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ELEIÇÕES NA FRANÇA
O significado subversivo da campanha de Philippe Poutou
Juan Chingo
Paris | @JuanChingoFT
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O caráter inédito desta campanha eleitoral é uma expressão da fase terminal de uma longa crise orgânica do capitalismo francês, na qual as duas alianças políticas sociais que têm governado a França desde o início de 1980 – ou seja, o bloco de "esquerda" (de centro-esquerda) e o bloco de direita no poder – estão em desagregação. Desde que escrevemos um artigo anterior dando conta dessa situação, a incerteza continuou a crescer. A menos de duas semanas do primeiro turno, há quatro candidatos em condições para chegar ao segundo turno (Macron, Le Pen, Mélenchon, Fillon), sendo o fenômeno político do momento, a dinâmica de Jean-Luc Mélenchon, que aparece como o terceiro homem superando nas pesquisas a François Fillon, envolvido permanentemente em casos de corrupção e nepotismo.

Por trás da vertigem do processo eleitoral se encontram as dificuldades de formar um novo bloco histórico. Para citar os três projetos que até agora têm ocupado o espaço deixado pela crise do bipartidarismo tradicional temos, por um lado, a tentativa de formar um bloco modernista burguês, encarnado na figura de Macron. Esta opção política é coerente em seus objetivos em torno da Europa e do neoliberalismo, mas é socialmente minoritária já que sua base de apoio são os setores altos e médios da sociedade, enquanto o seu projeto político se choca ainda com a continuação da clivagem entre a direita e a "esquerda", apesar dos grandes passos dados por este digno herdeiro de Hollande. Digno herdeiro, já que o atual presidente foi o primeiro a não incorporar a um componente histórico desse bloco de "esquerda" em seu governo, como é o caso do PCF, na vez em que tentou reformar uma parte fundamental do compromisso social francês do pós-guerra, como o Código de trabalho, dinamitando a aliança já moribunda da "esquerda".

Em oposição a este projeto, se levanta o polo soberanista de direita, liderado por Marine Le Pen que, ao contrário do anterior, carece de uma homogeneidade social e coerência do projeto federal em torno da soberania, sendo essencialmente um conglomerado eleitoral composto de diferentes setores sociais, muitas vezes opostos politicamente, como no caso dos trabalhadores e pequenos comerciantes, com orientações bastante heterogêneas em relação ao papel do Estado e serviços públicos, ou a apreciação das ganâncias e da empresa, contradições econômicas sociais profundas que no caso da FN chegar ao poder ninguém poderia conter.

Além disso, a destruição do bloco de "esquerda" abriu espaço não só para esta variante progressista burguesa, mas também à esquerda da "esquerda", a Mélenchon e sua França Insubmissa. Ao contrário de 2012, quando se levantava como setor de pressão sobre o bloco histórico de "esquerda", capitalizando a franja mais radical do anti-sarkozismo, o atual projeto deste fanático de Mitterrand é um soberanismo de esquerda, abrindo caminho para a Marselhesa e a bandeira tricolor e não à Internacional e a bandeira vermelha. Não querendo, como na campanha anterior, ser o novo Marchais [1], retorna ao esquema fácil populista do povo versus a elite, esquecendo a estruturação em classes sociais antagônicas, que não estão resumidos em seu alardeado interesse geral. Em sua revolução cidadã, a classe trabalhadora é dissolvida em um componente a mais do bloco heterogêneo das classes populares, indo para a encruzilhada do programa histórico e papel potencialmente hegemónico do proletariado com os seus métodos de luta e organismos de combate próprios e independentes de toda variante burguesa para se contentar com uma simples mudança da Constituição no âmbito do atual sistema de domínio. A nível europeu, e após o fracasso calamitoso de Tsipras (Grécia), Mélenchon fala sobre um possível plano B misterioso, mas aposta todas as suas fichas em uma alteração duvidosa dos Tratados e a política da UE, com base no maior peso da França (segunda economia europeia), com respeito à Grécia, para fazer girar a política neoliberal e de austeridade da atual UE. No entanto, além dos limites do seu programa e as dificuldades que, em seguida, terá em transformar seus avanços eleitorais em partido, o fato de ter surgido um espaço de massas à esquerda da "esquerda" demonstra a real polarização em curso do panorama político Francês: de repente os analistas superficiais da realidade que só enxergavam uma suposta "direitização das massas" como único horizonte, já que estão despertando com a novidade, como os mercados financeiros, que passaram de considerar o risco Le Pen a começar a considerar o risco Mélenchon.

Neste marco, que os anticapitalistas se façam ouvir fortemente, assim como está fazendo Philippe Poutou, candidato do NPA, no último debate presidencial com os 11 candidatos na disputa, que teve sua participação noticiada na mídia em todo o mundo, desde o centro-esquerdista The Guardian, passando pelo Financial Times, até o New York Times. O caráter subversivo da sua campanha para o campo político francês é uma confirmação do clima radicalizado e volátil que acabamos de descrever.

As características (da crise) do campo político e midiático francês: a exclusão deliberada dos setores populares

Como corretamente explicam Bruno Amable e Stefano Palombarini em um livro que acaba de aparecer [2], na França, há muitas décadas as classes populares estão sem nenhuma representação política. Assim, "… a característica específica da crise francesa é a exclusão mais ou menos completa das classes populares, das alianças sociais sobre as quais, no decorrer das últimas décadas, a ação governamental (de esquerda ou de direita) vem tentando se apoiar" (p. 25). No caso do bloco de direita, suas dificuldades decorrem do fato de que, desde o fim do ‘boom’ do pós-guerra, e com o declínio do crescimento económico, é cada vez mais difícil conciliar os interesses dos setores de artesãos, comerciantes e pequenos empresários com os dos setores operários e de trabalhadores do setor privado, que ainda que não de forma majoritária, mas significativamente, apoiaram esta opção política hegemonizada pelos setores altos e médios do capitalismo privado francês. Enquanto as tendências dos primeiros é pressionar pela liberalização do mercado de trabalho e as "ações" envolvendo o chamado "Estado benfeitor", os segundos tendem a buscar mais proteção frente à crise. No entanto, a exclusão das classes populares do bloco de "esquerda", cujo salto ocorre após a decepção dos setores populares com o governo de Mitterrand, e continua a partir desse momento, gradualmente, até a presidência de Hollande e a explosão à direita e à esquerda do que restava desse bloco, com um pequeno resíduo, o Pasok, do PS, tem outro caráter. É uma tentativa deliberada dos partidários da Europa do capital e neoliberal nas fileiras da "esquerda", que tem como principais referentes do PS na cabeça – desde Jaques Delors, ministro da economia de Mitterrand e principal artesão depois do giro neoliberal da UE como seu presidente, Michel Rocard – o líder político da chamada "segunda esquerda", e ele próprio, Mitterrand, à frente do Tratado de Maastricht, que estabelece as bases do processo que levou ao Euro - para liquidar a aliança política da esquerda, excluindo o PCF e orientando-se a uma aliança mais de centro (com os "sábios de todos os campos" como dizia Delors), buscando desqualificar os trabalhadores como sujeitos suscetíveis e desejáveis para serem ganhos para este projeto burguês modernista.

O resultado da operação anterior é de apresentar os trabalhadores como um sujeito conservador e culturalmente atrasado, que está perdido definitivamente para o campo da FN, e que constitui um obstáculo a qualquer processo de "modernização libertadora" da França, que permita liberar a energia dos "outsiders" contra os "insiders", estes últimos "retrógrados" que se prendem aos status e conquistas do passado. Enfim, "conservadorismos" que não permitem o desdobramento da destruição criativa do capital, de um modo pelo qual a França possa voltar a ser um ator à altura de suas pretensões de grande potência, competindo com a Alemanha, que já fez este trabalho sujo, sem perder a sua competitividade. Como diz um documento conhecido da Fundação Terra Nova, ligada ao PS: "A identidade da coalizão histórica da esquerda se encontrava na lógica de classe: os trabalhadores "explorados" contra os patrões e representantes do capital; os assalariados mais baixos, operários e empregados, contra os chefes [média gerência em empresas] e as classes médias e altas. [...] A recomposição em curso se faz por fora dos valores. Se estrutura em torno da relação com o futuro: a inversão no futuro contra a defesa do presente. A nova esquerda tem a cara da França de amanhã: mais jovem, mais feminina, mais diversificada, mais diplomada, mais urbana. Esta França de amanhã, em construção, está unida por valores culturais: busca a mudança, é tolerante, aberta, solidária, otimista, ofensiva. A França de amanhã se opõe a um eleitorado que defende o presente e o passado contra a mudança". Enfim, para os partidários do bloco burguês modernista, a esquerda deveria se recompor, portanto, não com base em uma lógica de classe, mas de valores.

Neste marco, a operação interessada em apresentar a FN como o "novo partido da classe operária" não serve apenas para exagerar excessivamente a verdadeira força de Marine Le Pen, mas também serve para tentar construir o bloco burguês em completa oposição aos interesses dos setores populares e declarando como inelutável a crise da relação entre a "esquerda" e os trabalhadores [3]. A realidade é que se você levar em conta a abstenção e setores que não se inscrevem no padrão eleitoral e os imigrantes, a FN recebe um voto sobre sete nos setores operários, isso sem mencionar que está muito longe da influência orgânica que teve alguma vez o PCF no seio da classe trabalhadora.

A única coisa sobre este mito que podemos afirmar é que "a FN... representa - pelo menos estatisticamente - o melhor, ou para ser mais preciso, o ’menos pior’, às classes populares, ou seja, é a que menos a sub-representa" [4].

O discurso de Poutou, um divisor de águas ao "discurso único" de caráter conservador e culturalmente retrógrado dos trabalhadores

A intervenção do Poutou no segundo debate presidencial não foi apenas um "zumbido" [5], mas mostrou a potencialidade hegemônica de um discurso e programa operário independente frente à profissionalização, corrupção e impunidade da vida política dos que, como Fillon, logo pedem aos setores populares para apertarem os cintos, ou aqueles que, como Le Pen, utilizam os privilégios e imunidades do sistema ao que dizem demagogicamente combater para beneficiar-se e defender-se, diferentemente das "pessoas humildes" que enganosamente afirmam defender.

Mais a fundo, o surgimento de um trabalhador anticapitalista como Philipe Poutou e a imensa popularidade das suas intervenções [6] mostraram que era possível um discurso e programa forte e hegemônico da classe operária e que a palavra "trabalhador", desaparecida do espaço midiático, poderia evocar um profundo significado para milhões de explorados e oprimidos. Tanto pela enorme simpatia nos locais de trabalho, estudo e redes sociais, assim como de forma inversamente proporcional pelo profundo ódio de classe que desencadeou em supostos filósofos e jornalistas, verdadeiros "cães de guarda" do capital, mostra que a classe trabalhadora não está destinada a ser excluída do campo político (como demonstra a grande abstenção que caracteriza centralmente aos setores de trabalhadores e empregados), nem a ser o sujeito amorfo e sem esperança do projeto soberanista e xenófobo da FN. Pelo contrário, a classe trabalhadora tem todo o potencial - se exceder suas divisões, se lutar com um programa hegemônico que reflita as aspirações profundas de todos os setores, especialmente os mais explorados do proletariado, como os trabalhadores precarizados, os desempregados e os jovens dos subúrbios - em transformarem-se novamente nas chamadas classes perigosas para o domínio da burguesia, que tem caracterizado a vida (e a morte) do movimento operário francês com suas gloriosas e heroicas páginas de lutas e revoluções.

O discurso e a campanha eleitoral de Poutou mostram que a partir de uma lógica de classe – em oposição a toda a lógica cidadã como a do projeto estratégico de um "PODEMOS francês" que impulsiona uma parte da direção histórica da ex-LCR/ primeira minoria da direção do NPA – é possível romper com a armadilha infernal identitária ou com base em supostos valores culturais de neoliberal/modernizado contra conservador/tradicional, associando os trabalhadores a esta segunda opção, o que só serve para justificar dois projetos burgueses reacionários: um neoliberalismo europeísta e um nacionalismo chauvinista. E, por isso, a campanha de Poutou serviu para dar moral e esperanças a um setor dos explorados.

Notas

[1] Nome do ex-secretário-geral do PCF que selou o acordo com Mitterrand, que permitiu à esquerda pela primeira vez para chegar ao poder na V República nascida em 1958.

[2] “L’illussion du bloc burgeois”, Bruno Amable e Stefano Palombarini, Raisons d’agir: 2017

[3] Na mesma nota, Terra Nova diz sem nenhuma demonstração factual, mas apenas com base na sua ideologia, que "Pela primeira vez, depois de trinta anos, um partido político está em correspondência com o conjunto de aspirações dos trabalhadores." Dizemos ideológicas porque todas essas afirmações têm a finalidade precisa de liquidar simbolicamente toda a potencialidade progressiva ou capacidade libertadora do proletariado. A agressividade de suas propostas, que ainda estão no campo midiático e poderiam sofrer o mesmo que Philipe Poutou em um dos programas de televisão de variedades mais assistidos aos sábados, tem o papel reacionário de liquidar do imaginário coletivo o enorme peso dos trabalhadores e suas lutas na consciência das massas, ligados à história mais ou menos recente da França, onde todos os avanços sociais foram alcançados graças à luta da classe operária, desde a redução de horas de trabalho ou férias remuneradas, para citar algumas conquistas sociais, ou até mesmo coisas impensadas, como o Festival de Cannes, em que o CGT desempenhou um papel importante na sua criação.

[4] “‘L’électorat’, de Front National. Retornar duas ou três ‘idées reçues’, Patrick Lehingue em "les Classes populaires et le FN", Edição de Croquant: 2017 pág. 38

[5] Para Laurrent Joffrin, diretor do socialdemocrata Libération: "O encerramento (punchline, no texto francês) ‘para nós, quando somos convocados [pela polícia], não há imunidade operária’ permanecerá nos anais dos debates presidenciais".

[6] No dia de hoje uma pesquisa coloca Poutou como o quarto político mais convincente, com 27%, à frente de Fillon e Benoit Hamon, do PS e próximo de Marine Le Pen. A pesquisa é liderada por Mélenchon, que depois do primeiro debate goza de enorme popularidade, seguido de longe por Macron.

Tradução: Barbara Molnar

 
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