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DOSSIÊ: FEMINISMO E MARXISMO
As outras feministas
Celeste Murillo
Argentina | @rompe_teclas
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“O feminismo é um veneno”, disse uma vez a primeira mulher que liderou o Reino Unido. Margaret Thatcher foi uma das melhores representantes de sua classe e criou a sua marca do que conheceríamos depois como neoliberalismo, também batizado de “reaganismo-thatcherismo”. Levou adiante uma guerra imperial e aplicou com dureza um exemplar plano econômico contra a classe trabalhadora, jamais exagerou ou sequer fingiu características atribuídas ao gênero feminino como o diálogo ou a proteção. É conhecida por ter eliminado o copo de leite gratuito nas escolas primárias como sua primeira medida quando foi ministra de Educação, nada mais distante da imagem maternal que se quer atar às mulheres no poder.

Não defendeu a igualdade nem os direitos das mulheres, mas encarnava contraditoriamente o discurso feminista liberal, de quebrar o “teto de cristal”, que representava (para esse feminismo) um avanço para todas as mulheres. Ainda que contrariasse muitas feministas, poucas alertaram que sua chegada ao poder coincidia com o momento em que a maioria delas se retirava das ruas para refugiar-se em ONGs e ministérios. Parecia que o feminismo ganhava uma “batalha cultural”, mas na realidade, empreendia o abandono da luta política por transformar a sociedade pela raiz e acabar assim com a aliança capitalismo-patriarcado.

Durante o apogeu do neoliberalismo essas correntes que dominariam o discurso feminista se consolidaram. Como mostra Lindsey German, “paradoxalmente, a retórica do feminismo trinfou em uma época em que as condições reais de vida das mulheres pioraram e este foi utilizado para justificar políticas que prejudicariam as mulheres” [1]. A partir da década de 1980, as demandas, um programa resultante, se adaptaram à democracia capitalista. A ampliação de direitos, que debatemos em outros textos [2], se transformou em ferramenta de cooptação e junto com a cooptação das elites dos movimentos sociais se recriou um discurso e uma prática de comum acordo: a liberação se reduziu à “livre escolha”, uma igualdade condicionada, sem questionar a “democracia” baseada na desigualdade e na exploração da maioria da população.

A sombra do feminismo neoliberal

Com a derrota de Hillary Clinton, analisamos [3] como o feminismo neoliberal não apenas reduzia seu programa aos problemas das mulheres brancas profissionais, como além disso convivia com os interesses imperialistas. Ao lado desse feminismo neoliberal cresceram lenta e silenciosamente dois fenômenos: por um lado, amplos setores de mulheres que rechaçam o feminismo porque sentem que está distante de seus problemas e, por outro lado, movimento de direita que utilizam postulados desse discurso para modernizar-se, aproveitando a erosão de seu conteúdo mais contestador.

O primeiro fenômeno teve expressão nos Estados Unidos, minoritariamente pela esquerda (com o voto em Bernie Sanders) e, de forma mais notória, na base de mulheres brancas que sem ser de direita conservadora votaram em Trump: entre elas, um terço se autodefine como liberal moderada, 77% quer que Trump e o Congresso avancem na igualdade de gênero, e ainda que 53% rechace o que vê como “reações exageradas” do feminismo moderno (excessiva correção política) não rechaça a ideia de igualdade (pesquisa de PerryUndem). Ao traduzir o “campo de batalha” da política à cultura e ao discurso [4], o feminismo liberal concentrou sua ação em um tipo de vigilância da linguagem e do comportamento, enquanto ao seu redor crescia a desigualdade. O segundo fenômeno, ainda que tenha tido expressões nos Estados Unidos como foi com a precursora Sarah Palin (candidata a vice-presidente republicana em 2008), é mais extenso na direita europeia.

Apesar das diferenças que existem, a pergunta que colocam ambos os fenômenos é em que medida seu avanço se explica pelo discurso que o feminismo liberal instalou, que despiu-se de todo conteúdo contestatório de crítica à opressão patriarcal na sociedade capitalista. Enquanto esses feminismos habilitaram a institucionalização, a mercantilização e o individualismo, todas as variantes coexistem pacificamente, e inclusive serviram como justificação do capitalismo, enquanto a vertente neoliberal mostra fissuras e surgem variantes populistas reacionárias, a direita, mais ou menos conservadora, soube colher os frutos da operação que instalou em uma imperialista como Hillary Clinton como feminista irrefutável. Porque a epopeia de romper o teto de cristal pôde ser encabeçada por uma rapina como Clinton e não por uma empresária exitosa como Ivanka Trump ou uma líder de direita como Marine Le Pen?

Meritocracia e feminismo: quem colhe os frutos dessa união?

Ivanka Trump encarna valores similares aos defendidos pelo feminismo neoliberal ou corporativo: meritocracia, empreendedorismo e igualdade de oportunidades. Seu perfil de mulher independente, mãe e empresária lhe permitiu dirigir-se a muitas mulheres que não se sentem representadas pelo feminismo “cultural”, algumas socialmente mais conservadoras mas outras partidárias da igualdade e dos direitos reprodutivos. O feminismo corporativo de Ivanka não tem nada que invejar esse que, com o selo de Clinton, busca romper o teto de cristal, ou seja, eliminar as barreiras para que algumas mulheres avancem sobre posições mais altas nas empresas e instituições estatais [5]. Ivanka é uma empresária!, dizem as “apologistas” do feminismo Clinton, como se a mensagem de empoderamento desfeita de qualquer crítica à desigualdade social não fosse um denominador comum entre esses dois feminismos.

Como retroceder do discurso massageado durante décadas de um feminismo de “livre escolha” [6], personificado por celebridades, políticas e empresárias como Emma Watson, Beyoncé, Hillary Clinton ou Marissa Mayer (Diretora Executiva do grupo Yahoo), cujas motivações estão perto do teto de uma minoria de mulheres, e longe do sótão onde segue vivendo a maioria delas? Como convencer as mulheres de que esse discurso não adaptado é diferente do de Ivanka e melhor para elas? O fato de que o feminismo tenha sido tão domesticado o transformou em matéria maleável aos diferentes discursos, em aparência, mas expressão do mesmo regime de dominação, que enfeita e adapta suas formas quando precisa.

Obviamente, o discurso de Ivanka é funcional a uma política determinada (como foi durante outras administrações), e seu papel de primeira dama “política” aponta para dirigir-se a um grande bloco, as mulheres que trabalham e são mães: licença maternidade remunerada e dispensa obrigatória para cuidado das crianças. Não à toa, foi um dos eixos do discurso de Ivanka na convenção republicana:
“As mulheres representam 46% da força de trabalho nos EUA, e 40% dos lares norte-americanos são sustentados por uma mulher (…) As mulheres solteiras sem filhos ganham US$0,94 por cada dólar que ganha um homem, enquanto as mães casadas ganham apenas US$0,77 (…) o gênero já não é o fator gerador da brecha salarial mais importante nesse país, é a maternidade que faz isso. Como presidente, meu pai mudará as leis trabalhistas que se criaram quando as mulheres não eram uma porção significativa da força de trabalho[7].”

É certo que, como muitas feministas “radicais” apontam sobre a derrota de Clinton, o perfil de “working mom” (mãe que trabalha) de Ivanka volta a tratar o cuidado infantil como “coisa de mulher”, contra a tendência mundial de licenças familiares, para mães e pais, e que as deduções impositivas impactarão sobretudo nas famílias ricas. Mas também devem reconhecer que nem as últimas administrações democratas nem suas maiorias episódicas no Congresso serviram de impulso para nenhuma dessas políticas, que representam dois dos grandes problemas da maioria das mulheres nos Estados Unidos. A demanda de centros de cuidado infantil foi uma das demandas mobilizadores nos anos 70, que chegou a ser votada no Congresso por pressão da revolta feminina, mas acabou vetada por Nixon (que temia que o cuidado comunitário das crianças corroesse a família). Ironicamente, é um governo republicano o que volta a trazer o problema à pauta do dia, adaptado a suas motivações públicas atuais.

Marine Le Pen, o lado obscuro do feminismo

Do outro lado do Atlântico, a direita também avança no caminho aberto pelo pelo feminismo liberal, demonstrando até que ponto esse último se transformou em algo inofensivo. Marine Le Pen escolheu citar na mais nada menos que Simone de Beauvoir para justificar seu discurso xenófobo. “Não esqueçam nunca que bastará uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos da mulher sejam questionados” [8] são palavras que a feminista icônica utilizou para referir-se às agressões sexuais contra jovens na Alemanha (pelas quais foi acusado um grupo de imigrantes por sua aparência física). “Temo que a crise migratória sinalize o começo do fim dos direitos das mulheres (…) Sobre esse, como sobre outros temas, as consequências da crise migratória são previsíveis” [9]. Em um coquetel explosivo de feminismo e xenofobia, Le Pen alimenta a islamofobia para capitalizar eleitoralmente. Esvaziado de uma crítica anticapitalista, o feminismo serve inclusive para um discurso abertamente reacionário.

A utilização de Le Pen é repugnante e cínica, mas difere do discurso que acompanhou as invasões imperialistas no Oriente Médio? A entidade “direitos das mulheres” (tacitamente brancas e ocidentais) pode funcionar como motivação política para invadir um país ou para lançar um caça às bruxas contra imigrantes. Tem razão as que apontam contra Le Pen e dizem “Isso não é feminismo!”, mas quase não existe reflexão sobre porque é possível para a direita a mistura que fazem de defesa de valores conservadores (mulher como mãe, dona de casa, arrimo de família) com ter como “capitã” um líder que fala dos direitos das mulheres, da laicidade nas escolas, e encarna nela mesma a imagem de mulher independente e empreendedora. Imagem de uma nova geração, está acompanhada pela líder da oposição de direita Frauke Petry, uma crítica feroz do plano de imigração da chanceler Merkel, pela direita; e no Reino Unido, Noruega e Dinamarca os partidos da nova direita, antimuçulmana por definição, repetem a equação de líderes femininas com uma base onde se fecha a tradicional brecha entre homens e mulheres.

Existem hipóteses que apontam a crescente presença feminina na classe trabalhadora, sobretudo em setores precários, faz com que as mulheres sejam hoje mais receptivas ao discurso de direita, que interpela os “perdedores da globalização”, fartos dos políticos do establishment. E mais que a defesa de valores tradicionais, o outro fator que parece ser atrativo é a adoção da direita de uma agenda da igualdade, inofensiva e em convivência com tendência xenófobas [10]. Somado a isto, alguns afirmam que a islamofobia pode ser um ponto em comum entre a base feminina do movimento conservador estado-unidense e a direita européia. “Existe uma visão compartilhada de que a mulher independente é um pedra fundacional da civilização ocidental moderna, da emancipação feminina sob ameaça de forças culturais que se infiltram na Europa e Estados Unidos com a chegada da imigração muçulmana”, explica um artigo na Foreign Policy [11]. Entretanto, não explica o fenômeno de conjunto que parece responder mais à degradação das democracias capitalistas, como expressam a crise do bipartidarismo estado-unidense ou do sistema de partidos em vários países europeus. Como outros setores, as mulheres canalizam seu voto contra o establishment nessas variantes, frente a ausência de alternativas de esquerda independentes, e neste panorama o feminismo liberal foi absolutamente incapaz de enfrentar a utilização da defesa dos direitos das mulheres.

Despir seu discurso dos objetivos imediatos nos permite ver o problema de fundo: o discurso feminista demonstrou, ao ser “digerido” pelas democracias capitalistas, sua funcionalidade ao regime de dominação da classe capitalista. Muitos setores criticam o papel tradicional que se da às mulheres nos movimento conservadores, realçando seu perfil de “diretoras executivas da família nacional”, como definiu o ex assessor de Trump, Stephen Bannon, ao falar do Tea Party como movimento de centro direita liderado por mulheres. Mas não existe nenhuma contradição entre o discurso feminista liberal e a exaltação dos valores associados à maternidade, muito menos em um contexto onde se celebra o retorno à domesticidade (abandono do terreno profissional) como parte do feminismo de “livre escolha”. Durante as eleições nos EUA, alguns progressistas que apoiaram Clinton, tiraram sarro do que uma jornalista chamou “sexismo benevolente” ao apresentá-la como mais apta não por suas capacidades mas por ser mãe e mulher [12].

Uma estrategia para a emancipação

A situação atual coloca novos desafios para o feminismo e para o movimento de mulheres. No último 8 de março, quando aconteceu a Paralisação Internacional de Mulheres, foi prova das novas energias e debates que atravessam um enorme movimento social e político que ressurge no calor das mobilizações massivas na Polônia (contra a proibição do direito ao aborto), no movimento Ni Una Menos da Argentina e nas marchas multitudinárias nos Estados Unidos durante o primeiro dia de governo de Donald Trump. Como parte desses fenômenos, se delineia cada vez mais claramente o fracasso do feminismo liberal, distanciado dos problemas que afetam a maioria das mulheres, e se consolida uma ala esquerda, anticapitalista. Essas correntes, que confluem em agrupamentos como o que chama a construir um “feminismo dos 99%”, colocam entre seus objetivos “dar voz e poder às mulheres que estão sofrendo as consequências de décadas de neoliberalismo e guerras: as pobres, as trabalhadoras, as mulheres de cor e as imigrantes” [13], mostrando a aliança potencial que uniu historicamente a luta das mulheres por sua emancipação com a da classe trabalhadora para acabar com a exploração.

Em um movimento inverso ao que inaugurava o neoliberalismo, as batalhas que o feminismo parecia ganhar no terreno da cultura, instalando um sentido comum da igualdade de gênero sem questionar a enorme desigualdade social, começam a mostrar suas vitórias pírricas [14]. A incorporação de seu discurso por parte da direita, e já não mais com uma cara progressista, coloca a justeza das críticas, muitas vezes como contracorrente, das correntes marxistas e as anticapitalistas. Seus programas hoje colocam a vigência (e a urgência) de construir um movimento emancipatório que busque arraigar-se nas massas, que reconheça que a luta pelas liberdades e os direitos não poder estar separada da denúncia feroz de um regime social que explora a maioria da população. Esse regime, que não merece nem aceita reformas, só pode ser desmantelado por completo para colocar de pé um mundo novo verdadeiramente livre, sem opressão nem exploração.

Notas:

1. L. German, Material Girls: Women, Men and Work citado em N. Power, La mujer unidimensional, Buenos Aires, Cruce casa editora, 2016.
2. Ver, por exemplo, A emancipação das mulheres em tempos de crise mundial e “Adeus à revolução sexual?".
3. C. Murillo, “Hillary Clinton y su techo de cristal”, IdZ 35, dezembro 2016.
4. Em“Feminismo cool, vitórias que são de outras”, damos conta de outras consequências desse fenômeno, como os grupos de mulheres contra o feminismo ou a exaltação renovada da maternidade e da domesticidade.
5. Nancy Fraser faz uma descrição precisa na entrevista que publicamos aqui.
6. “Feminismo cool, vitórias que são de outras”, ob. cit..
7. Discurso de Ivanka Trump na convenção do Partido Republicano.
8. Como apontaram muitas feministas, as palavras de Beauvoir não tem nada a ver com a imigração ou a população ou cultura muçulmana.
9. Coluna de opinião em L’Opinion, 13/01/2016.
10. Ver M. Och e J. Piscopo, “From the Stove to the Frontlines? Gender and Populism in Latin American and Western Europe”, duckofminerva.com, 17/01/2017 e C. Young, “The Other Women’s Movement”, Foreign Policy, 20/03/2017.
11. C. Young, ídem.
12. Ver “Louis C.K., Michael Moore, Hillary Clinton, and the rise of benevolent sexism in liberal men”, Vox, 02/11/2016.
13. C. Arruzza e T. Bhattacharya, “La lucha de las mujeres en la era Trump: pelear por el pan y por las rosas”, La Izquierda Diario, 22/02/2017.
14. O termo pírrico refere-se a uma vitória obtida a alto preço, em referência ao general grego Pirro, que venceu duas batalhas com numerosas baixas de seu exército, ambas contra os romanos, em Ásculo e em Heracleia. As perdas de Pirro eram irrecuperáveis em comparação com as do exército romano, que apesar das baixas, recompunha rapidamente seu exército.

Traduzido por: Letícia Parks
Publicada originalmente na Revista Ideas de Izquierda, Número 37, maio 2017, na seção de Política.

 
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