Blocos de poder e primeiras rachaduras do governo Bolsonaro

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por Thiago Flamé

O que começou como um caso pequeno envolvendo transferências entre contas de funcionários da Alerj e envolvendo um amigo e assessor da família Bolsonaro tomou novas proporções. Agora, no dia em que Bolsonaro fez sua estreia em Davos,  começam a vir a tona os indícios de envolvimento da família Bolsonaro com as milícias cariocas e seu possível envolvimento com o assassinato de Marielle Franco. 

Entre a enxurrada de analises sobre a crise do governo Bolsonaro nos primeiros dias de sua gestão dois problemas parecem atravessar a grande maioria delas. Na analise de cada movimento do complexo xadrez político e dos movimentos ocultos de bastidores, se faz abstração dos interesses materiais por trás dos setores em disputa, sejam os interesses das potencias imperialistas e suas diferentes alas, sejam os interesses das frações burguesas nacionais. 

É impossível se aproximar das determinações mais profundas por trás da crise atual, sem levar em conta a influência do acirramento da disputa entre EUA e China na política brasileira e como podem se cruzar ou se chocar com os interesses das potencias europeias. A lava-jato já foi, desde o seu inicio, a ponta de lança de uma maior ofensiva dos EUA, ainda durante a administração Obama, no principal país do seu pátio traseiro. Os interesses das potencias estrangeiras se cruzam, nos emaranhados da trama política brasileira, com os interesses das frações burguesas locais, nacionais e regionais, todas profundamente subordinadas às potencias estrangeiras – sem sempre às mesmas e nem sempre sem desejar manter alguma margem de autonomia. Isso não significa que as relações entre cada movimento político e os interesses econômicos conexos são sempre imediatas. Também os setores das castas politica, judicial e militar tem seus interesses particulares.    

Do primeiro vazamento em dezembro para agora, ao incluir os atores da profunda crise social e política carioca, a crise deu um salto de qualidade. Ainda é cedo para dizer se segue o mesmo fio condutor das primeiras denuncias, orquestradas desde o Coaf e do ministério publico federal, e as alas locais atuam de forma mais controlada, ou se somaram novos atores da decadente política carioca, com seus interesses provincianos e de potencial destrutivo imprevisível. Nesse sentido, para além dos interesses que estiveram por trás das primeiras revelações (que, diga-se de passagem, só ocorreram depois das eleições), questão que tem sua importância, o decisivo é como cada ator envolvido na crise busca tirar proveito da situação para fortalecer sua própria posição dentro do governo Bolsonaro e no novo regime que está se constituindo pela via do golpe institucional. 

Essas crises se desenvolvem num marco de uma grande “lua de mel” com o governo, apesar das várias contradições que já começaram a se desenvolver e que estão em pleno curso, com resultados ainda imprevisíveis. Enquanto escrevíamos este artigo, dois novos acontecimentos trouxeram novos elementos. A crise na Venezuela, com Guaido se declarando presidente, foi um fator que encorajou Bolsonaro a sair em defesa do filho, que já estava sendo abandonado pelo pai. A ruptura da barragem da Vale em Brumadinho de imediato não tende a ser creditada ao governo Bolsonaro, que pode até sair fortalecido se atua bem na crise, porém enfraquece a política privatista e de desregulamentação das proteções ambientais. Um fator decisivo para o próprio desenvolvimento destes escândalos, como para a correlação de forças nacional será a capacidade de Bolsonaro de aplicar reforma da previdência e a agenda econômica de ataques, uma batalha decisiva que pode marcar um giro à direita ou à esquerda na situação nacional.

Olavistas e guedistas 

Como pano de fundo do escândalo que envolve Flavio Bolsonaro, se desenvolve uma forte disputa que veio a tona com mais força depois do encontro entre Olavo de Carvalho e Steve Bannon (estrategista da campanha de Trump e articulador de um movimento de extrema direita internacional) https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,um-jantar-com-steve-bannon-e-olavo-de-carvalho,70002686785 . Bannon teria dito: “O mercado financeiro ama o capitão Bolsonaro, mas eles amam mais a Escola de Chicago”, e pergunta se Olavo conseguiria exercer influência sobre o ministro da Economia. O filósofo faz sinal negativo com a cabeça”.

A conversa colocou mais lenha na fogueira de uma disputa que já vinha se aquecendo, entre Olavo de Carvalho e a ala do PSL que enviou uma nutrida comitiva de parlamentares à China, e fez abrir outro flanco de controvérsias, ao escancarar que além dessa disputa existe também outra entre Paulo Guedes e o guru do clã Bolsonaro. “O Ministério da Economia, sob Paulo Guedes, é um governo; o território de prosperidade adulta cuja funcionalidade, a se confirmar, autorizará a garotada a brincar de ideologia no parquinho.” https://oglobo.globo.com/opiniao/o-governo-guedes-os-outros-23390500 A frase do executivo do grupo editorial Record expressa como guedistas vêm a ala trumpista. Um golpe que atingisse o núcleo familiar do entorno de Bolsonaro e dos ministros da “cota Olavo de Carvalho” não cairia mal para esse setor. 

Sergio Moro, Coaf e o autoritarismo judiciário

Entre apoiadores e opositores se levantam suspeitas de que o vazamento tenha sido feito pelo Coaf a pedido do próprio Sergio Moro. Outra possibilidade é que tenha sido vazado pelo MPF Ministério Publico Federal), que só repassou o relatório ao MPRJ (MP do Rio de Janeiro) quatro dias depois do vazamento se tornar publico. Mas esses são os vazamentos referentes a operação Furna da Onça, levada adiante pelo MPF, desdobramento direto da lava-jato carioca, que investiga os esquemas de propinas entre funcionários e deputados da Alerj. Seja pela ação direta de Sergio Moro ou pela mão do MPF, ambas alas da lava-jato com suas ligações com o departamento de estado dos EUA desde os tempos do governo Obama e com os interesses de monopólios imperialistas como a Shell, o objetivo seria enfraquecer o clã Bolsonaro, anulando a influencia dos filhos, e deixar Bolsonaro, o presidente, refém dos neoliberais e pragmáticos, para levar adiante sem mais distrações a reforma da previdência e as privatizações.  

A situação se agrava para a família Bolsonaro com outra operação, a Intocáveis do Rio das Pedras, levada adiante pelo MPRJ, que investiga as milícias. No cruzamento das informações entre as duas operações, as evidências do envolvimento de Queiroz e do gabinete de Flavio Bolsonaro com as milícias vieram a tona com força. 

Foi um movimento coordenado entre MPF e o MPRJ, unificando Sergio Moro, lava-jato e ministério publico carioca e a Globo para atingir em cheio o núcleo familiar, temerosos que o clã Bolsonaro priorize as pautas culturais em detrimento dos ataques econômicos que podem enfrenta-lo com parte importante de sua base social? Ou é um movimento descoordenado e o MPRJ atua seja por uma vocação messiânica ou em função de interesses mais provincianos? Será essa crise capaz de acabar com a “lua de mel” do governo Bolsonaro?

O que está em curso até este momento indica mais um movimento geral que tira proveito da situação para condicionar e não derrubar Bolsonaro, atingido os filhos para subordina-lo aos guedistas, à lava-jato e aos militares (setores que tem também suas divisões entre si, mas que convergem na urgência da reforma da previdência). 

A ofensiva da rede Globo

Aos fatores de poder anteriores, que atuam em sua grande maioria para debilitar a ala trumpista do governo, se soma a Rede Globo, umas das principais forças que apoia a lava-jato e a agenda de reformas. Já em crise financeira há bastante tempo, frente a perda do apoio governamental, que manteve até durante os governos petistas,  a Globo luta para se manter na liderança e tira proveito da situação para golpear Flavio Bolsonaro e a ala ideológica do governo, ligada a rede Record do bispo Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus, que elegeu Crivella prefeito mesmo com a oposição da Globo (que chegou a fazer acenos a Freixo por essa preocupação). Trata-se de um salto no peso político da Igreja Universal, que a Globo teme que siga se fortalecendo de maneira acelerada, o que está por trás também da localização que a Globo assumiu de “defesa dos direitos” das mulheres, LGBT e negros, para além de colocar limites ao bolsonarismo em geral. 

Fator Mourão e o agronegócio

No governo, Mourão tem agido com independência de Bolsonaro. Recebe as comitivas internacionais, desautoriza a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, e os ataques retóricos contra a China e ainda que não defenda uma guerra contra a Venezuela mantem um discurso duro contra Maduro. Mourão, assim como Heleno, também são parte da pressão para afastar os filhos do núcleo central do governo Bolsonaro. 

Nessas questões vocaliza as preocupações de setores do agronegócio que dependem das relações comerciais com o mundo árabe e a China e que acabaram de sofrer uma forte advertência com os embargos da Arábia Saudita a 33 frigoríficos brasileiros.  Na questão da reforma da previdência Mourão aliviou os mercados ao declarar que ela também vai atingir os militares. 

Os fatores e atores da crise do Rio de Janeiro dão maior imprevisibilidade ao curso da crise

Até aqui analisamos as disputas que cruzam o governo Bolsonaro que são as centrais, mas a Operação Intocáveis colocam na crise os fatores cariocas. O Rio é o bastião da família Bolsonaro, das milícias, da Igreja Evangélica, da Globo e onde há disputas entre alas da casta política, dispostas a tudo para se livrar da prisão, desde vazar novos escândalos até resolver na bala.

A expressão mais grave dessas disputas foi o assassinato da Marielle, que segundo as investigações (há que desconfiar de toda ela), ligaria assassinos não somente com Flavio Bolsonaro, mas com o próprio Jair, como mostram as fotos dele com os que estão sendo denunciados. Também estão ressurgindo as relações da família com outros milicianos e sua defesa de legalizar essa máfia (o que não é uma particularidade dos Bolsonaros, outras alas da casta política carioca também já ensaiaram isso há alguns anos, quando a milícia conquistou certa popularidade “como alternativa” ao tráfico).

A atualidade dessas crises se expressa na recente denúncia de tentativa de assassinato a Marcelo Freixo e no carro metralhado da delegada Martha Rocha do PDT, que também já atuou contra as milícias.

É preciso romper a trégua com Bolsonaro e preparar um plano de luta contra a reforma da previdência e o reacionarismo 

Essas fortes disputas no interior do governo Bolsonaro se desenvolvem no marco de uma popularidade ainda grande do presidente, que não completou sequer um mês de governo. Com uma oposição desarticulada, onde parte dela como PCdoB e PDT já declararam apoio `eleição de Maia, na qual o PSOL tenta levar adiante a política do PT que busca a constituição de uma frente parlamentar que coloca os interesses da classe trabalhadora e do povo de lado em função de alianças com setores de uma suposta oposição democrática, que além de setores burgueses oportunistas e demagógicos como Ciro Gomes, poderia incluir até alas do PSDB, tão interessadas na reforma da previdência quanto Paulo Guedes. 

Funcional a essa estratégia, é a trégua concedida pelas centrais sindicais, que se pautam em pedir negociações ao governo Bolsonaro para discutir uma reforma alternativa e consideram todo o resto apenas cortina de fumaça, como disse Lula. Ao contrário, para aproveitarmos as divisões no governo Bolsonaro é levar a frente um plano de luta sério, com medidas de organização, esclarecimento e mobilização, e preparar as condições para derrotar a reforma da previdência quando ela for enviada ao congresso. Parte desse plano seria fortalecer desde já a luta em memoria de Marielle, exigindo uma investigação independente, a prisão dos assassinos e mandantes, assim como apoiar a luta das mulheres, dos LGBTs, dos povos indígenas e de todos os setores que já estão sendo atacados pelo bolsonarismo e começar a forjar essa aliança entre a classe trabalhadora, a juventude, as mulheres e todos os setores oprimidos. 

Não podemos assistir passivamente as lutas de frações entre os setores do bolsonarismo e da direita pra ver qual a melhor forma de nos atacar. Sem ter ilusões de que estamos diante de uma tarefa fácil e que Bolsonaro está pra cair, é preciso exigir das centrais sindicais, da CUT, da CTB, impulsionar em cada local de trabalho e estudo comitês para que também a força da classe trabalhadora, das mulheres e da juventude possa ser um fator da situação política. 

 

 

 

 

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