A política externa brasileira: a heterogeneidade da submissão

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Imagem por Juan Chirioca

Por Fernanda Montagner

A vitória do governo Bolsonaro no Brasil tem significação na geopolítica mundial. O Brasil, como um país de desenvolvimento capitalista atrasado, tem em sua gênese a subordinação ao capital imperialista. Contudo, em que termos e em qual grau essa subordinação aos EUA se dará ainda está em aberto, e isso tem levado a conflitos internos no governo Bolsonaro. O que esta claro é que nunca na história recente do Brasil esteve tão escancarado como os rumos da política nacional estão subordinados à esfera internacional.

 Para o revolucionário russo Leon Trotski, em um governo bonapartista de direita nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, como o de Bolsonaro hoje, é vital a característica de entreguismo e subserviência ao capital estrangeiro em cada aspecto de sua vida política, social e econômica. Trotski analisava que esse tipo de governo “é a expressão da dependência mais servil ao imperialismo estrangeiro”.

 Nos temas internacionais, há três problemas centrais colocados ao governo Bolsonaro: a crise na Venezuela, as declarações de possível mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, e as criticas que Bolsonaro e seu chanceler fizeram à China. Nos três casos está colocada em questão qual posição se colocará o Brasil frente ao conflito comercial entre EUA e China, que é fruto de uma disputa mais estrutural entre o imperialismo norte-americano em decadência e a ascensão da superpotência chinesa. Mais acentuado é o caráter dessa disputa pelo fato de que os Estados Unidos continuam sendo a maior potência imperialista do mundo, sendo a China um país que ainda não atingiu o status de potência imperialista – algo impossível de ocorrer sem grandes conflitos, guerras interestatais ou guerras civis.

 As diferenças em torno dos temas internacionais vêm apresentando mais claramente alas dentro do governo Bolsonaro. Há uma ala mais diretamente alinhada ao trumpismo, nacionalista protecionista, encabeçada pelo chanceler Ernesto Araújo (e, apesar de fora do governo, por Eduardo e Carlos Bolsonaro, como parte do influente clã familiar) que querem fazer dos EUA o principal parceiro comercial do Brasil (deslocando a China desse posto); e outra ala mais neoliberal/pragmática, composta pelos militares (Mourão/Heleno) e Paulo Guedes, querem manter abertas as relações com a China, mas evidentemente mantendo a subordinação aos americanos, sem, no entanto, significar um alinhamento automático ao trumpismo.

 Jair Bolsonaro, que fez afirmações contra a China durante a campanha, agora tenta uma postura de árbitro, ainda que bastante débil. A moderação no discurso do presidente em relação à China, é oriunda do fato de que qualquer rompimento com o gigante asiático significaria uma catástrofe para a economia nacional, bastante dependente das exportações de commodities. A China é a principal parceira comercial do Brasil, com massivo consumo das matérias-primas exportadas pelo país em todo o ciclo econômico da década de 2000, especialmente a soja (a China é a maior consumidora de soja do mundo: devora mais de 63% da produção global) e o minério de ferro, mas também petróleo. Além disso, 28% das exportações brasileiras vão para China, comparado a apenas 12% aos Estados Unidos.

 Ao se tratar de temas tão estratégicos da economia e geopolítica, na semana passada foi anunciado um “conselho de ministros” para tratar de assuntos internacionais. A proposta veio do vice-presidente Hamilton Mourão, e o conselho seria composto pelo presidente Jair Bolsonaro, por Ernesto Araújo, pelo próprio Mourão, e também Azevedo e Silva da Defesa, Paulo Guedes da Economia e Tereza Cristina da Agricultura. É claro o desconforto de Mourão e Heleno com a forma com que Araújo vem conduzindo (ou pode conduzir) relações internacionais de importância estrutural ao país como é o caso da China – o chanceler não se reúne sequer com embaixadores chineses – ou crises de magnitude na América Latina, como é o caso da Venezuela.

Militares da ativa espalham rumores anônimos sobre “o Itamaraty ser o principal núcleo de ‘vulnerabilidade’ do novo governo”. Um conselho de ministros dessa natureza não é nada mais que uma tentativa de impedir que o chanceler Araújo tenha as mãos livres para atuar. E colocar os militares como principais tutores nesse tema.

 Mourão já havia se insubordinado contra as críticas de Bolsonaro à China, enfatizando a importância das relações econômicas com o país oriental. O embaixador chinês, Yang Wanming, visitou duas vezes integrantes do alto escalão, segundo a revista “EXAME“, uma vez para se encontrar com o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e agora se encontrará com Paulo Guedes. Além disso, após as declarações de possível mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, que gerou grande insatisfação dos países árabes, o general da reserva se encontrou com representantes árabes para apaziguar os ânimos.

 São reuniões para garantir as relações com a China e reparar os sobressaltos causados por Araújo e Eduardo Bolsonaro. Esses desconcertos e disputa de posição dentro do governo expressam uma crise interna em possível gestação. A ver qual será o resultado frente a maiores pressões de intervencionismo imperialista.

 Venezuela e o imperialismo na América Latina

 Os EUA vem elevando seu reacionário discurso intervencionista contra a Venezuela. A importância desse país para o imperialismo se coloca no terreno ideológico de “combate à esquerda”, ainda que em nenhum momento o governo venezuelano tenha chegado perto de algo parecido com socialismo, sendo na realidade um governo capitalista autoritário, anti-operário e apoiado nas Forças Armadas, mas que se apropriava de um discurso de esquerda. O imperialismo usa de um hipócrita discurso de defesa da democracia contra a ditadura de maduro para estender suas zonas de influência, enquanto opera uma ofensiva ideológica ao chamar a Venezuela de socialismo, distorcendo e descaracterizando o que de fato é o socialismo como a ideia de luta pelo fim da exploração e da sociedade de classes.

Trump e seus assessores John Bolton (Segurança Nacional) e Mike Pompeo (Secretário de Estado) não deixam a menor dúvida que Washington buscará se apoiar na servilidade de Bolsonaro e da ala “nacionalista-populista” do governo para combater a influência da China, e atacar as posições da Venezuela, em especial. Daí decorrem os elogios de Trump ao discurso de posse de Bolsonaro.

A Venezuela é uma das maiores produtoras de petróleo no mundo, e parceira comercial da China e da Rússia. Uma política intervencionista norte-americana no país, tendo como suporte regional o Brasil, é uma jogada “de mestre” para os EUA no que diz respeito ao conflito com a China e na utilização de seu poderio político para retomar zonas de influência econômica na América Latina.

Essa semana, o presidente da Argentina, Maurício Macri, e Bolsonaro se reuniram para tratar principalmente do assunto Venezuela. Araújo foi ao Grupo de Lima chefiar o comunicado contra o governo Maduro, e aprovou a iniciativa do presidente da Assembleia Nacional Venezuelana, Juan Guaidó, de anunciar a criação de um governo de transição a partir do desconhecimento do “governo usurpador” do chavista. Entretanto, se a pressão de Bolton, Pompeo, e todo o establishment trumpista para encurralar Maduro tem muita influência sobre a direção do Itamaraty, mais uma vez observamos Mourão e Heleno como fatores de contenção do aventureirismo do chanceler: nenhum dos dois deseja qualquer incidente militar com Caracas, mesmo considerando a clara indisposição que nutrem pelo regime de Maduro. Mourão chegou a dizer que o general venezuelano devia ter matado Chávez, assim “teriam resolvido o problema. Depois eles iriam se matar entre eles, mas aquilo arrumaria o país”, afirmou o vice de Bolsonaro à revista Fórum.

 O mais novo risco identificado, e só dito nos bastidores, é a forma como Araújo poderá conduzir a questão venezuelana diante da escalada com a “auto-nominação” do presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, como presidente interino – com apoio do presidente da OEA, de John Bolton, e do representante do Departamento de Estado dos EUA, Robert Palladino.

 É importante dar valor a estas posições contraditórias e heterogêneas dentro do governo, e no interior das próprias “alas”, para verificar cientificamente como vai se movendo o governo bolsonarista nas questões da “grande política” burguesa (reflexo da influência de distintas alas do imperialismo mundial, e de frações de classe distintas do imperialismo norte-americano, em particular).

Longe de posturas harmônicas, fica evidente que nesse terreno os “nacionalistas populistas” e os “pragmáticos neoliberais”, com um nacionalismo mais adaptado ao status quo estatal, podem ser fontes de incidentes dentro do governo.

Um governo servil e dependente, e o papel da luta de classes

O Brasil vive uma “estranha” posição na política internacional. Bolsonaro é filho da crise orgânica e dos fenômenos anti-sistêmicos de extrema direita. Se elegeu com um discurso nacionalista-populista pautado em questões de costume, moral e religião, entrando no “time” chamado de “antiglobalista” e protecionista. As figuras do governo como Damares, Araujo e Eduardo são as principais expressões desse setor, que tem diretrizes diferentes das considerações geopolíticas e neoliberais que regem os militares e Guedes na área econômica.

 Essas ideias se confrontam com duas contradições. A primeira é que o Brasil é um país subordinado e incapaz de ter uma política independente, o país não tem autonomia econômica suficiente para “tomar posição” unilateralmente, por exemplo, na guerra comercial entre EUA e China. A relação é oposta: cada política protecionista das grandes potências, no marco da procura por zonas de mercado e disputas interestatais pela preeminência tecnológica, tende a golpear economicamente o Brasil.

As medidas da União Europeia contra o “dumping” de aço no continente vão dificultar o ingresso de sete produtos siderúrgicos brasileiros no mercado europeu. O plano estabelece cotas específicas para três produtos brasileiros, com base na média das importações de 2015 a 2017. O Brasil será menos atingido que outros produtores, mas qualquer problema adicional pode ter um peso significativo para um governo já confrontado, em começo de mandato, por enormes dificuldades fiscais num ambiente de alto desemprego. Tanto é assim que a equipe bolsonarista em Davos vai buscar outros países, inclusive a China, para organizar uma resposta em comum contra as barreiras europeias. O nacionalismo imperialista pode trazer perdas de magnitude para o país de Bolsonaro.

 A segunda é que o Brasil entra no fenômeno de governos de direita anti-sistêmicos, num momento onde esses governos aparentam ter já atravessado seu momento de auge (ainda que claramente sejam fenômenos vivos). Como a interminável crise do Brexit, em que May venceu por uma margem muito pequena o voto de não-confiança que a tiraria do cargo de primeira-ministra. Thereza May é atualmente um “governo zumbi”, sem qualquer iniciativa de relevância para a Europa além do arrastado tratamento do Brexit, que mostra o grau de decadência que a Inglaterra atravessa. A crise do “shutdown” nos EUA (fechamento do governo norte-americano), as investigações sobre a interferência russa em 2016 e a derrota recente do trumpismo nas eleições de meio mandato, em que os Republicanos perderam a Câmara dos Representantes, denota um Trump com sérias dificuldades para lançar sua candidatura à reeleição em 2020 (ainda que conserve considerável base eleitoral).

 Ainda que Bolsonaro goze de um momento de passividade e expectativa, os conflitos internos, a crise econômica e a pressão internacional colocam dificuldades ao objetivo do governo de derrotar a correlação de força herdada dos anos anteriores e implementar todas as reformas e privatizações. Nesse sentido, também é a porta aberta para a possibilidade de emergir processos de lutas massivos. O processo de mobilização de massas dos gilets jaunes na França – que, apesar do limite que tem, ao não figurarem os métodos clássicos de luta da classe operária, é o principal fenômeno de luta de classes no mundo –  é um fator de desestabilização do capitalismo, que não só pode servir de exemplo para as lutas pelo mundo, como ser um pilar da luta de classes contra os governos ajustadores. Em meio aos governos populistas de direita, a luta de classes na França é uma verdadeira contratendência mundial, deslocando as discussões do mero marco “econômico-geopolítico”. No Brasil, o desenvolvimento de tendências de irrupção de massas nas ruas (que têm nas burocracias dos sindicatos e das centrais sindicais, assim como na França, sua principal inimiga), se combinadas com o componente essencial da centralidade operária e de seus métodos de luta, é o mais importante ativo para impedir que Bolsonaro altere a relação de forças entre as classes pela direita. E é a única força que pode ter uma política independente e de combate à subordinação imperialista. Mais do que nunca, uma política anti imperialista é fundamental para os combates que a classe operária terá que dar esse ano contra o governo Bolsonaro.

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