Dos Coletes Amarelos aos Jacobinos Negros e a revolta do povo haitiano hoje

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Imagem e texto por Juan Chirioca

O cenário internacional está marcado atualmente pela instabilidade que provoca o governo Trump à cabeça do imperialismo norte-americano e sua guerra comercial contra a China. Um cenário com a direita fortalecida na “internacional reacionária” de Trump, de Netanyahu e de Bolsonaro. Mas nem tudo está indo à direita no mundo : a luta dos Coletes Amarelos na França é um contraponto num dos principais países imperialistas de hoje. Isso gerou seu impacto ao redor do mundo e inclusive no Haiti. Nesse país, que,antigamente já foi uma das principais e mais prósperas colônias francesas e agora atravessa uma profunda crise econômica e social, a população em massa ocupa novamente as ruas,exigindo a renúncia do atual presidente Juvenel Moise.

Com manifestações há mais de uma semana, a  capital Porto Príncipe continua paralisada pela revolta das massas, por barricadas e bloqueios nas ruas não só da capital, mas nas principais cidades do país. Ali, a brutal repressão das forças de segurança contra as manifestações já provocou 9 mortos.

O fato que desencadeou a onda de protestos no Haiti foi a impunidade que permeia o caso de corrupção de malversação de mais de 2 bilhões de dólares dos fundos do PetroCaribe entre 2008 e 2016. O escândalo envolve 15 ex-ministros funcionários do governo e também uma empresa do atual presidente Juvenel Moise, do PTHK, partido de centro-direita. Algo similar ao processo aberto pela operação Lava Jato no Brasil, impulsionada pelo imperialismo pode estar sendo operada no Haiti  uma jogada semelhante àquelas que visam influir na política interna dos Estados . Mas o resultado desses processos desatados nos países atrasados nem sempre coincide com a vontade norte-americana, ainda mais em uma crise como a que está colocada no Haiti. O escândalo da PetroCaribe, é importante dizer, pode ajudar os próprios EUA a se apoderarem do petróleo venezuelano, aprofundando a crise do chavismo do governo de Maduro. Isso tudo veio à tona em agosto de 2018, quando se iniciou uma onda de protestos no Haiti, situação que se estendeu até novembro do mesmo ano, momento cujo ponto mais alto as greves generalizadas no país.

A entrada de 2019 no Haiti foi marcada pelo aprofundamento da crise econômica no país, com uma forte depreciação da moeda haitiana. Chegando ao ponto de o governo declarar estado de calamidade financeira, o que afetou o acesso a crédito das pequenas e médias empresas e os bens de primeira necessidade. Tudo isso numa sociedade em que metade da população sobrevive com menos de 2 dólares diários.

Opressão imperialista no Haiti e o FMI

A atual revolta no Haiti é uma continuidade dos protestos que aconteceram em julho de 2018  como resposta ao aumento dos combustíveis. Isso é parte do último acordo firmado com o FMI no Haiti, que além dessa diminuição dos subsídios do combustível incluía a privatização da empresa estatal de energia (EDH).

De todas as tragédias que assolaram o Haiti no passado, como o terremoto em 2010 ou o furacão Matthew, em 2016, a mais devastadora é a dominação imperialista que atravessa toda a história do país desde sua independência em 1804. Só a partir do papel histórico dos países imperialistas é que é possível entender o sofrimento e as misérias que se abate hoje sobre a população haitiana, contra a visão colocada de um país pobre e violento, incapaz de se desenvolver e imaturo para sua própria autodeterminação.

Pouco depois de ter  se tornado independente, diante de novas ameaças imperialistas de invasão francesa, os novos governantes haitianos “indenizaram” seus antigos senhores, os donos de escravos franceses, afundando o país em enormes dívidas. Já no século XX, foi o imperialismo norte-americano que tomou a frente da dominação sobre o Haiti, destruindo a agricultura do país forçando o êxodo das massas camponesas arruinadas aos centros urbanos a fim de aumentar dependência e precarização laboral do país, com o objetivo de obter uma taxa de lucro maior a partir de uma força de trabalho mais barata. O Haiti, como lugar da primeira revolução negra no mundo, foi perseguido e afogado com toda a força da dominação dos Estados Unidos.

O Cavalo de Troia da rapina imperialista, a MINUSTAH

Agora sim o Haiti ficava interessante para os investidores do capital financeiro imperialista instalar suas fábricas, como a Codevi, ligada ao capital imperialista do banco Chase Manhattan e localizada numa das zonas francas garantidas pela intervenção da ONU para baratear ainda mais os custos, numa verdadeira ditadura patronal dentro das fábricas com capangas armados, salários de fome, uma situação análoga à escravidão. Dentro dessas fábricas, o direito à organização dos trabalhadores obviamente não existe.

Nesse marco, em 2004, é montada a MINUSTAH, Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, que reuniu tropas de países como Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Equador, entre outros, além da polícia de mais de trinta países. Um plano orquestrado pelo imperialismo para garantir a exploração e o lucro capitalistas naquele país.

Quem liderou a missão por encargo dos EUA foram as tropas brasileiras enviadas ao Haiti pelo governo petista de Lula, que na época ainda não estava desgastado pela própria política de conciliação de classes e contava com alta popularidade tanto no Brasil como internacionalmente.  A MINUSTAH e suas tropas de “capacete azul” concentrou sua atividade ao redor da zona franca, lugar onde estão localizadas as grandes fábricas da indústria têxtil que aproveitam a isenção de impostos nas exportações para os EUA, inclusive reprimindo qualquer greve ou tentativa de resistência por parte dos trabalhadores. Agora, as tropas brasileiras de Lula não foram ao Haiti em missão de caridade ou só subserviência ao imperialismo norte-americano. Há interesse da burguesia brasileira, que fez investimentos e parcerias com o imperialismo em território haitiano.

A tragédia do terremoto em 2010 aprofundou ainda mais a miséria e sofrimento do povo haitiano. O Banco Mundial e o FMI aproveitaram-se da tragédia, dos 200 mil mortos e da destruição das grandes cidades, para avançar ainda mais na submissão da economia haitiana, assinando um empréstimo cujo valor e os juros, mesmo que adiando seu pagamento pelas instituições financeiras, nunca terminarão de ser pagos. Algo semelhante ao que também acontece com a dívida pública em países como o Brasil ou a Argentina, que hoje também se submete aos planos de “resgate” do FMI, um verdadeiro saque das economias locais. Em 2016, é outorgado novamente um empréstimo ao Haiti pelo FMI devido ao furacão Matthew.

O cavalo de Troia da missão humanitária da ONU acabou em 2017 pondo fim a suas operações de repressão e assassinato de trabalhadores que resistiam à exploração, de estupro de mulheres e mortandade em massa, como a que aconteceu em Cité Soleil, onde foram assassinadas mais de 30 mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Hoje, os militares que lideraram essas operações no Haití fazem parte do governo Bolsonaro, que defende um projeto de país que relega à juventude negra brasileira nas chacinas como a do Fallet no Rio de Janeiro, ou sufocamentos como o de Pedro Henrique no supermercado.

A classe trabalhadora em meio ao domínio imperialista

Hoje, em meio às revoltas, só 4 meses depois da saída das tropas, grupos de diplomatas e representante da Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (MINUSTAH) já articulam um retorno de tropas para reprimir novamente a luta do povo haitiano.

Ocorre que  mesmo com toda a opressão imperialista sobre a nação caribenha, a retirada das tropas do país foi sentida pelo Haiti e é um fator que permitiu que a luta do povo haitiano se desenvolvesse. Trata-se, mesmo com todas as limitações que impõe a opressão imperialista, de um novo fôlego para os trabalhadores e as massas poder voltar à cena depois de 13 anos de ocupação militar. Mesmo com as tropas fora do país, a ditadura patronal nas fábricas imperialistas no Haiti continua impedindo a organização sindical, que é um fator qualitativo determinante e poderia abrir novas possibilidades na luta por direitos dos trabalhadores haitianos. Questão que permitiria que a classe trabalhadora organizada entrasse em cena como sujeito político contra o imperialismo e o próprio governo.

Dos Coletes Amarelos aos jacobinos negros

Desde a luta contra o aumento dos combustíveis em julho de 2018, e novamente em novembro do mesmo ano, em meio ao processo de retirada das tropas do Haiti, seria interessante pensar o quê desses processos pode ter influenciado a explosão social dos Coletes Amarelos na França., Com certeza, o surgimento num dos principais países imperialistas de um fenômeno com a massividade e a força dos Gilets Jaunes, que já conquistaram o aumento do salário mínimo, é um fator revigorante para a luta dos trabalhadores e do povo pobre haitiano.

Ainda está em aberto as possibilidades dessa influência no Haiti, assim como a revolução francesa de 1789 levou, em 1791, à revolta dos escravos na colônia de São Domingos (hoje Haiti e República Dominicana), levantou o grito de liberdade e se rebelou contra os donos de escravos que falsamente declaravam liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto mantinham o comércio e o trabalho escravo nas suas colônias. Os Jacobinos Negros lutaram e derrotaram os gigantes imperialistas da Inglaterra, da Espanha e da França.

Da mesma forma, hoje, novamente, está colocado para o povo haitiano, vítima da opressão imperialista, se transformar em sujeito da sua própria libertação. Dessa vez, já como uma nação independente, a luta por liberdade coloca a necessidade de derrubar não só o governo de Juvenel Moise, mas todo o sistema de exploração capitalista e imperialista que deve sua riqueza ao comércio e ao trabalho de milhões de escravos na história. Essa perspectiva também está hoje colocada no Brasil, país com a maior população negra fora da África. É preciso  lutar contra toda a herança escravagista que hoje está presente na precarização laboral, na reforma trabalhista e da previdência, no assassinato da juventude negra nas favelas, o que Moro, Witzel e Bolsonaro querem aprofundar ainda mais.

Devemos lutar contra a repressão internacional dos países imperialistas. Essa experiência de repressão urbana adquirida pelas forças de segurança brasileiras é a que se aplica hoje em nossas favelas. O PT teve um papel criminoso de enviar e manter ali tropas  durante praticamente os 13 anos que durou a operação e seu governo. Faz parte das tarefas da esquerda no mundo inteiro mobilizar suas bases em apoio à luta do povo haitiano, reivindicando seu papel historicamente revolucionário, de primeira revolução negra triunfante. Como disse Marx aos trabalhadores britânicos: “nenhuma classe que apoie a opressão de outro povo poderá ser realmente livre”.

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