O liberalismo e seu fracasso histórico

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por Pablo Anino

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, os economistas clássicos, fundamentalmente Adam Smith e David Ricardo, lançaram as bases sobre as quais se tentou compreender o funcionamento do capitalismo como sistema. Na economia clássica, a existência de classes sociais era reconhecida. Em Smith isso não supunha antagonismo importante, porque pensava que o próprio desenvolvimento do mercado levaria ao bem-estar geral. Este não é o caso de Ricardo, que observou que trabalhadores e industriais, por um lado, tinham interesses conflitantes com os proprietários de terras, por outro: a ideia central de Ricardo é que os proprietários de terra, através da apropriação da renda agrária, impõem uma aumento nos preços dos alimentos, o que coloca pressão sobre os salários e a compressão dos lucros.

Karl Marx escreve O Capital (1867) como uma ferramenta crítica em relação à economia clássica, que considerava o capitalismo como o sistema mais perfeito de organização social que a humanidade encontrou. Em sua obra monumental, Marx expõe as leis que regem o funcionamento do capitalismo, suas tendências à crise e revela o segredo empresarial mais bem guardado: que o trabalho não pago ao trabalhador é a base do lucro. Isso é feito através da teoria do valor do trabalho, que explica o valor das mercadorias para o tempo de trabalho socialmente necessário que leva a produzi-las. Essa teoria reconhece seu desenvolvimento embrionário nos clássicos.

Marx reconhece a tentativa de Smith e Ricardo de realizar ciência, isto é, buscar uma explicação do funcionamento do sistema econômico, embora ressalte que eles encontraram um limite como representantes da classe capitalista: não puderam levar suas investigações até o fim para explicar o lucro, o que significava expor a exploração capitalista. Note-se que os clássicos e Marx falaram sobre economia política.

Para a economia posterior aos clássicos, Marx a chama de {vulgar}, pois perde qualquer intenção da ciência e torna-se diretamente apologética do sistema capitalista. Esse mesmo caráter vulgar terá o desenvolvimento da economia após a morte de Marx: depois dos clássicos há uma longa transição até que, para a década de 1870, a teoria econômica oficial sofre uma mudança radical da mão do inglês William Jevons, o austríaco Carl Menger e o francês Leon Walras, entre outros, que encontraram a escola da utilidade marginal e assentam os pilares da teoria econômica neoclássica. Começa um processo onde a economia é despojada de seu caráter político e social e procura imitar os métodos da física e da matemática.

A teoria neoclássica (que visa superar os clássicos), abandonou a teoria objetiva do valor, que explica que quanto vale a mercadoria é o tempo de trabalho que levou para produzí-la, para deslizar uma teoria subjetiva, que parte do indivíduo atomizado, concentra-se em análise da oferta e demanda, e deixa de lado qualquer consideração a um sistema econômico específico. Nesta transferência, a existência de classes sociais é apagada: todos os indivíduos, sejam eles trabalhadores ou capitalistas, se dissolvem em um “agente econômico” genérico. Nesse esquema de pensamento, que toma parte da elaboração de Smith, atribui-se uma natureza egoísta ao comportamento dos indivíduos: isto é, que a motivação que emerge do sistema capitalista competitivo é transformada em passagem mágica em uma característica natural do homem em todos os tempos e lugares. Dessa forma, a teoria econômica perde qualquer referência a uma determinação histórica específica. E leva ao extremo a existência teórica de equilíbrio entre oferta e demanda, embora na realidade essas construções ideais não é verificada: para os neoclássicos, a superprodução, subconsumo ou desemprego, são atritos anedóticos de intervenção do Estado que não deixa o mercado autorregulado resolver todos os problemas. Esta “modernização” teórica é a base das ideias de Javier Milei e José Luis Espert.

Eric Roll foi um dos maiores historiadores do pensamento econômico. Nascido no Império Austro Húngaro, assim como um acadêmico, ele era funcionário público e banqueiro. Isso indica que sua distância das ideias do marxismo e da classe trabalhadora não foi curta. No entanto, ao explicar a origem da economia moderna (neoclássica), ele aponta que:

elas reivindicam validade universal […] porque afirmam que formulam uma teoria do valor independente de qualquer ordem social específica. Contudo, não se pode duvidar que em suas origens a escola da utilidade também foi influenciada muitas vezes pelo desejo de reforçar os aspectos potencialmente apologéticos da teoria econômica. A teoria clássica [refere-se principalmente à de Adam Smith e David Ricardo, NdR] não foi forte o suficiente para suportar os ataques do crescente movimento operário [1].

Obviamente, o caráter reacionário contra a classe trabalhadora das ideias de Milei e Espert tem uma longa história.

 

A teoria e realidade

Desde a revolução industrial em Manchester em 1750 (para oferecer uma data de nascimento “oficial” ao capitalismo), o mundo liberal idílico nunca existiu realmente de uma forma “pura”: isto é, desprovido da “gordura” do Estado, do organizações de trabalhadores e todos os obstáculos “artificiais” ao livre comércio.

Para Karl Polanyi, um cientista austríaco que se dedicou à antropologia econômica, o nascimento do credo liberal só foi consumado em 1820, quando três dogmas adquiriram uma entidade: “o trabalho precisa encontrar seu preço no mercado; a criação da moeda deve estar sujeita a um mecanismo de auto-regulação; as mercadorias devem circular livremente de país em país sem obstáculos ou preferências” [2]. Todas as ideias que apaixonam os economistas midiáticos “modernos” dessas bandas.

Foi a frota da Grã-Bretanha que criou, em grande medida, a “liberdade” do comércio no mundo através da conquista de colônias e mercados. Assim como a mão de ferro do Estado foi a arma central para constituir um mercado de trabalho: Karl Marx explica como a acumulação primitiva constitui um longo e violento processo de expropriação dos camponeses e trabalhadores de seus meios de produção para que não tenham nada mais para vender do que sua força de trabalho. De fato, “O caminho do livre comércio foi aberto e mantido aberto, através de uma enorme demonstração de intervencionismo contínuo, organizado e dirigido a partir do centro” [3], diz Polanyi.

Esse mundo em que milhões de empreendedores – competindo uns com os outros através da ação da “mão invisível” do mercado auto-regulado – levam ao bem-estar de todos corresponde a uma história mítica. O mundo da livre concorrência, premissa das propostas dos liberais, nunca levou ao bem-estar geral e em termos históricos, está perecendo desde a era imperialista inaugurada no final do século XIX e início do XX.

A característica central da estrutura capitalista mundial desde então não é a livre concorrência, mas, ao contrário, a concentração e centralização do capital (seja na forma de monopólio ou oligopólio) onde uma ou poucas empresas dominam os principais ramos de produção de tal modo que a concorrência corporativa seja substancialmente modificada: a Ford, a General Motors, a Volkswagen, a Toyota, a Honda, a Renault, a Peugeot e algumas outras empresas governam a indústria automotiva; JP Morgan, Citibank, Deutsche Bank concentram movimentos financeiros; Os produtos tecnológicos estão sob o reinado da Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft, os “cinco grandes”.

Entre as duas guerras mundiais foi consumado o fracasso histórico das receitas liberais “puras” no caldo de crises brutais (como a de 1930), conflitos de guerra e revoluções. Segundo Polanyi:

Na década de 1920, o prestígio do liberalismo econômico atingiu seu auge: a privação dos desempregados para quem a deflação havia feito perder seus empregos, a precariedade dos funcionários demitidos sem lhes conceder sequer uma pensão miserável, o abandono dos direitos da nação e, até mesmo, a perda de liberdades constitucionais eram consideradas um preço justo a pagar para atender às demandas de manter orçamentos saudáveis e moedas sólidas, aqueles postulados a priori do liberalismo econômico [4].

A realidade jogou na lixeira da história a teoria neoclássica que Milei e Espert defendem com pedantismo como a última moda: durante a catástrofe econômica do entre guerras, era improvável que ela explicasse o desemprego por uma decisão voluntária do “agente econômico”; o caos geral tornou pouco crível que o mercado auto-regulado levasse automaticamente ao equilíbrio entre oferta e demanda; e a existência de “agentes econômicos” sem distinção de classes sociais não poderia resistir ao ataque de uma época revolucionária.

Neste caldo de cultivo nasce a teoria econômica de John Maynard Keynes. Sem nos desviarmos para outro debate, apenas dizemos de passagem que o keynesianismo não conseguiu conter a catástrofe econômica, mas se preparou para uma grande catástrofe: a Segunda Guerra Mundial. O liberalismo “puro” era fagocitado historicamente pela necessidade de conter as tendências inevitáveis ​​da crise do capitalismo pelo desenvolvimento do imperialismo: o New Deal [5], o fascismo e outras formas de intervenção do Estado na economia, pela qual os capitalistas tentaram conter as contradições do sistema, não foram eficazes, mas, pelo contrário, tornaram-se ferramentas das “tarefas preparatórias” para a Segunda Guerra Mundial.

Se em tempos de “laissez faire” [6] o liberalismo era uma representação ideológica, que ainda poderia reivindicar algum aperto fraco na realidade, com a crescente socialização das forças produtivas (além da apropriação privada monumental de seus frutos por parte de gigantescas corporações empresariais), com a gigantesca divisão do trabalho em escala mundial que produziu o capitalismo nos últimos duzentos anos, ele se torna totalmente insustentável. A ideia de “retorno” ao capitalismo auto-regulado que “libere” a iniciativa individual oferecendo todos os discípulos de Friedrich von [7] Hayek e Milton Friedman [8] (transformado no grotesco “viva liberdade” de Milei) significa “atrasar” 200 anos.

A teoria neoclássica retornou à ofensiva com o neoliberalismo na década de 1970 nas mãos de Hayek e Friedman. David Harvey assinala que as primeiras doses do neoliberalismo no mundo foram implementadas na cidade de Nova York, no Chile de Pinochet, na Argentina sob o chicote da ditadura, com o ataque de Donald Reagan nos controladores de tráfego aéreo nos EUA e Margaret Thatcher com os grevistas da mineração. Harvey não deixa dúvidas de que o neoliberalismo é uma política para “a restauração da elite do poder de classe” [9], que veio para resolver, entre outros objetivos, os ganhos da classe trabalhadora no período pós-guerra.

A história recente é mais conhecida, mas não faz mal lembrar que as receitas Milei e Espert levaram à catástrofe não só na Argentina de Menem, o “déficit zero” de Domingo Cavallo e Fernando de la Rua; mas também na União Europeia, o maior projeto de livre mercado da história; e, ainda, nos Estados Unidos, agora administrado pelo piromaníaco Donald Trump.

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Eric Roll (1994), Historia de las doctrinas económicas, FCE, tercera edición, México, p. 340.

[2] Karl Polanyi(1992), La gran transformación, FCE, México, pp. 223/224.

[3] Ídem, p. 230.

[4] Ídem, p. 233.

[5] Uma política de intervenção estatal em grande escala levada a frente por Franklin D. Roosevelt nos Estados Unidos para tentar sair da Grande Recessão dos anos 1930.

[6] Do francês “laissez faire, laissez passer”, que significa “deixar fazer, deixar fazer”, um dos princípios do liberalismo econômico.

[7] Friedrich von Hayek foi um filósofo político austríaco que, junto com outros economistas, historiadores e filósofos, criou a Sociedade Mont Pelerin em 1947 (nome do balneário suíço onde eles realizaram a primeira reunião). Essa sociedade foi definida como neoliberal na adesão às ideias neoclássicas.

[8] Milton Friedman era um economista americano que participou da criação da Chicago School of Economics, um canteiro de economistas neoliberais que foram exportados para o mundo. Essa sociedade foi definida como neoliberal na adesão às ideias neoclássicas. Foi uma das figuras proeminentes da Sociedade Mont Pelerin.

[9] David Harvey (2007), Breve historia del neoliberalismo, Akal, Madrid, p.

 

 

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