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UMA HOMENAGEM AOS 73 ANOS DE CHICO BUARQUE
Chico Buarque e a Revolução dos Cravos
Nelson Fordelone Neto

Publicamos artigo em homenagem aos 73 anos de Chico Buarque com uma análise da música "Tanto Mar" e a relação entre a música popular e seus diálogos com a poesia na história do Brasil.

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O presente trabalho propõe colocar em evidência a reflexão sobre a música popular em seus diálogos com a poesia na história do Brasil. O impulso de transmitir alta poesia através do canto, na língua portuguesa, tem origem nos trovadores provençais, inclusive em forma de redondilhas. José Miguel Wisnik aponta que no Brasil este movimento se dá mediante uma confluência entre a cultura letrada e a iletrada, ou entre o erudito e o popular, lembrando que os trovadores consideravam seu fazer uma “ciência alegre”.

Em um país de vasto analfabetismo (funcional), um problema para os artistas é como difundi-la. Ao mesmo tempo, no plano do indivíduo a apreensão cultural se torna uma questão permanente, impossível de “enciclopedizar”. Ainda segundo Wisnik, no Brasil a cultura oral passou para meios audiovisuais, sem uma vida cultural baseada em publicações. A música popular apareceria como possível ponte entre a literatura e o repertório dos alunos.

O compositor, especialmente o popular, fala sobre o seu mundo conhecido e como Vinicius de Morais e Tom Jobim, poetas e músicos eruditos brasileiros passam a transitar pelo universo musical popular, o que é interesse central de tal trabalho. Ambos frequentavam a casa de Sérgio Buarque de Holanda, arquicélebre historiador e pai de Chico Buarque, compositor de várias músicas como a ”Tanto Mar”, gravada em 1978.

Foi bonita a festa, pá

Durante os anos 60, todas as colônias africanas pertencentes aos países europeus se encontravam em processo de luta para descolonização. Para mantê-las sob seu domínio, o governo Português destinou esforços econômicos e militares, algo difícil para um país com poucos recursos, e que levou a um aumento das contradições sociais.

Na guerra, jovens de classe média eram forçados a um serviço militar de quatro anos, com ao menos dois de serviço ativo na África. Os esforços militares representavam mais de 46% dos gastos do Estado. Entre 1973 e 1974 chegaram a fazer uma greve com mais de 100 mil trabalhadores e dezenas de manifestações contra a guerra na África. Na noite do dia 24 de abril, foi dado na rádio católica portuguesa o sinal para o início da revolução.

Os militares que encabeçavam o movimento ocuparam postos estratégicos e deram ordens para que a população permanecesse em suas casas, porém estudantes e mulheres saíram às ruas para decidir seu próprio destino, em oposição aos militares que pretendiam apenas substituir o regime ditatorial por um democrático burguês.

Às 9 da manhã, os militares já haviam tomado os aeroportos e portos. Às 18h, já tomavam o quartel de aviação militar de Lisboa e os últimos quartéis leais ao governo fascista. Uma florista, em meio à agitação das ruas, distribuiu cravos entre os soldados, daí o nome da revolução.

No poder, o Movimento das Forças Armadas (MFA) levou as primeiras medidas "socialistas", como a nacionalização de várias empresas e bancos, em resposta aos bancários que tomaram as instalações e não deixaram nenhum executivo entrar, através de piquetes e vigílias. Poucos dias depois informavam as sabotagens econômicas promovidas pelas instituições bancárias que então atuavam no país.

Ao mesmo tempo, empresas foram abandonadas por seus donos foragidos do país e ocupadas pelos trabalhadores. Chegaram a se organizar comitês de fábricas, inquilinos e soldados, agrupando a maioria da população assalariada.

As comissões eram eleitas em assembleias para reivindicações e definir representantes para levá-las a diante. Nos locais de trabalho, promoveram greves e ocupações. Nos bairros pobres, questionaram a falta de serviços sociais. No campo, ocuparam os latifúndios.

Essas comissões nunca chegaram a desenvolver um organismo centralizado para se articular e se transformar em um instrumento de poder.[1]

Em Portugal, trabalhadores em greve não paravam nas reformas democráticas e avançavam contra a propriedade capitalista. Não seriam usados como moeda de troca. Não permitiriam uma reconciliação com a monarquia. Não aceitariam a presença das bases da OTAN.

Para superar a crise, enquanto o MFA aumentou a jornada dos trabalhadores, o Partido Comunista garantiu máximo de colaboração, chegando a participar da Plataforma para o Pacto, de modo a realizar a transição para o regime democrático. Entre outras coisas, o novo regime garantia educação pública, seguridade social, serviço de saúde e um salário mínimo nacional, significando aumento salarial para mais da metade da população ativa. Aos poucos, o governo resgatava o controle das empresas que tinham sido tomadas dos empresários pelos trabalhadores. O resultado foi repressão e perseguição aos trabalhadores e soldados revolucionários para entregarem de volta ao capitalismo o poder que estava em suas mãos.

Cantar é falar, mas de um modo especial

Reconhecemos a língua oral como natural e cotidiana e a canção é entendida por isso como um aspecto cultural praticado. Esta prática se relaciona com a poesia, sem se confundir com ela.

Conforme Luiz Tatit, as melodias das canções tentam manter o efeito coloquial, como um modo especial de falar. As palavras se adaptam à melodia e ao ritmo, por isso a canção abordada aponta diálogos de aproximação e distanciamento com a metrificação tradicional.

Na canção, verificaremos que os versos são todos organizados em grupos de quatro e que na segunda estrofe, embora tenha exatamente o mesmo padrão melódico da primeira, seu primeiro verso comprime a entoação em função da unidade linguística. Ao invés de uma forma heptassilábica, este verso possui 9 unidades rítmicas em sua metrificação.

O mesmo na terceira estrofe e seu primeiro verso, embora este seja idêntico ao primeiro da segunda, com acento na terceira, sétima e nona sílaba, enquanto no primeiro verso da primeira e quarta estrofes, não existam oitava e nona sílaba, mantendo o acento na terceira e sétima.

Temos nos demais versos a demonstração de como a entoação emula padrões heptassilábicos, tradicionais em nossa língua, mesmo de versos como o quarto, que seriam octossilábicos. É dentro dessa regularidade rítmica heptassilábica que poderia pertencer a uma poesia de cordel, um funk, um fado ou poesia trovadoresca do século XII, que se estabilizam as poderosas imagens com que Chico canta a revolução portuguesa.

Tanto mar

A canção Tanto Mar, consagrada na música popular brasileira, foi lançada em 1978 por Chico Buarque em seu álbum homônimo. Nele, constam referências à resistência política à Ditadura. Uma das mais veladas está em “Trocando em Miúdos”, em que o eu-lírico pede em um suposto espólio de separação, que lhe devolvam “o Neruda que lhe foi tomado e nunca lido”. Pablo Neruda, além de poeta, foi militante pelo Partido Comunista Chileno. Ao poeta que foi assassinado doze dias após o golpe militar de 1973 no Chile, atribui-se a frase apócrifa “Poderão cortar todas as flores, mas não poderão deter a primavera”.

Tanto Mar foi escrita originalmente em 1975, no momento da Revolução dos Cravos em Portugal e da Ditadura Militar brasileira, sofrendo censura e sendo lançada em 1978, com o processo histórico da Revolução dos Cravos já encerrado.

O título remete a dois dos principais topos do imaginário português: o mar e a saudade. Após a unificação nacional, entre os séculos XII e XIV, foram capazes de realizar as Grandes Navegações e criar colônias nas Américas, África, Ásia, Índia e China. Ao longo dos séculos, Portugal viu seu Império minguar e foi obrigado a abrir mão de suas colônias, na medida em que se tornava economicamente dependente de outros impérios europeus. O reflexo dessa transformação política, no imaginário popular, foi a conversão de seu sentimento de orgulho em saudades. É sobre estas bases que iniciamos nossa análise de uma das mais belas obras do cancioneiro brasileiro.

Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / Ainda guardo renitente / um velho cravo para mim

Os primeiros versos confirmam a expectativa do título. A felicidade expressa pelo passado é trazida ao presente pela obstinação em guardar como lembrança um objeto perecível. Outro aspecto importante é o vocativo “pá”, corruptela de “rapaz”, típico da linguagem popular portuguesa. Ao usá-lo, estabelece um diálogo no qual, o destinador ou o destinatário seria português. No caso de ser apenas um, o eu-lírico buscaria criar identidade entre ambos, com expressão característica de seu interlocutor. A identidade é reforçada ao referir ao acontecido como uma festa, um evento com início e término, onde as pessoas celebram em posição de relativa igualdade hierárquica que não se encontra em relações cotidianas.

A transposição de sentido entre lutas populares e festas tem precedentes no imaginário da esquerda e seu sentido se estabelece em função do cravo com o qual é encerrada a estrofe. Também Jorge Amado, escritor brasileiro e militante do Partido Comunista, por exemplo, imortalizou em seu livro “Capitães de Areia”, as palavras do personagem Pedro Bala: “a greve é a festa dos pobres”. Cabe ressaltar que com “renitente”, é colocada uma marcação de dificuldade e força de vontade para guardar lembranças felizes, deslocando o sentimento de contentamento do sujeito.

Já murcharam tua festa, pá / Mas certamente / Esqueceram uma semente / n’algum canto de jardim

A festa, conforme entramos na segunda estrofe, torna o próprio cravo, o qual não murchou, mas foi murchado. Antes de desenvolver esse aspecto, cabe dizer que foi escolhida como parte representante do todo, uma flor. A luta popular, portanto, é retratada como a parte sutil, lisonjeira do momento histórico de derrubada do salazarismo. Ao mesmo tempo em que abre possibilidades para a isotopia que será explorada a seguir.

O cravo é uma flor típica do sul da Europa, e a ideia de que as suas sementes teriam igualmente um fim forçado cria a situação em que o ciclo da natureza foi interrompido, não apenas matando o que era vivo, mas com esforço para evitar a reprodução. Agora só se encontram sementes que ironicamente não foram encontradas, não as costumeiramente vendidas, mas as que se acomodam em um lugar pretensamente escuso, um canto.

Em todo caso, ainda é um jardim. Uma semente colocada em terra qualquer, sempre pode florescer. Em um jardim, terra preparada e propensa para o cultivo, a semente passa a emergir não apenas como ameaça de ressurgimento do cravo e, por extensão, da festa, mas como promessa de potência marcada pelo “certamente” em oposição à semente. Aqueles que não desejavam a flor, erraram em esquecer uma semente - talvez a canção em seu canto no jardim da Música Popular Brasileira. Para que brote pode ser uma questão de tempo, embora uma semente não seja ela própria garantia de flor. Quantas mais podem ter sido esquecidas?

Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei, também, como é preciso, pá / Navegar, navegar

É diante do questionamento sobre as dificuldades, que a renitência anunciada na primeira estrofe ganha sentido. Existe uma questão imediata da distância de um oceano entre Brasil e Portugal, ao mesmo tempo em que ambos compartilham uma história comum de 500 anos, bem como um regime político autoritário contemporâneo. Há uma língua comum, costumes, festas, mas um oceano de distância.

A digressão da terceira estrofe ganha, porém, outro significado, sendo a dimensão do espaço uma medida de tempo e o que estaria a léguas de distância, nesse caso, a “nova primavera” que virá na estrofe seguinte. A navegação seria o trabalho consciente para transpor essa distância em um ambiente hostil à vida humana, como o Oceano, mas também como a falta de condições de vida e trabalho sendo perpetuada pelas Forças Armadas.

Aqui se encontra uma das principais chaves do poema: a expressão “navegar é preciso, viver não é preciso” tem sua origem com o general romano Pompeu, que viveu um século antes de Cristo e foi imortalizado pelo historiador Plutarco. Em Latim, “Navigare necesse, vivere non est necesse” ainda guardava o sentido absoluto, enquanto sua tradução para o português lança luz sobre tal messianismo, conforme discute Fernando Pessoa em seu poema “Navegar é Preciso”. A efemeridade da vida contida nessa expressão se faz ainda mais evidente na canção Os Argonautas, lançada em 1969 por Caetano Veloso, com uso da temática naval fundamenta um poema lírico, não um épico.

Uma necessidade maior do que a própria vida individual ainda existe, mas ganha nova hipótese interpretativa. A distância que foi recém anunciada tem em sua superação um devir. Isso ocorre porque é preciso, também, o que é exato e científico; como a navegação e seus instrumentos tecnológicos ao longo dos séculos. Seu contra-ponto, a vida, é incerta em todos os aspectos em geral, mas em particular no contexto de ditadura, no qual o desaparecimento sistemático de suspeitos de subversão era uma política de Estado e não uma casualidade.

Canta primavera, pá / Cá estou carente / Manda novamente / algum cheirinho de alecrim

A mensagem é encerrada com o anúncio de uma nova primavera, contudo a renitência apresentada desde seus primeiros versos agora permite um arroubo emocional. Desde a palavra “canta”, fica marcada a mensagem expressada em tom festivo, mas o próprio verbo é um imperativo apontando para o futuro, dois aspectos que não existiram até então. O tom pela primeira vez empregado é reforçado pela marca de subjetividade seguinte, quando o eu-lírico se revela em falta, carente. Outro aspecto importante é que com essa marcação verbal, fica expresso o eu-lírico necessariamente brasileiro, na medida em que o imperativo do verbo “mandar”, para um falante nativo do português ibérico nunca seria “manda”, mas “mande”.

O pedido de envio é não da própria flor, mas ao menos do cheiro. Com toda a tristeza e a melancolia de um processo político desviado, Portugal teve sua luta e conquistou alguns importantes direitos. O Brasil, diferentemente, ainda viveria mais de uma década de ditadura e daí o pedido de qualquer flor, não precisaria ser um cravo, mas qualquer sinal de nova primavera. O alecrim surge como ótimo exemplar, na medida em que floresce o ano inteiro, embora principalmente entre janeiro e maio – período de primavera no hemisfério norte – e, mesmo sem florescer, tem em suas folhas secas um ótimo elemento para culinária, perfumaria e medicina natural.

Esses aspectos fazem do alecrim uma especiaria, tipo de mercadoria que levou o reino de Portugal às Grandes Navegações. Nos interessa essa questão pela semelhança de nome entre a flor do craveiro, o cravo que inspirou o nome da revolução portuguesa, e o cravo-da-índia, especiaria muito importante que é mais comumente conhecida como cravo. O cravo-da-índia, ao contrário do alecrim, nativo europeu, foi preciso mandar buscar. O mesmo ocorre com o brasileiro mandando buscar alecrim, uma planta preciosa em nosso contexto, porque além de tudo, brota sem sequer ser semeada. Uma solução mágica e emotiva, para aliviar a dor e a carência de quem sabe que navegar é preciso. Naveguemos.

Bibliografia

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. Todos entoam: ensaios, conversas e canções. São Paulo: Publifolha, 2007


. O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004

[1] Recentemente, documentos revelados da CIA apontam que o Partido Comunista Espanhol tinha medo da revolução portuguesa, que poderia prejudicar as possibilidades do PCE de fazer parte de um governo democrático da Espanha pós-Franco. Santiago Carrillo, Secretário Geral do Partido, pretendia restaurar as liberdades civis e instituições democráticas. Ele temia que ao desatar forças sociais para derrubar a ditadura e levar a diante um programa de demandas democráticas, mesmo limitado, abria a porta a um processo revolucionário que escaparia a seu controle.

 
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