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TRIBUNA ABERTA
A farsa farroupilha: o preço da liberdade para os lanceiros negros
Cassius Vinicius

Quatro artigos, um por semana, sobre a criação de uma mitologia entorno da Guerra dos Farrapos que foi financiada com o suor e sangue dos negros que jamais receberam sua prometida liberdade.

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Ilustração: Thiago Krening

NOTA AO LEITOR: as palavras que denotam o significado de propriedade em relação a seres humanos foram colocadas em itálico para melhor destacar a repulsiva ideologia da época.

Reconsidere por um instante tudo (ou o pouco) que já ouviu sobre a famosa “Revolução” Farroupilha ou Guerra dos Farrapos. Esqueça por um momento a história heroica de luta da população sul-rio-grandense por autonomia, melhores condições de vida para seu povo e pela liberdade de seus negros escravizados. Desconsidere as lindas histórias de amor e bravura da minissérie da TV Globo, A Casa das sete mulheres, que apresentou a perspectiva de sete mulheres (brancas) da família dos líderes farroupilhas durante os 10 anos do conflito.

Esse é o primeiro de quatro artigos que serão publicados exclusivamente no Esquerda Diário e que têm como objetivo expor a realidade de um Brasil escravagista do séc. XIX, desconstruir a mitologia entorno da Guerra dos Farrapos e revelar, através da perspectiva dos negros da época, os verdadeiros ideais capitalistas de uma elite branca ao sul do Brasil. Além de apresentar como o conflito se encontra no imaginário da população gaúcha atual.

1835 - Sul do Brasil

A história “oficial” dos livros didáticos afirmam que a Guerra dos Farrapos que resultou na temporária República Rio-Grandense foi “um conflito regional contrário ao governo imperial brasileiro com caráter republicano e abolicionista”. E ocorreu na província de São Pedro do Rio Grande do Sul – que a partir daqui será referida por seu nome atual, Rio Grande do Sul –, entre 20 de setembro de 1835 a 1 de março de 1845”
 
A Guerra dos Farrapos não pode ser considerada uma guerra popular por melhores condições de vida e trabalho, mas deve ser entendida como um conflito entre as classes dominantes do Rio Grande do Sul e o Império do Brasil (sob o comando de Dom Pedro II, uma criança de 10 anos). Em poucas palavras, tratou-se de uma guerra entre latifundiários gaúchos e o governo imperial (que será referido apenas como Brasil em alguns trechos).

Por que os estancieiros se revoltaram?

A classe dominante e escravagista gaúcha (ricos fazendeiros) estava descontente, pois o governo do Brasil havia aumentado os impostos sobre seus produtos (couro e charque), tornando a importação de produtos uruguaios muito mais barata para o resto do país. Embora se aceite que esse foi o estopim para o conflito, muitos estancieiros já haviam burlado esse obstáculo ao lucro. O maior “herói” gaúcho, Bento Gonçalves da Silva, presidente da República Rio-Grandense (como também muitos outros fazendeiros) enviava seus produtos ao Uruguai e de lá o produto era exportado de volta ao Brasil, burlando assim os altos impostos sobre os charque e o couro gaúchos.

Os Lanceiros Negros... [ou bucha-de-canhão?]

Imagem de Thiago Krening

Os lanceiros eram antes de tudo bravos soldados. Gente da maior coragem possível, que lutaram sonhando com a liberdade, tão prometida pelos líderes brancos e ricos. No imaginário atual, os lanceiros eram homens fortes e adultos que ganharam sua liberdade com o final do conflito. Seria possível que um país escravagista do século XIX libertasse seus escravos cumprindo a promessa de guerra? Parece pouco provável...

Com a necessidade de aumentar sua infantaria, o exército farroupilha passou a recrutar os trabalhadores escravizados, inclusive crianças negras. A verdade é que, esses negros não pertenciam aos farrapos. Eram os trabalhares escravizados daqueles que apoiavam o império do Brasil e que, iludidos pela promessa de serem libertados, fugiam para o lado dos revoltosos ou eram capturados em batalha. Os ricos líderes farroupilhas não doavam seus escravos para lutarem, no máximo os vendiam ou alugavam. Quando um homem branco era chamado a servir, ele podia enviar em seu lugar (ou no lugar de seu filho) um de seus trabalhadores escravizados.

Ideais farroupilhas x ideais dos negros

Aqui reside uma confusão no imaginário gaúcho sobre o assunto. Os negros não lutavam pelos ideais dos farrapos (mais dinheiro e menos impostos). Eles iam a guerra “em troca” da promessa de receberem sua carta de alforria.

Pois bem. Já próximo ao fim do conflito (1844), a negociação de paz com o império – que não pode ser confundida com uma negociação entre dois países, já que o governo do Brasil não reconhecia o Rio Grande do Sul como uma república -, serviria somente para anistiar e, até mesmo, indenizar os ricos estancieiros que haviam gastado rios de dinheiro para manter o trem da guerra.

Mas havia um empasse para se chegar a paz: “o que fazer com aqueles negros que estavam lutando ao lado dos farrapos, mas que pertenciam ao império?” Haviam duas possibilidades. A primeira (exigida pelo império) era que se devolvesse os escravos a seus antigos donos. E a segunda era libertá-los.

A solução mais fácil

Prontos para receberem sua alforria, os Lanceiros Negros e o restante das tropas comandadas por David Canabarro (outro “herói gaúcho”) se encontravam em Porongos (atual município de Pinheiro Machado). Os livros escolares descrevem o episódio da seguinte maneira: “no dia 14 de novembro de 1844, as tropas farroupilhas de Canabarro foram atacadas de surpresa por tropas do governo do Brasil, matando grande parte dos soldados negros.

O que realmente aconteceu?

É claro que a real história se deu de outra maneira. Ao visitar o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul na cidade de Porto Alegre, encontramos alguns fatos espantosos nos documentos oficiais.

Antes de tudo, é importante ressaltar que não havia igualdade nas tropas farroupilhas, muito menos democracia racial. Negros e brancos marchavam, comiam, dormiam, lutavam e morriam separadamente. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos, e jamais um negro chegou a um posto significante de comando (como apresentado pela TV Globo em sua minissérie). Os Lanceiros Negros eram proibidos de usar espadas ou armas de fogo de grande porte. Tampouco lutavam a cavalo. “Sua arma principal era a grande lança de madeira que lhes deu nome e fama, algumas facas, facões, pequenas garruchas, os pés descalços, a bravura e o anseio pela liberdade prometida” (Ferreira, Hemerson, 2000).

Documentos militares comprovam que o general Canabarro (farroupilha) ordenou que todo o armamento no acampamento dos soldados negros fosse recolhido um dia antes da carnificina. E na madrugada do dia 14 de novembro de 1844, os soldados imperiais sob o comando do general Moringue, atacou as tropas farroupilhas, avançando somente contra o acampamento dos negros que estavam em condições desiguais de luta e totalmente desarmados. Estima-se que 600 a 700 homens negros foram cruelmente assassinados. Dava-se assim uma solução para “o problema dos negros”.

As mentiras desmentidas

Outros documentos militares aprovam que Canabarro (farroupilha) sabia que as tropas inimigas se aproximavam, já que havia se confrontado com elas dois dias antes. Além disso, havia sido avisado que os inimigos se aproximavam pela irmã de general Netto que ali se encontrava. E o ponto mais relevante de todos é uma carta enviada ao chefe do exército imperial no sul e assinada pelo Barão (futuro duque) de Caxias, pedindo que ele avançasse com “suas marchas de maneira que no dia 14, às duas horas da madrugada possa atacar as forças ao mando de Canabarro que estará neste dia no cerro dos Porongos (…)”, pois o chefe farroupilha estava ciente da emboscada.

A carta também diz:
“No conflito, poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro”.

E assim às 2h da manhã do dia 14 de novembro de 1844, os negros foram simplesmente dizimados a sangue frio, queimados, esquartejados e massacrados; e o empasse para o acordo de paz foi finalmente superado com a ajuda e o aval dos líderes “abolicionistas e progressistas” farroupilhas. Segundo a história oficial, os que sobreviveram foram libertados.

O destino dos sobreviventes

Os negros que sobreviveram foram levados a cidade de Rio Grande (RS) e de lá embarcados em um navio chamado “triunfo da inveja” que os levou ao Arsenal da Marinha no Rio de Janeiro, onde permaneceram escravizados sob a tutela do Império que os alugava para famílias abastadas para realizar uma das atividades mais degradantes da época: o transporte diário de excrementos humanos (pois não havia esgoto).

Os excrementos era acumulados em barris nas casas e depois eram transportados pelos escravos nas costas até o mar. No caminho o conteúdo dos barris escorria pelas costas dos negros e, como esses resíduos possuem amônia, a pele desses seres humanos ia esbranquiçando, manchando-os com listras e por isso eram conhecidos como “tigres”. O termo “tigrada” que no dicionário refere-se a “pessoas de baixo nível” é um termo de origem absolutamente racista.

Os que ainda assim sobreviveram a essas humilhações foram levados mais tarde à Guerra do Paraguai, mais uma vez com a promessa de liberdade.

A continuação

Nos próximos artigos apresentaremos com mais detalhes essa história obscura da mitologia dos farrapos que não deixam dúvidas sobre a identidade que unia chefes imperiais e farroupilhas no medo e no ódio aos seus trabalhadores negros. Abordaremos mais amplamente essa “revolução” que se dizia humanitária e abolicionista, mas que se financiou vendendo negros no Uruguai. Essa é uma tentativa de mantermos viva a memória daqueles que encontraram sua alforria na morte.

Bibliografia

  •  FERREIRA, Hemerson. Da Revolta à Semana Farroupilha: entre tradição e a história. http://prod.midiaindependente.org/en/blue/2009/08/451359.shtml
  •  BENTO, Claúdio Moreira. O negro e descendentes na sociedade do Rio Grande Do Sul (1635- 1975). Porto Alegre, RS: grafosul, 1976.
  •  BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. A incrível saga de um país. São Paulo: ática, 2003.
  •  DONATO, HernâniDicionário das Batalhas Brasileiras. São Paulo: Ibrasa, 1987.
  •  MACHADO, Cesar Pires. Porongos : Fatos e Fábulas. Evangraf, 2011.
  •  FACHEL, José Plínio Guimarães. Revolução Farroupilha. Pelotas: EGUFPEL, 2002.
  •  FERREIRA, Hemerson. Da Revolta à Semana Farroupilha: entre tradição e a história. http://prod.midiaindependente.org/en/blue/2009/08/451359.shtml
  •  FLORES, Moacyr & FLORES, Hilda Agnes. Rio Grande do Sul: aspectos da Revolução de 1893. Porto Alegre: Martins-Livreiro, 1993.
  •  GOLIN, Tau. Bento Gonçalves, o herói ladrão. Santa Maria: LGR, 1983.
  •  LEITMAN, Spencer. Raízes sócioeconómicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  •  MAESTRI, Mário. "O negro escravizado e a Revolução Farroupilha". In: O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 1993, pp76-82.
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