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SÉRIES
Hannah Baker está morta. De quem é a culpa?
Fernando Pardal

[ALERTA DE SPOILER]

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Hannah não gostava de rosas: achava elas um clichê. É sua mãe que diz isso a Courtney, que cinicamente as arruma no memorial preparado no corredor escolar para homenagear alguém que partiu por jamais ter se sentido minimamente bem vinda naquele lugar. Mas Hannah também amava as rosas, porque elas eram um clichê; o clichê que representava algo que ela buscava. Porque eram as rosas que seu pai dava à sua mãe e mostravam que, sim, existiam homens decentes, existia amor, existia uma possibilidade de felicidade. O ódio de Hannah às rosas era por ver no clichê uma farsa, uma ideia que lhe foi vendida e que a sua vida foi mostrando, a cada nova relação, como inalcançável. Essa ambiguidade fazia parte de Hannah, como tantas outras. Como as ambiguidades que constituem o que sentimos pelas pessoas, por nós mesmos, pelo mundo em que vivemos.

Thirteen Reasons Why está longe de ser uma série que representa a busca de uma jovem pela morte. De fato, ela representa uma busca autêntica pela vida, pela sua beleza. É o amor de Hannah pela vida que a faz odiar a vida – a vida tal como lhe foi dado viver –, como era seu amor pelas rosas que a fazia odiá-las. É a entrega de Hannah às pessoas, ingênua e franca, que a torna, relação após relação, uma pessoa destroçada e fechada, até o ponto de sua incapacidade de se relacionar com a única pessoa que durante todo o tempo esteve disposta a reconhecê-la como uma pessoa plena, tal como ela quisesse ser e se mostrar.

Clay Jensen, como alguém que amou a Hannah sem jamais poder ultrapassar suas barreiras e defesas, busca motivos. A morte de Hannah precisa ter um sentido para que ele possa viver. E as fitas são um sentido que Hannah deu a quem quisesse ouvir, são um manifesto de que a dor não nasce pronta, de que ninguém vem ao mundo como um “suicida” e nem deseja a morte antes de ter procurado por todos os caminhos a retribuição do amor que dedicou à vida.

Em alguns casos, Clay busca vingança. Como os pais de Hannah, os Baker. Eles buscam justiça ao processar a escola. Buscam atribuir os culpados pela perda de sua filha. É uma busca por sentido, e nela querem encontrar culpados por todas as partes. O bullying é o “demônio” que ronda as tentativas de entender. Enquanto isso, a escola cumpre seu papel institucional e pendura cartazes pelas paredes, com frases que só podem ser entendidas por qualquer pessoa que conheça a história de Hannah como uma cínica ironia, uma provocação diante de sua morte. Na melhor das hipóteses, são um atestado de ignorância a respeito de tudo o que se gesta entre aquelas paredes.

São apenas adolescentes os 11 que até a vez de Clay ouvem as fitas e são intimidados postumamente a tomar responsabilidade pela trágica e meteórica rota de Hannah rumo aos cortes fatais em seu pulso. Suas reações, como as de Hannah diante dos brutos choques com a vida, são ambíguas. Alex e Clay são os que procuram tomar parte na culpa que lhes é atribuída; outros, “correndo da cruz”, reafirmam como um mantra, como um dogma do qual precisam a todo custo se convencer, que “a escolha foi dela” e de mais ninguém; e, portanto, a única responsável por sua própria morte seria Hannah. Há os que, desesperados por se verem obrigados a encarar suas próprias escolhas, também tentam desesperadamente negar tudo o que sentem, o que fizeram e o que pode lhes ocorrer em consequência disso, como Coutrney e Justin.

Mas a culpa, afinal, é de quem? A tradição de uma sociedade que se atribui de forma nada modesta o rótulo de “a mais livre do mundo”, onde todos são responsabilizados individualmente por acertos, erros, fracassos e sucessos não deixa margem para dúvidas. A judicialização da vida acerta as responsabilidades de cada um diante de seus crimes, e é essa a resposta que os Baker procuram para expiar sua dor diante do incomensurável luto pela perda de sua filha. Se a escola assume sua responsabilidade, a morte de Hannah não será em vão. E seu pai procura medidas que impeçam novas mortes, e por isso lhe parece razoável o acordo de uma indenização que inclua educação e prevenção sobre o suicídio na escola.

Podem, dentro de uma pequena escola, caberem todas as dores de Hannah? Se o processo contra a escola procura dizer que sim, as estatísticas sobre suicídio adolescente nos EUA dizem o contrário. Aos milhares, jovens tiram sua vida na “sociedade mais livre do mundo”, por não terem sequer direitos mínimos respeitados. Por trás do rótulo de “bullying” se esconde uma estrutura social cuja reprodução em pequena escala levou Hannah à morte. O suicídio de Alex, o planejamento de Tyler para reproduzir novamente a “popular” prática dos massacres escolares são mais reafirmações de que, não, o problema não é individual. Mas que tampouco é o problema de uma escola.

As opressões, explorações, reificação das relações, individualismo extremo, competitividade e pragmatismo – entre outras marcas das ações dos jovens que levam Hannah a construir sua trajetória rumo à morte – não são características típicas dos jovens, ou das escolas, ou do bullying. São estruturais da sociedade capitalista, expressam uma ideologia que se alimenta dele e lhe perpetua suas ideias e modos de comportamento.

O peso de uma sociedade patriarcal, machista e misógina estão na linha de frente das treze razões de Hannah. Tratada como objeto sexual, Hannah se vê reduzida nos corredores da escola, nas redes sociais, no imaginário daquela comunidade a uma não-pessoa, tirada da condição de sujeito por um suposto comportamento sexual. No caso de Hannah, baseado em primeiro lugar no boato espalhado por Justin, mas muitas vezes feito a partir de comportamentos sexuais que de fato ocorrem. E se Hannah tivesse efetivamente transado com Justin no parque? E se, aliás, ela tivesse transado com 50 pessoas, homens e mulheres, da escola e de outros lugares, isso justificaria o julgamento do qual foi vítima e sua transformação em objeto sexual?

O que está em jogo nesse caso não é meramente a “crueldade adolescente” em espalhar boatos, “destruir reputações”, estigmatizar. O que está colocado é o peso brutal de uma moral que quer impedir a todo custo que as mulheres sejam sujeito de sua própria sexualidade, que a exerçam livremente como, quando e com quem lhes pareça melhor. O fato de que Hannah nem precise efetivamente ter transado com alguém para ser transformada na “vadia da escola” só ressalta como a força avassaladora dessa moral é implacável. E a transformação das mulheres em objetos não é uma ideologia que se pode circunscrever a uma prática escola, o “bullying”, nem, de fato, responsabilidade meramente individual de Justin. É a reprodução de uma ideologia funcional ao capitalismo em todas as suas esferas, pois cumpre o papel de sujeitar também as mulheres a todos os fardos sociais que se procura atribuir a elas – como as duplas jornadas, a monogamia, o cuidado com os filhos, a casa, a família, os maridos, a submissão em suas relações com pais, irmãos, namorados etc.

No caso de Jessica, que chega a bater em Hannah – ato que precipita a ruptura de sua amizade mesmo que Hannah, engolindo qualquer orgulho, procure se reaproximar de Jessica – fica evidente que tal ideologia domina toda a lógica das relações amorosas, e é como veneno nos laços de união e solidariedade. A lógica patriarcal se reproduz nas relações de amizade como nas relações das filhas com suas mães – quase sempre as primeiras a incutir nas crianças os primeiros germes dessa ideologia tão precocemente, ironicamente por serem há tanto tempo suas vítimas.

Nos casos de Alex, Tyler, Courtney, Zach, Ryan e Bryce também está presente essa mesma ideologia, que com o peso brutal de uma estrutura social procura relegar as mulheres ao papel de “menos” em todos os aspectos da vida social. Talvez seja em Courtney que encontramos uma expressão mais distorcida, mas nem por isso menos cruel dessa ideologia. Comprimida entre sua sexualidade reprimida e o desejo de se provar como “a menina perfeita”, ela se torna a mais cruel e implacável detratora de Hannah, tanto em vida como em morte, sem que deixe de manter a sua fachada politicamente correta ao organizar o memorial para ela. A hipocrisia é marca registrada desse mundo também, afinal.

Também o caso de Alex é precioso, por mostrar o automatismo dessas relações: como forma de chantagem com Jessica, ele coloca o nome de Hannah em uma lista que “abre a temporada de caça” sobre ela. Atormentado pela culpa ao perceber as consequências de um gesto sobre o qual certamente não havia refletido antes de fazer, Alex atira em sua própria cabeça. É também um sinal claro de que não adianta responsabilizar indivíduos e puni-los, pois se trata de um aprendizado social que se reproduz no comportamento de Alex. Seu suicídio em nada muda o fato de que listas como aquelas circulam, aos milhões, destruindo pessoas como Hannah; o arrependimento de Alex faz com que o peso insuportável da morte de Hannah caia sobre seus ombros. Ele se mata, mas as listas permanecem. Enquanto isso, os que reproduzem conscientemente essa lógica, que se beneficiam dela a todo momento, permanecem vivos.

Bryce, o monstruoso Bryce, afinal, é sem dúvida quem coloca a “pá de cal” sobre as esperanças de Hannah de viver. E quem é ele, se não o indivíduo que representa o topo dessa doentia pirâmide social? Em seu depoimento aos advogados, Kat, amiga de Hannah que se muda no primeiro episódio da série, diz: “tente ir à escola com um bando de Neandertais que ouvem que são a única coisa que vale algo na escola e que o resto de nós só está lá para torcer por eles e fornecer qualquer suporte de que precisem”. É de uma precisão aguda a descrição dela, à qual temos apenas que acrescentar que não serve apenas para os colégios americanos, mas para o capitalismo.

Bryce é o típico “vencedor” (winner), como se diz entre os americanos: rico, bonito, capitão do time de futebol. Ele não se sente intocável à toa: ele sabe que é. Sabe que seu dinheiro – como diz Jessica a Justin – permite que ele “compre” as pessoas, que, “naturalmente” são vistas por ele como um objeto a seu dispor. Ele “sabe” que todas as mulheres o desejam, que todos os homens querem ser ele. Quando Hannah enfrenta Zach no refeitório, ela expõe a ele que seu ódio em relação a ser recusado por ela é fruto, também, dessa lógica: quem, afinal, recusaria o ídolo escolar, campeão do basquete? Para o capitalismo, de fato, a vida de quem não tem capital não vale nada, e estamos ali apenas para “torcer por eles e fornecer qualquer suporte de que precisem”. Hannah, com imensa sensibilidade, percebe que também sobre Zach pesa um fardo do papel social que vestiu. Por isso tenta, sem sucesso, acessá-lo.

Se o colégio americano é um pesadelo adolescente para todos aqueles que não são os “populares”, os atletas, os vencedores, e esse fato é tão notório quanto inquestionável na vida social americana, é justamente porque ele é um microcosmos, uma antessala, da sociedade mais individualista e doentia que o capitalismo foi capaz de criar, em que a liberdade do capital reduziu os indivíduos a nada. E “perdedores” como Hannah, são, na verdade, apenas efeitos colaterais dessa sociedade de “vencedores” como Bryce.

A reificação das relações mostra sua face brutal não apenas na objetificação sexual que torna Hannah cada vez mais destruída psiquicamente, mas na forma como os problemas são encarados. Como Porter, psicólogo escolar, que vê apenas duas opções na busca de Hannah por ajuda contra seu estuprador: processá-lo ou seguir em frente. As opções são pragmáticas, sem meios termos. Nessa chave, que é o parâmetro dessa sociedade, é que se vê qualquer possibilidade de justiça pela morte de Hannah em um processo jurídico contra a escola e na atribuição de culpa a esse ou aquele indivíduo ou instituição. Clay, quando seus pais pensam que está mal, tem uma saída simples: tome esses remédios. E é assim que se resolvem as coisas em uma sociedade que produz a morte de milhares de Hannahs, massivamente, continuamente. Não se buscam as causas, mas sim a prevenção eficaz, imediata e silenciosa dos sintomas. Mas o que se reprime, tanto psiquicamente como socialmente, sempre voltará à tona com uma violência dobrada.

Uma série “irresponsável”?

O sucesso estrondoso de Thirteen Reasons Why se explica em grande parte por esses méritos, de tocar em uma ferida social aberta. E ele foi respondido, prontamente, com uma avalanche de críticas sobre a série. De acordo com elas, a produção seria irresponsável, estimularia o suicídio, apresentando ele “como uma saída”.

Um dos textos mais populares na internet (cujos péssimos argumentos não discutirei em detalhes) que defende essa visão apresenta como uma das justificativas para não ver a série o fato de que ela estaria indo “contra as recomendações da OMS” de não mostrar cenas de suicídio para evitar suicídios “por imitação”. Como argumentei nesse texto, a própria lógica da OMS só poderia ser reproduzida por uma agência de medicina que é um órgão nas Nações Unidas, instituição a serviço dos países “vencedores” como os EUA, como Bryce Walker, que levam sua “irrecusável democracia” para todos os outros com bombas ou “missões de paz” como as do Haiti, em que estupros e abusos contra os direitos humanos são a regra. Depois de tudo isso, a OMS se atribui e prega ao mundo o “verdadeiro conhecimento” sobre como prevenir as centenas de milhares de suicídios provocados direta ou indiretamente pela ordem social que defendem. Como os cartazes imbecis espalhados pela escola de Hannah, a principal recomendação da OMS para prevenir o suicídio é: impeça que as pessoas tenham meios materiais para se suicidar. Claro, pois sobre as causas, mais uma vez, só pesará o silêncio. Isso sim é irresponsabilidade, e uma bastante profunda: a irresponsabilidade do capitalismo diante da vida humana.

O que causa essa repercussão é que o suicídio é um tabu – ainda que paradoxal. Ele é um grande assunto, em toda parte, desde que só se fale dele o que não pode incomodar de fato. Contra suicídios, o que nossa sociedade quer é o mesmo que os pais de Clay queriam para resolver os problemas dele: tome alguns remédios. Não pense sobre as causas, não fale sobre as motivações, sobre o que de fato acontece. Essa é a lógica da OMS e dos discursos – ainda que muitos bem intencionados – que afirmam que a série não deveria ser assistida pelos seus “triggers”, ou seja, por tocar em feridas abertas para os espectadores. Eles podem querer se matar, e “o suicídio não é uma opção”, como diz um cartaz na escola de Hannah que é rasgado por Alex. Sim, o suicídio é uma opção, tem sido uma opção bastante popular, aliás: para 788 mil pessoas em 2015 (sem contar os muitos casos não notificados) o suicídio foi uma opção. Para Hannah foi uma opção. Para Alex foi uma opção. E só pode ser característico de uma sociedade doente a recusa, a “tática do avestruz”, de acreditar que a forma de tratar isso é se recusando a falar.

Não há nada de irresponsável em tratar francamente dessa questão. Não como a OMS, aliás, mas se dirigindo às questões sociais que subjazem às centenas de milhares de suicídio. Como qualquer obra de arte, Thirteen Reasons Why se relaciona às questões de seu tempo, e está aberta às interpretações, críticas, debates. Mas pretender proibir uma obra porque ela não lhe agrada, e camuflando essa posição por trás de uma suposta "responsabilidade social", é de um obscurantismo que na verdade diz muito sobre nossa sociedade e seu moralismo a serviço de uma sociedade imoral.

Não estou dizendo que todos “devem” ver Thirteen Reasons Why, porque, da mesma forma que as pessoas que dizem que “ninguém deve ver”, isso me parece sem sentido. As pessoas são diferentes, sabem onde o seu “calo aperta”. Se há quem julgue que a série lhe fará mal, não assista. Se há quem ache a série uma porcaria, ótimo. As pessoas têm opiniões diferentes, e é bom que seja assim, e que elas sejam livremente debatidas. Mas querer “proibir” a série é sintomático de uma histeria social que cerca o tabu moderno do suicídio.

Hannah, ao terminar suas gravações, diz: “Algo engraçado aconteceu quando eu terminei a fita 12. Eu senti algo se transformar. Eu tinha despejado tudo. E, por um minuto, só um minuto, eu senti que talvez eu pudesse vencer isso. Eu decidi dar mais uma chance à vida.” Faz todo sentido. A elaboração é um instrumento precioso para lidar como nossos problemas. Dizer, escrever, conversar, isso tudo faz parte de procurar encontrar um sentido às coisas. Dar sentido ao que nos acontece é fundamental para viver. E, se Hannah pôde chegar mais perto de expiar suas dores gravando suas fitas, certamente há quem vá encontrar na série uma forma de elaborar, de expiar suas dores. Em uma sociedade doente, devemos pelos menos poder falar sobre como nós mesmos adoecemos em consequência dela.

Falar sobre nossas questões, elaborar, é uma resposta para o adoecimento psíquico pelo menos desde a época da psicanálise (como uma ciência, pois evidentemente já era muito antes disso), mas hoje está em desuso: frente à dessubjetivização da neuroquímica, que promete resolver todos os problemas com remédios que regulam suas taxas de serotonina, quem precisa falar? Se Hannah tivesse buscado ajuda profissional, é muito provável que essa fosse a resposta dada a ela, como no caso de Clay. Não silenciemos mais nossas dores. Se é verdade que ainda não podemos mudar esse mundo radicalmente para acabar com essa monstruosa fábrica de suicídios – e por essa perspectiva eu luto a cada dia, mesmo com a subjetividade destroçada que tenho como "presente" por viver nesse mundo –, pelo menos podemos enfrentar os seus problemas de frente. E isso, sem dúvida, salvará muitas vidas.

 
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