Bertolt Brecht: Fascismo, terror e miséria revisitados

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Por Alejandra Decap

À luz do avanço da direita na América Latina, torna-se interessante revisar outros períodos históricos de crise e inestabilidade política em que na literatura, no cinema, e em quase todas as artes, estes processos e transformações na geopolítica irradiaram uma forte carga semiótica na produção de obras. As e os artistas e trabalhadores da cultura não foram indiferentes aos posicionamentos políticos e, em muitos casos, a criar lógicas de “militância” no campo da arte. A partir dessa perspectiva, o legado dramatúrgico e poético de Bertolt Brecht (1898-1956) é um ponto que necessita ser revisitado. Nascido na Alemanha em uma família com dinheiro, desde ced manifestou adesão às ideias marxistas e à revolução. Se é verdade que nunca militou no Partido Comunista alemão, foi um comunista comprometido em sua trincheira artística e ligou suas reflexões políticas aos seus palcos e cenários: desenvolveu o teatro épico revolucionário ou teatro dialético: obras nas quais o centro não estava em criar empatia com as personagens, mas sim na atenção ao conteúdo político que buscava transmitir.

Terror e miséria no Terceiro Reich, que estreiou no exílio do autor, em 1938, é certamente uma das peças teatrais que trata com maior complexidade o fenômeno do auge do fascismo na Alemanha, metendo-se na sua gênese, nas suas entranhas, para retratar como estava presente o horror em cada uma das esferas da vida. É uma obra realista, em que pese que carece de uma lógica narrativa tradicional, já que cada quadro corresponde a uma história em si mesma. O que dá unidade ao conjunto dramático é o contexto político no qual se desenvolve a ação: auge e consolidação do fascismo alemão, abordado a partir do cotidiano. Somado a isto, cada quadro exibe em seu início uma rubrica de data e lugar, que permite ordenar cronologicamente as cenas e revisar seu correlato na história.

A derrota de grandes lutas de trabalhadores e oprimidos, a pobreza posterior à primeira guerra mundial e a renúncia da socialdemocracia a combater, traindo a classe trabalhadora, abriram as portas para o ascenso do nazismo ao poder. A política da socialdemocracia alemã foi esperar as eleições para eleger um presidente que juraria fidelidade à Constituição e enquanto isso apoiaram um governo bonapartista como “mal menor”, ou seja, colocando suas esperanças no Estado burguês, sua polícia e exército para que atuassem contra o fascismo. O sentido de Terror e miséria…é uma radiografia crua em todas as esferas da vida sob o domínio nazista: a partir disso ganham importância os diferentes quadros da obra. No primeiro quadro, quando alguns militares nazistas enlouquecem, atiram e assassinam um idoso, o que se busca retratar é a arbitrariedade da violência fascista, que se sobrepõe a um discurso de denúncia ao autoritarismo nacional socialista. No segundo quadro, alguns pequeno-burgueses (profissionais de classe média) delatam outros membros da comunidade, seus vizinhos, mostrando que o terror dobrava as consciências e justifica o injustificável. Aí o autor evidencia a mobilidade dos interesses das classes médias, que em momentos de reação se colocam ao lado da alternativa política mais forte, já que não contam com interesses próprios enquanto classe

Brecht coloca em discussão os parâmetros da retidão moral em um estado de excelão, quando as regras são muito mais facilmente desmontadas em função dos dominadores, motivo também presente na sexta cena, no qual um juiz se desdobra para poder levar adiante um “devido processo” em termos legais sem questionar ao Reich. Por isso é que não é casual a construção fragmentada de sentido em Terror e miséria…: porque não existem parâmetros de justiça possíveis a se adequar nem critérios comuns sobre os quais atuar em um estado de exceção. Por exemplo, na discussão dos cientistas na oitava cena onde a simples menção ao trabalho de Einstein (judeu/gênio da física) era motivo para o pavor dos dois homens da ciência, que se veem impossibilitados de dialogar sobre teorias científicas em consequência da censura e perseguição. Essa cena reflete claramente como o momento fascista implica em uma quebra, abrindo espaço a um novo tipo de barbárie, antes desconhecido pela humanidade, como produto do fracasso dos processo revolucionários na Europa. As cenas 16 e 17, respectivamente, denunciam o absurdo do delírio fascista, em particular no “Resgate de Inverno”, em que levam presa uma jovem proletária por levar uma lista dos gastos de sua casa que evidenciavam a ridícula inflação produzida pelo gasto estatal na preparação bélica. Ou seja, levando adiante a máxima da SA

A terceira cena é crua porque descreve uma cena extremamente cotidiana e desoladora: um almoço compartilhado, relações de afeto e amizade entre proletários, onde irrompe o soldado da SA, que mostra como marcavam com giz branco os que seriam levados aos campos de concentração ou centros de detenção. Aqui são as mulheres que advertem sobre as mudanças o jovem soldado, hoje comprometido com o projeto nacionalsocialista, e a quem viram se transformar até ser absolutamente funcional e subserviente ao regime. Brecht coloca o operário em um papel crítico na maioria das cenas, e, se muitos não manifestam sua oposição abertamente, as suas condições de vida os levam a repudiar o regime.  

Nas cenas da obra são retratados, além disso, aspectos da vida no interior dos campos de concentração, a vida miserável dos inimigos do regime nazista: judeus e marxistas. E a diferença fundamental da experiência da perseguição fascista: a de classe. A nona cena, que relata a experiência de uma mulher judia burguesa, que consegue a possibilidade de ir para o exílio, é preciso comparar com a experiência dos participantes da “Hora do trabalhador”, que se veem obrigados a colaborar com a propaganda nazista dirigida à classe trabalhadora. Este mesmo tema é apresentado na cena 14, “O caixão”, em que a família operária se vê diante da chegada de seu morto, um operário ativista; na cena dos “Sapatos pretos”, em que a mãe se nega a colaborar financeiramente com o Terceiro Reich quando sua filha lhe pede dinheiro para um passeio da juventude hitlerista: a mãe se oferece para comprar sapatos novos, mas para o passeio da juventude hitlerista não há dinheiro.

As duas últimas cenas conformam uma espécie de grande discurso de esperança em relação à situação descrita durante o conjunto da obra, e representam uma quebra em relação ao restante da peça, já que nesta cena os personagens tomam controle da situação excepcional, ainda que sem ferramentas, dispostos à resistência. Brecht traduz de maneira implacável o horror do fascismo e sua extensão sobre os diversos âmbitos da vida, construindo suas próprias lógicas e dinâmicas que substituíram a obrigatoriedade do êxito revolucionário, desvanecendo assim a visão teleológica de um futuro comunista assegurado, colocando nas entrelinhas a validade do discurso e das estratégias da esquerda e colocando assim a tremenda necessidade, ainda latente, de superar o trauma epistemológico do triunfo do fascismo e da posterior restauração capitalista neoliberal e assim reconstruir um projeto político revolucionário viável para as tarefas do presente.

Notas:

[1]  “O fascismo é a continuação do capitalismo, uma tentativa de perpetuar sua existência utilizando as medidas mais bestiais e monstruosas. O capitalismo teve a chance de recorrer ao fascismo apenas porque o proletariado não levou à frente, naquele momento, a revolução socialista. O proletariado foi impedido de cumprir esta tarefa pela atitude dos partidos oportunistas”. Leon Trotski (1940) Bonapartismo, fascismo e guerra. Disponível em https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1940/agosto/20.htm

[2] Trotsky, L. (1940). La Lucha contra el fascismo en Alemania. El proletariado y la revolución. Ed. Fontamara, Barcelona, 1980.

[3] A Sturmabteilung, ou “SA”, era a tropa de choque do partido nazista, organização militar que colaborou ativamente com o ascenso do Hitler.

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