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TRIBUNA ABERTA
A Revolução Húngara de 1956
Antonio Liz
Historiador, Madri

Há 60 anos, em um ambiente de desestalinização cosmética, a Hungria vai tentar caminhar para um verdadeiro socialismo, um socialismo democrático. É a revolução húngara de 1956 contra a burocracia stalinista da URSS.

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Em 5 de março de 1953 morre Stálin e em fevereiro de 1956 Nikita Khrushchov lê, em meio ao XX Congresso do PCUS [Partido Comunista da União Soviética], um “informe secreto” denunciando os crimes de Stálin. Era jogar toda a culpa do sistema stalinista sobre um só homem, que se bem tinha sido sua cabeça, toda a casta soviética tinha sido seu apoio – Khrushchov entre eles – e todos eles foram beneficiados já que desfrutavam de condições materiais muito acima das que tinha o povo soviético. É neste ambiente de desestalinização cosmética quando em países como Polônia ou Hungria se vai tentar caminhar para um verdadeiro socialismo, um socialismo democrático. Vai ser a Polônia de Wladyslaw Gomulka que vai se enfrentar nas melhores condições com os burocratas do Kremlin porque Gomulka é um secretário geral do Partido Comunista Polaco que tem o apoio de seu aparato e com manifestações de massas a seu favor, o que lhe faz forte ante Moscou.

As reformas empreendidas por Gomulka na Polônia vão influenciar de maneira direta na Hungria. O Círculo Petöfi, que aglutinava desde 1955 os intelectuais não domesticados pelo aparato stalinista e que tinha organizado reuniões e debates sobre o autêntico socialismo influindo em amplos setores de estudantes, e os estudantes da Universidade Politécnica de Budapeste terão um papel primordial na convocatória para o dia 23 de outubro de 1956 de uma manifestação em solidariedade com as mudanças na Polônia de Gomulka, que acabarão transformando-se no começo da revolução política em Hungria.

Mas a solidariedade com a Polônia era simplesmente o catalisador das próprias demandas que os operários e os estudantes húngaros tinham. O clima social era de descontentamento pela penúria econômica gerada por uma economia estatizada e piramidal que não dava nenhuma atenção às necessidades materiais básicas da população e pela brutal repressão que era exercida através da polícia política, a AVH, cujos odiados membros eram conhecidos popularmente como os “avos”. Era tamanho o descontentamento latente na sociedade húngara que o próprio Khrushchov dizia que se continuasse esta situação o líder do aparato húngaro, o secretário geral do Partido dos Trabalhadores Húngaros (PTH) e primeiro-ministro, Mátyás Rákosi, seria “expulso da Hungria enforcado”.

A hierarquia soviética vai tentar amenizar o descontentamento social com mudanças por cima. Assim, desde Moscou foi organizada uma reunião com os aparatchitsi húngaros onde se acordou que o stalinista de velho estilo Rákosi seguisse como secretário geral do PTH mas que Imre Nagy exercesse de chefe de governo.

Imre Nagy durante seu mandato, 1953-54, quis implementar reformas. Seu programa juntava medidas como reduções de preços de produtos básicos, reduções de impostos às coletividades camponesas, revisar as coletivizações forçadas, aumento de salários, fomento da indústria leve e abolição dos campos de concentração. No entanto, esta mudança não se aprofundará pela resistência dos stalinistas recalcitrantes que voltaram com a estratégia de que o “Partido seguia considerando como sua tarefa mais importante o desenvolvimento da indústria pesada”. Frente à volta da velha política econômica stalinista, Imre Nagy terminará sendo tachado de desviacionista e expulso do PTH em novembro de 1955. O afastamento de Nagy estava relacionado de forma direta com as lutas pelo poder na nomenklatura soviética, onde Khrushchov lutava por consolidar sua liderança. Assim, a queda em desgraça de Georgi Malenkov, que propunha na URSS uma política econômica que desse alguma importância à indústria de bens de consumo, levou à queda de Nagy já que o aparato do partido húngaro estava submetido à direção do PCUS.

O fracasso das reformas desde dentro não só não parava os problemas econômicos e políticos senão que os acentuava. Ante sua agudização a burocracia fez uma mudança epidérmica, em 21 de julho de 1956 Ernö Gerö é nomeado secretário geral do PTH substituindo Mátyás Rakósi. Em vão, as mobilizações sociais tiveram uma primeira grande manifestação em 6 de outubro nos funerais que reabilitavam Lászlo Rajk, um membro do PTH que tinha sido condenado em um típico julgamento-farsa stalinista e executado. Outro dado informa que a conjuntura política mudava, em 14 de outubro Imre Nagy era readmitido no PTH.

Assim estava o clima político quando os estudantes convocaram a manifestação em solidariedade com as mudanças na Polônia para o dia 23 de outubro. As autoridades húngaras duvidaram, primeiro negaram sua autorização e depois deram, o que indica a insegurança política da alta burocracia húngara. A manifestação, que começou às 15h, logo se transformou em uma grande concentração de estudantes e operários que tinha diferentes braços pelo centro de Budapeste. Nesta manifestação o símbolo mais portado eram bandeiras húngaras com o escudo da “república popular” cortado, também havia grandes retratos de Lênin e as consignas iriam se dinamizando ao calor dos acontecimentos; do “viva os polacos” se passará a “morram os stalinistas” e à derrubada de uma colossal estátua de Stálin. Cantavam a Marselhesa e recitavam poemas do poeta nacional Sándor Petöfi.

O discurso que Ernö Gerö, o secretário geral do PTH, deu pela rádio foi fruto do nervosismo da casta burocrática húngara. Chamou os manifestantes “contrarrevolucionários” e “canalhas” esquentando os ânimos. Por este fato, uma parte da multidão se dirigiu às sedes da rádio com o objetivo de ocupá-la e transmitir dali as medidas programáticas que o movimento ia elaborando, medidas como a saída imediata das tropas soviéticas do solo húngaro, a formação de um governo sob a direção de Imre Nagy e a eleição por sufrágio universal direto e secreto de uma nova Assembleia Nacional. Mas a rádio estava ocupada por membros da polícia política, a AVH, que começou a disparar contra a multidão entre as 20:00 e as 21 horas. Foi uma matança que desencadeou uma resposta popular violenta. Os contingentes mais decididos dos estudantes e operários, sobretudo jovens, foram armar-se nos quartéis do exército húngaro onde os soldados não apresentavam resistência e entregavam ou deixavam pegar o armamento. Tinha começado a insurreição popular, haverá combates por todo o centro de Budapeste e nos arredores das fábricas enquanto os bairros operários se transformavam nas zonas seguras onde se instalavam os quartéis da revolução. A juventude operária e estudantil são o coração e a massa das improvisadas milícias populares.

O dia seguinte, 24, foi muito rico em fatos. Nas fábricas não se trabalha, se luta. Começou uma greve geral, onde os operários já colocam suas próprias reivindicações, como o controle das fábricas e o aumento de salários. Imre Nagy assume o cargo de primeiro-ministro, substituindo András Hegedüs, e forma gabinete. O mal é que Nagy não se põe à frente do movimento, é um honrado reformista mas não um revolucionário. Ao não apoiar-se decididamente no movimento de operários e estudantes fica mediado pelo aparato stalinista controlado por Ernö Gerö. Um fato nos informa disto com clareza, quando os hierarcas húngaros se reúnem para decidir o novo governo Imre Nagy não participa da reunião, fica esperando no corredor a decisão dos altos aparatchitsi. Por sua vez, o movimento não tem uma direção política própria senão que núcleos dirigentes como comitês de estudantes ou comitês de fábricas onde se luta. A falta de uma direção política impossibilita o massivo movimento de operários e estudantes de lutar estrategicamente, com o objetivo de tomar eles mesmos o poder.

A casta burocrática húngara, conduzida por Gerö, assustada pela insurreição que desencadearam, pediram a Moscou o apoio do exército soviético. Assim, os tanques soviéticos entram pela primeira vez em Budapeste. Os soldados soviéticos creem que vão lutar contra a contrarrevolução quando na realidade dos fatos seus chefes políticos do Kremlin são os contrarrevolucionários porque querem afogar a luta pelo autêntico socialismo, o socialismo democrático. E isso claro porque o movimento se dirá várias vez que a luta não é para restaurar o capitalismo senão para caminhar para o socialismo, como explicita a consigna geral “não devolveremos nem terras nem fábricas”. Quando estudantes e operários jovens trepam nos tanques e explicam aos tanquistas pelo que lutam estes se mostrarão inseguros, decidirá a oficialidade. Ao mesmo tempo, algumas tropas húngaras apoiam as soviéticas enquanto outras estão indecisas e outras armam operários e estudantes e se unem ao movimento. O exército húngaro não se movimenta só em uma direção, duvida entre a repressão ou a solidariedade. É um exemplo da ambivalência dos militares húngaros o general Pal Maléter que primeiro está contra o movimento e depois se une a ele.

Antes destes fatos, Moscou já tinha mandado quadros stalinistas como o ideólogo Mikhaíl Súslov e o tecnocrata Anastas Mikoián para a Hungria para avaliar a situação. Estes e outros representantes do Kremlin estarão em permanente contato com Imre Nagy e seu governo, pelo que em Moscou sabem de primeira mão o que quer fazer o governo de Nagy. Este vai tentar harmonizar petições populares e acordos com os representantes moscovitas.

Os acontecimentos se sucedem. Em 25 de outubro as tropas soviéticas de ocupação recuperam o edifício da rádio enquanto outras se posicionam frente ao Parlamento. Os “avos” farão o clássico papel de provocadores atirando desde o Ministério do Interior, que está em frente ao Parlamento, em duas direções, contra a multidão e contra os soldados soviéticos. Depois do tiroteio que acontece o povo húngaro põe os mortos, ao redor de trezentos cadáveres jazem na praça. Esta matança incrementa a luta, estende a greve geral e incita a repressão popular. Assim, não é estranho que aconteçam linchamentos de “avos” em Budapeste e que em ocasiões seus cadáveres sejam pendurados pelos tornozelos e que desde a multidão cuspam e, inclusive, que apaguem as bitucas dos cigarros nos seus corpos. Também em Mosonmagyaróvar “avos” serão julgados porque previamente haviam disparado contra uma manifestação assassinando umas cem pessoas, entre elas crianças e mulheres, e deixando feridas outras duzentas. Isto levou ao levantamento armado e ao ajuste de contas com os “avos” assassinos.

Imre Nagy segue negociando com os emissários moscovitas, fruto disto é que o exército soviético se retira e no dia 28 se forma oficialmente o governo de Nagy. No dia 30 este governo aceita os “conselhos” dos trabalhadores nas empresas, ou seja, que estas sejam governadas pela classe trabalhadora. Também anuncia publicamente que se propõe a levar negociações diretas com a União Soviética para ter umas autênticas relações de amizade, fundadas no princípio de igualdade e de respeito à independência nacional. János Kádár anuncia a criação do novo partido, o Partido dos Trabalhadores Socialistas Húngaros (PTSH), e afirma que só poderão ser membros dele “os que não tenham nenhuma responsabilidade nos crimes do passado”. Ao mesmo tempo, pela geografia húngara, vão se consolidando os conselhos, parlamentos diretos da classe trabalhadora, dos estudantes e dos soldados, como é o caso do Conselho de Miskolc, de Györ, de Sopron, de Magyaróvár, entre outros. A imprensa livre flui como a água, os trabalhadores das imprensas só se negam a imprimir o jornal Virradat porque é de orientação fascista. Ante estes fatos e intenções, no dia 31 Imre Nagy diz à multidão congregada em frente ao Parlamento: “amigos meus, a revolução saiu vitoriosa”. Parece que tudo vai bem, que um governo soberano, as eleições livres e o controle da economia pelos próprios trabalhadores é o horizonte.

Ante estes fatos o temor da burocracia moscovita, com Khrushchov à frente, é dupla. Por um lado, tem medo da consolidação de uma revolução política já que esta não se submeteria a Moscou e influiria no movimento operário de dentro e de fora do entorno soviético, e, por outro lado, não quer perder força na arena internacional já que então os EUA os veriam como “uns tontos” (Khrushchov). Assim, Moscou vai se fechar a uma saída negociada, o que trará o não cumprimento dos acordos que seus enviados tinham pactuado com o governo de Nagy, o que levará, por sua vez, a que este formule propostas novas como a saída da Hungria do Pacto de Varsóvia e a petição de ajuda à ONU – este último fato demonstra que Nagy também tem ilusões políticas irreais ao pensar que os EUA podem apoiar a revolução política húngara, como está dizendo cinicamente a Rádio Europa Livre. No entanto, o acelerador destas intenções do governo Nagy será a notícia da volta das tropas soviéticas, que não entra no acordado. Então Imre Nagy comunicará ao embaixador soviético, Yuri Andropov, que a Hungria deixará o Pacto de Varsóvia. Mas para que não se gere confusão sobre o programa, no dia 3 de novembro os representantes do governo de Nagy dão uma conferência de imprensa na qual anunciam que “o governo é unânime no que diz respeito a não permitir a restauração do capitalismo”, afirmação que está em harmonia com o movimento. Mas os burocratas soviéticos já tomaram a decisão de esmagar a insurreição e os representantes do governo de Nagy que estão negociando com os supostos representantes soviéticos são detidos pelos próprios soviéticos na noite do dia 3 ao 4, entre eles o Ministro de Defesa, o general Pal Maléter, que estava negociando com os mandos do exército soviético em Tököl, ao sul de Budapeste.

Na madrugada do dia 3 para o dia 4 de novembro o exército soviético invade pela segunda vez a Hungria, será a definitiva. Imre Nagy se refugia na embaixada da Iugoslávia, sairá com a promessa de que sua vida será respeitada, mas o que ocorrerá é que o deterão, o julgarão e o fuzilarão no dia 16 de junho de 1958, o mesmo dia que Pal Maléter será fuzilado e um dia depois do fuzilamento de Miklós Gimes, que também havia sido expulso com Nagy do PTH em 1955, editor do jornal 23 de Outubro e fundador do Movimento Democrático Húngaro pela Independência. Quando os stalinistas julgam Nagy, este afirmará que “tentei por duas vezes salvar a honra da palavra socialismo na bacia do Danúbio [rio do leste europeu]: em 1953 e em 1956. A primeira me vi impedido por Rákosi, a segunda pelo exército soviético (…). Estou seguro que a História condenará meus assassinos”.

O Kremlin implanta um governo presidido por János Kádár que mudou de lado, do governo de Nagy a peão “reformista” de Moscou. Kádár manterá uma linguagem reformista que confundirá as massas de operários e estudantes que sem direção política própria irão se esgotando. A revolução política que poderia ter trazido o socialismo para a Hungria socializando a economia estatizada e destruindo a política piramidal tinha terminado. A contrarrevolução stalinista tinha triunfado. O socialismo se distanciava ainda mais da URSS e de seus satélites.

Tradução: Francisco Marques

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