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LITERATURA E REVOLUÇÃO
A Revolução russa em verso e prosa (parte1)
Afonso Machado
Campinas
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O furacão de Outubro varreu a burguesia russa e consequentemente a literatura representativa desta classe social. Se são as palavras que correm atrás da história, e não o contrário, a Revolução russa de 1917 ergueu um novo vocabulário político, uma nova fala, um solo vulcânico que fez com que uma nova literatura entrasse em erupção. Sim, assustemos mais uma vez o intelectual anticomunista, histérico nas redes sociais e assombrado com a memória deste acontecimento que redefiniu os rumos da história contemporânea. Tratar da literatura soviética nos 100 anos da Revolução russa, significa conjugar o verbo num tempo político que o capitalista toma como erro histórico.

Como defensores bem pagos da ordem capitalista, intelectuais que atuam nos espaços oficiosos da cultura não podem admitir a existência de uma literatura revolucionária. Estes empregadinhos do capital esforçam-se ainda mais para assegurar o status quo quando um evento histórico, do porte da Revolução de 1917, chega no seu centenário: as reflexões históricas sobre este episódio divisor de águas, pode alimentar, servir como ponto referencial para o escritor e o leitor de origem trabalhadora. Para os conservadores é como se uma caixa vermelha de Pandora devesse permanecer, a todo custo, fechada. Mas a verdade que todo militante comunista conhece, é que a Revolução russa compreende uma escola política: o bolchevismo apresenta uma prática internacionalista que também contempla as questões culturais. A arte que expressou a construção socialista na Rússia revela lições que ultrapassam fronteiras espaciais e históricas. Encontramos na literatura de gente como Vladmir Maiakóvski, Máximo Gorki, Isaac Bábel, Nicolai Ostrovski e muitos outros, sólidos objetos que ficam em descompasso com os ponteiros da ideologia dominante.

É claro que o legado dos escritores soviéticos deve ser, sob o ponto de vista marxista, visto de modo crítico: o cosmopolitismo/vanguardismo da literatura revolucionária dos anos 10 e 20, contrasta seriamente com o retrocesso estético representado pelo Realismo socialista, fonte usada por críticos e professores reacionários para difamar (e ocultar) tudo o que existiu de novo, moderno, revolucionário na produção literária soviética. O importante é cultivar na memória o caráter de ruptura das experiências estéticas que atravessaram o processo revolucionário: entre a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro, entre a Guerra Civil (1918-21) e a construção da União Soviética, a arte do verbo não ficou muda. Quando os bolcheviques viraram a mesa e estabeleceram um governo operário vitorioso, escritores e artistas de esquerda preocuparam-se em traduzir uma nova realidade.

O desejo de ruptura já era anterior à tomada do poder pelo proletariado, quando por exemplo, os cubofuturistas afirmavam em seu manifesto Bofetada no Gosto Público(1912) que “Somente nós somos o rosto do nosso tempo. A corneta do tempo ressoa na nossa arte verbal (...)“. E mais adiante apresentam o caráter programático de uma nova literatura: “(...) Ordenamos que se respeite o direito dos poetas: 1- a ampliar o volume do vocabulário com palavras arbitrárias e derivadas(neologismos); 2- a odiar sem remissão a língua que existiu antes de nós; 3- a repelir com horror da própria fronte altaneira a coroa daquela glória barata que fabricastes com as escovas de banho; 4- a estar fortes sobre o escolho da palavra “ nós “ num mar de assobios e indignações“(...). Neste barulhento texto assinado por D. Burliuk, A. Kruchenik, V. Maiakóvski e V. Khlenikov, afirma-se uma vontade revolucionária perante a tradição literária: numa Rússia predominantemente rural, marcada pela tirania do czarismo, esta violência futurista era um perigo para a cultura dominante. A vontade transformadora aproximava os jovens poetas rebeldes da Revolução.

A caricatura mais comum que é feita da literatura que nasce com a Revolução russa, é aquela em que o escritor suprime as emoções, arrasa com a individualidade, arrastando friamente a escrita para a elaboração de uma triste representação coletivista. Na primeira adaptação cinematográfica do romance Doutor Jivago, do escritor russo Boris Pasternak (obra que ao narrar a Revolução russa, apresenta o protagonista Yuri Andreyevich Jivago, médico e poeta que revela uma postura omissa diante da nova realidade política) esta caricatura ganhou força. Num diálogo entre o poeta Yuri e o dirigente soviético Strelnikov, o segundo personagem afirma ao primeiro que admirava sua poesia, mas que não a admira mais, pois seus versos tratam de assuntos pessoais, estão enraizados num período anterior à Revolução e logo não adequam-se mais à nova realidade cultural, já que “a vida pessoal foi destruída pela história“. Será que a literatura trazida pela Revolução invalidou os sentimentos/a vida pessoal do poeta? De qual poeta? Na Rússia revolucionária, escrever seria agora a possibilidade real de um ato plenamente humano e não um privilégio de classe: a necessidade de superar a trágica divisão entre trabalho braçal e trabalho intelectual, marca da história das civilizações, colocou-se como tarefa de longo prazo da cultura revolucionária em construção. O combate ao analfabetismo e a luta pela criação de uma literatura que exprime a perspectiva política do proletariado, eram funções do mesmo front. Contrariando a caricatura que insiste na supressão da criatividade do individuo, os fatos mostram a explosão de inúmeras tendências estéticas que não sufocavam mas fortaleciam a individualidade, os modos de expressão.

Escritores e intelectuais russos, das mais variadas proveniências literárias e políticas, reagiam de diferentes maneiras diante da Revolução. Em Literatura e Revolução, Trotski traça um panorama histórico das principais tendências literárias daquele momento: os escritores que exprimiam a visão das classes derrubadas pela Revolução(e que portanto teriam um destino artístico moribundo), os chamados companheiros de viagem (autores heterogêneos que não se identificam ideologicamente com a Revolução mas aproximam-se do ritmo cultural de suas transformações), o futurismo (que embora estivesse longe de representar oficialmente o socialismo apresentava elos estéticos para o desenvolvimento histórico da literatura revolucionária) e as tendências em torno da chamada arte proletária (Trotski travava uma conhecida polêmica com o pessoal do Proletkult, discutindo a impossibilidade histórica de uma cultura proletária). O livro também aborda outras questões que não saíam da agenda cultural da Revolução, tais como a Escola de Poesia Formalista perante o marxismo e as discussões sobre o que seria arte revolucionária e arte socialista. Esta obra ainda é uma parada obrigatória para aqueles que desejam entender o papel revolucionário da literatura.

Ainda que para muitos existam possíveis discordâncias frente ao conjunto das análises do dirigente político que também exerce a crítica literária, o fato é que Trotski pinta com as vivas cores do marxismo um preciso panorama cultural no qual a literatura revolucionária poderia ter se desenvolvido: infelizmente, como sabemos, tal desenvolvimento não ocorreu devido ao stalinismo que engessaria as letras e o pensamento. Portanto, na hora de avaliarmos as contribuições literárias presentes em solo soviético (uma tarefa que pode ser despertada por artigos mas que, para seu aprofundamento, requer numerosos estudos de folego) nos atiramos mais uma vez no centro do furacão dos primeiros anos da Revolução: no redemoinho de poemas, romances, contos, manifestos e peças de teatro precisamos elencar os germes da arte revolucionária, os antecedentes que separam a literatura combativa da impostura burocratizante. Quando Maiakóvski afirma no seu poema A Nossa Marcha, que “Nós, com a inundação do segundo dilúvio/Lavaremos as cidades do mundo...“, estava registrada uma poética internacional da classe trabalhadora: seria a partir do proletariado que nasceria uma arte nova, um dilúvio político e cultural. Na segunda parte deste artigo vamos fazer um breve mergulho neste dilúvio.

 
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