “escravidão do lar” para as mulheres.

Não pude deixar de relacionar essa discussão sobre a divisão das tarefas domésticas com o que as mulheres comunistas escreveram sobre os avanços trazidos aos direitos das mulheres russas após a revolução de 1917 ter erguido um governo de trabalhadores e trabalhadoras, que teve nos seus primeiros momentos um dos mais progressistas Códigos Civis em relação aos direitos das mulheres combinado a socialização dos cuidados da família. A pergunta que tentaremos responder com ajuda de parte do livro “Mulher, Estado e Revolução”, de Wendy Goldman é se a simples divisão das tarefas domésticas de forma igualitária entre os sexos é o bastante para emancipar as mulheres da dominação patriarcal e eliminar a cultura machista no capitalismo.

A situação da mulher trabalhadora na Rússia pré-revolucionária

No final do século XIX, o processo de industrialização da Rússia foi criando no país uma mão de obra fabril feminina sub-remunerada e expandida quando o país entrou na Primeira Guerra Mundial. O capitalismo havia introduzido a mulher ao mundo da produção coletiva, tornando-a um assalariado (ou sub-assalariada), mas que permitiu uma relativa independência econômica em relação ao seu cônjuge. Porém, a família manteve, como faz até hoje, seu funcionamento enquanto uma “pequena empresa”, onde no âmbito supostamente privado, doméstico, o capitalismo impunha uma produção natural de serviços para garantir a reprodução da força de trabalho (alimentação, higiene e geração da prole).

À medida que os salários dos homens caíam, as mulheres com maridos empregados se viam forçadas a encontrar trabalho. Sem estímulo à capacitação e um salário ainda mais rebaixado, a mulher muitas vezes substituía a mão de obra masculina, como forma de aumentar o lucro dos patrões e de manter certo nível de dependência material em relação ao homem, à família. Além disso, seguia responsável pelas tarefas domésticas, caracterizando uma segunda jornada de trabalho sem remuneração, ou como diriam os bolcheviques, uma “escravidão doméstica”.

Ao mesmo tempo, as leis a que diziam respeito à família e à união entre homens e mulheres eram marcadas por fundamentos do catolicismo ortodoxo que sacramentava o império russo, de modo que a família cumpria o papel de selar pela lei a divisão sexual do trabalho e as formas de dominação masculina. Nesse sentido, a mulher carregava um status legal inferior aos homens que se expressava em relações de propriedade. Como explica Wendy Goldman, permitia-se “o divórcio somente em casos de adultério (...) impotência, (...) ou prolongada ausência de um cônjuge.” A lei previa que a esposa devia obediência completa ao marido enquanto “chefe do lar”, a viver com ele, carregar seu sobrenome e assumir a sua posição social. Para trabalhar, estudar, receber um passaporte que dava acesso ao transporte ao trabalho, a mulher necessitava da autorização do seu marido. Em troca, o marido devia sustenta-la e “viver com ela em harmonia, respeitá-la e protege-la, perdoar as suas insuficiências e aliviar suas debilidades”

A visão Bolchevique sobre o trabalho doméstico, o direito ao aborto e o Código da Família

O revolucionário russo, um dos seus principais dirigentes, Leon Trotsky, nos resume a mentalidade dos bolcheviques, homens e mulheres trabalhadores, a respeito do papel da revolução de outubro para dar rumo a completa emancipação da mulher:

"A Revolução de Outubro inscreveu em sua bandeira a emancipação da mulher e produziu a legislação mais progressista na história sobre o matrimônio e a família. Isso não quer dizer, no entanto, que imediatamente a mulher soviética conquistou uma “vida feliz”. A verdadeira emancipação da mulher é inconcebível sem um aumento geral da economia e da cultura, sem a destruição da unidade econômica familiar pequeno-burguesa, sem a introdução da elaboração socializada dos alimentos e sem educação"

No ano de 1918, as trabalhadoras e trabalhadores russos deram pela única vez na história uma resposta, ainda que incompleta, à situação a dupla jornada de trabalho feminina, à chamada escravidão doméstica. Para estes revolucionários, uma sociedade comunista não seria possível sem a emancipação completa da mulher, não apenas perante a lei, mas também perante a vida. Ou seja, não bastavam novas leis que garantissem a igualdade de direitos às mulheres, como o direito ao divórcio, ou ao aborto (na época, único lugar onde foi legalizado).

Com a criação de formas de transferir ao máximo as tarefas domésticas para fora de casa, que garantissem a participação pela das mulheres da produção econômica, como creches, restaurantes e lavanderias públicas, os bolcheviques queriam garantir a independência econômica das mulheres em relação aos homens, criando condições para a relações igualitárias entre os sexos, um amor sem entraves materiais. Mas para isso, também eram necessárias leis de caráter provisório, que permitissem uma igualdade legal entre os sexos enquanto as relações de igualdade perante a vida ainda não estivessem instaladas.

Em primeiro lugar, os bolcheviques legalizam o aborto, coisa que nem mesmo diversas nações modernas o fizeram até os dias de hoje. Na Rússia pré-revolucionária, diversos juristas progressistas buscaram por muitos anos reformar as leis russas sobre a família no sentido de pelo menos substituir o casamento religioso pelo civil. Porém, foram apenas os bolcheviques após a vitória dos trabalhadores e trabalhadoras soviéticos na Revolução de 1917 que, com apenas dois breves decretos, puderam fazer essa mudança e permitir a liberdade de divórcio para ambos os sexos.

Com a criação do Código da Família, do Casamento e da Tutela, os bolcheviques criaram a legislação familiar mais progressista que o mundo moderno já havia visto. Foi o primeiro código a eliminar o status legal inferior da mulher, criando pela primeira vez a liberdade perante a lei. O casamento religioso, ainda que continuasse existindo, não possuía mais status legal por si só, mas apenas o casamento civil, que também passou a garantir o livre pedido de divórcio, sem necessidade de qualquer justificativa, ampliando as garantias de pensão alimentícia para o homem e para a mulher. Passou-se a existir obrigações familiares independentes do casamento, que davam maior amparo tanto às mulheres quanto aos seus filhos.

Esses são alguns dos muitos exemplos históricos que demonstram que a real emancipação das mulheres não vira por saídas individuais, como alguma personalidade global dividindo as tarefas domésticas com as mulheres, mesmo isso sendo uma postura correta daqueles que querem se solidarizar a luta feminista. No caso do Rodrigo Hilbert, é ainda mais evidente essa impossibilidade, visto que ele e sua esposa empregam duas mulheres negras para passear com seus filhos, algo exclusivo à elite do país e que também explora a força de trabalho das mulheres em condições precárias.

Não vira também por criação de leis, por mais fundamentais que elas signifiquem em termos de igualdade de direitos, de direito ao corpo, como a essencial luta pela legalização do aborto. Essas conquistas e avanços tem que servir para fomentar a organização das mulheres entorno da luta pela emancipação das mulheres de toda a sociedade que rompa com o sistema capitalista, que se beneficia da sua condição desigual perante a vida para aumentar a exploração.

Uma sociedade socialista, que dá cabo à exploração do trabalho, é a única capaz de dar condições que acelerem o processo emancipatório das mulheres e de toda a humanidade.

 
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