O ultra-neoliberalismo, o reacionarismo e a “educação a domicílio”

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imagem: Juan Chirioca

 

por Danilo Magrão e Mauro Sala

 

Em entrevista  publicada no dia 25/01, a polêmica ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, declarou a intenção do governo de regulamentar a educação domiciliar (homeschooling) através de Medida Provisória (MP). Aproveitando-se da brecha dada pelo STF quando do julgamento do ensino domiciliar, o governo Bolsonaro coloca sua regulamentação, via MP, como uma das metas prioritárias para os primeiros 100 dias de governo.

A educação a domicílio é uma prática relativamente comum em parte da elite e das classes médias no Brasil. Como forma complementar de educação, as aulas particulares – seja de reforço ou de estudos avançados -, embora movimente um grande mercado, nunca exigiram uma regulamentação clara, pois que estavam submetidas à educação escolar. A educação domiciliar pode, quando muito constituir-se como prática complementar da vida do estudante, já que a frequência à escola é obrigatória.

Não se trata dessa prática complementar que o governo Bolsonaro coloca como prioridade regulamentar, mas da educação a domicílio – a chamada homeschooling – como prática substitutiva à educação escolar.

Nessa nova proposta, a característica fundante da educação a domicílio consistirá na possibilidade de substituição total da frequência escolar pela educação doméstica. Esse projeto alimentará um novo nicho de mercado através da comercialização de serviços educacionais disponibilizadas às famílias que optarem por essa modalidade, incluindo serviços de aulas particulares, materiais didáticos e supervisão de estudos. Esses serviços poderão ser oferecidos pela internet ou por empresas e profissionais que poderão realizá-los nos domicílios.

A própria Damares, apesar de não apresentar muitos detalhes da MP, deixou “escapar” essa motivação em sua entrevista. Buscando tranquilizar as críticas que vêm um enorme vazio nessa proposta, ela logo se adiantou e deixou claro quem cobriria o buraco deixado pela falta da escola: o mercado. Disse ela: ”Vai ter logo no mercado material que vai orientar o pai como aplicar a educação para o menino de 4 anos, de 5, de 6…”

O homeschooling, além de encontrar nas famílias uma fonte de consumidores de materiais didáticos privados, também pode proporcionar a criação de uma engrenagem que possibilite uma maior drenagem de recursos públicos para iniciativa privada (incluindo as instituições religiosas), por exemplo através dos vouchers. O super-ministro Paulo Guedes nunca escondeu sua predileção pela adoção do sistema de vouchers para educação e saúde pública, proposto originalmente por Milton Friedman. Um voucher escolar consiste em um certificado de financiamento emitido pelo governo e entregue para os pais de uma criança em idade escolar, que pode utilizá-lo para pagar a mensalidade em uma escola privada. A esse processo de privatização dos recursos públicos seus proponentes tentam vender como sendo a realização do direito de escolha dos pais, que ficariam livres da obrigatoriedade de matricularem seus filhos numa escola pública. O homeschooling leva isso ao extremo, já que agora não seriam obrigados a matricular seus filhos em escola alguma.

Essa medida “mataria dois coelhos com uma cajadada”: ela garantiria a formação de um imenso mercado privado que, apesar da regulamentação, seria, por sua própria natureza, fortemente desregulamentado; e retiraria a influência da escola e dos professores sobre a formação das crianças e jovens, tão denunciada pela extrema direita como fonte de doutrinação e perversão.

Assim, não é apenas na chave de uma política econômica liberal que deve ser lida essa iniciativa. Ela articula, de maneira profunda, o ultra-neoliberalismo com o ultra-reacionarismo do atual governo. Por trás do discurso de defesa da autonomia dos pais em supervisionar, gerenciar e realizar integralmente a educação e a instrução de seus próprios filhos está o interesse de grandes monopólios do ensino privado. No interesse dos monopólios do ensino se garantirá o controle ainda maior da família sobre todas as dimensões da socialização das crianças e dos jovens.

Assim, o discurso conservador de Damares e Bolsonaro não pode ser desprendido dessa estratégia mais geral do governo para aplicar sua agenda neoliberal. O exemplo do homeschooling é revelador desse entrelaçamento entre a dimensão moral reacionária e a política econômica privatista: sob a prerrogativa de defesa do direito da família escolher o que – e onde – seu filho aprende, vão implementando-se uma série de ações que pretende promover a reestruturação completa da educação pública brasileira em direção à sua completa privatização e estreitamento.

Ao observarmos a totalidade das ações promovidas pelo governo Bolsonaro (incluindo aquelas já pavimentadas por Temer) o quadro fica claro. A demonização dos professores através do movimento “Escola Sem Partido”, deve ser lida em conjunto com outras medidas como a Emenda Constitucional 95, que congelou o aumento do investimento na educação pública, a Reforma do Ensino Médio e Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Com a educação a domicílio, se forma um cenário completo de uma política ultra-neoliberal para educação, que procura legitimar-se e mobilizar uma base social através de pautas articuladas à moral e aos costumes.

Não é à toa que são Paulo Guedes e Damares Alves quem representam os pólos articuladores desse projeto, já que ambos tem profundos interesses materiais e ideológicos para que essa medida opere a todo vapor.

Podemos lembrar que Paulo Guedes mantém relações com fundos de investimento que opera empresas privadas de ensino a distância – já tendo sido, inclusive, um de seus administradores – e que sua irmã é vice-presidenta da Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup). Também podemos lembrar que Carlos Nadalin, novo secretário de alfabetização do MEC, também é proprietário de uma escola em Londrina e comercializa e-books com uma metodologia para alfabetizar as crianças em casa.

A inspiração de Damares, Guedes e Bolsonaro para esse projeto – como tantas outras “novidades” em políticas educacionais – vem do imperialismo norte-americano e de Donald Trump. Na campanha eleitoral de Trump constava a proposta de financiamento público para as famílias que optassem pelo ensino doméstico, como uma consequência limite da própria política de voucher e da escolha escolar.

Grandes monopólios do ensino privado já possuem atuação específica no ramo de homeschooling. A gigante Pearson, que possui atuação em mais de 70 países, incluindo o Brasil, já oferece esse tipo de serviço nos EUA. Em seu site são disponibilizados materiais didáticos para essa modalidade para as famílias norte-americanas. Aprovado o homeschooling no Brasil, se abrirá um imenso mercado para esse e outros monopólios do ensino privado se expandirem.

Damares, por sua vez, é representante das igrejas neopentecostais. Ela inclusive já deixou bastante claro que o fundamentalismo religioso perdeu espaço nas escolas, por exemplo, ao aceitar que nelas fosse ensinado sobre a teoria da evolução das espécies. O ensino doméstico pode ser um caminho para acabar com essa interferência indevida do conhecimento científico no fundamentalismo  religioso advogado pela ministra. Além, é claro, de disputar para as igrejas uma parte ainda maior do financiamento público destinado à educação.

Assim, articula-se, por um lado, os interesses diretos de grupos econômicos ligados ao ensino privado, e, por outro, os interesses de grupos fundamentalistas que querem impor sua visão retrógrada de mundo, já que não teriam mais que disputar com a escola e seus conhecimentos científicos, mesmo após todo retrocesso representado pela reforma do Ensino Médio e pela BNCC.

Cumprindo-se a promessa de Bolsonaro, do ministro da educação e do INEP em relação às avaliações, como o ENEM, vemos que a certificação do obscurantismo fundamentalista não será algo impossível de ser conquistado. O projeto de homeschooling vem a articular, de uma só vez, as dimensões mais reacionárias do “Escola sem Partido” com as dimensões mais individualistas e privatistas do ultra-neoliberalismo de Paulo Guedes. O homeschooling leva ao limite a ideia de que o que vale é a certificação e a aferição final, ficando o processo relegado a último plano, que esse processo é puramente individual e que deve ser realizado pelo mercado.

A luta contra Bolsonaro, Damares e a destruição da escola pública

Para enfrentar esse quadro, em primeiro lugar é necessário saber qual política é levada adiante por aqueles que se colocam no campo da oposição ao Bolsonaro. O mais importante desses atores é o PT que, além de sua bancada parlamentar, dirige a ampla maioria dos sindicatos da educação.

Através da presidenta do Partido, Gleise Hoffmann, Lula defendeu que o PT tem que se concentrar apenas nas pautas econômicas, deixando de lado as chamadas pautas morais e dos costumes, uma vez que essas seriam apenas uma “cortina de fumaça”.

Como desenvolvemos acima, esses temas, muito longe de ser apenas uma distração para aplicar as reformas econômicas, são partes da engrenagem para sua implementação. Ao separar as duas questões, o PT desarma os professores, os estudantes e todos que defendem a educação pública.

Entretanto, essa posição é coerente com a estratégia adotada pelo PT há tempos. Enquanto ainda governava o país, o PT buscou acordos e fez inúmeras concessões a vários desses setores reacionários que hoje compõe o governo Bolsonaro. Para agradar a bancada fundamentalista retirou o material contra a homofobia que seria distribuído nas escolas públicas e abandonou da defesa da legalização do aborto. Para não excluir do seu arco de alianças esses setores, o PT mantém a mesma política que abriu espaço para extrema direita em seu próprio governo.

Com o quadro de ataques que visam a destruição da educação pública no Brasil, a completa paralisia dos sindicatos dirigido pela CUT e o PT é manifestação de uma estratégia de uma oposição estritamente parlamentar que é completamente insuficiente diante dos ataques.

Para derrubar o ultra-neoliberalismo do novo governo seria necessário que as centrais sindicais indicassem um plano de luta com esse objetivo, articulando a luta contra o obscurantismo nos costumes com as reformas econômicas.

Os parlamentares do PSOL deveriam contribuir para que essa exigência ganhasse força a partir dos seus mandatos. Mas tanto as direções dos sindicatos de massas  quanto as direções parlamentares não parecem querer esse caminho. O que precisamos é articular um grande movimento com os professores, a juventude e o conjunto dos trabalhadores para que possamos colocar em pé as forças para que esse caminho se efetive. Uma força que seja capaz de retirar as direções de sua paralisia e, mais que tudo, que seja capaz de organizar a luta à altura das exigências que a luta de classes nos impõem.

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