Um choque à direita nas relações raciais no Brasil

0

.

imagem: Juan Chirioca

 

Por Daniel Alfonso

 

No último domingo Jair Bolsonaro foi eleito com 53,13% dos votos.  Sua vitória, ancorada em suas posições históricas contra negros é marca, símbolo e expressão de importantes alterações nas relações raciais no Brasil; é, particularmente, um questionamento do que se conhece como “mito da democracia racial”.  A questão é complexa pois o entendimento geral que baliza (balizava?) a compreensão de uma suposta ausência de racismo e de identificação negra no Brasil está sendo questionado pela direita, pelas palavras e ações de Bolsonaro, seus aliados e uma parcela importante de seu eleitorado que além de ter votado no capitão da reserva , o fizeram com orgulho – finalmente alguém com alcance nacional fala o que estes acreditam. 

O racismo veemente de Bolsonaro e do PSL não é “irracional”, nem tampouco fruto do desconhecimento da história do país: é parte intrínseca de seu projeto ultraneoliberal. Antes de seguir nesse argumento, uma volta a Freyre.

A burguesia dos países das Américas que tiveram de lidar com o pós-abolição buscaram formular as mais variadas formas de encarar esse novo mundo onde o negro seria juridicamente livre e igual, no plano formal das leis, ao branco. O problema extrapolava os limites da hierarquia; o desconhecido, terrível mundo onde o negro não mais estaria no “seu” lugar original impunha respostas ideológicas e políticas que buscassem legitimar a opressão racial, garantindo a repressão estatal (e paraestatal) sobre os negros que ansiavam por terras, direitos e vida digna, como parte do objetivo geral de disciplinar a mão de obra¹. 

A elite colonial e, em seguida a nacional, vivia sob o constante medo da ação escrava; não somente das revoltas, temor esse que se agudizou muito depois do exemplo da revolução haitiana, mas um medo de tudo o que negras e negros poderiam fazer: assassinato de feitores, envenenamento de senhores, revoltas dos mais variados tipos, fugas, formação de quilombos entre tantas outras manifestações de resistência e combate. Nas cidades, os escravos deveriam percorrer as ruas sob a ameaça e memória dos libambos, do chicote, dos castigos. As ruas deveriam ser dos senhores, que ninguém se esquecesse disso. 

Por ter sido o Brasil o último país das Américas a abolir a escravidão, em um contexto onde os escravos daqui já estavam longe de serem maioria, mas com peso social e político decisivo, onde do outro lado do Atlântico a Inglaterra vitoriana de fim do XIX combinava etiqueta aristocrática, impiedoso pulso burguês nos negócios que reclamava o domínio de território africano e desenvolvimento industrial veloz e intenso, pode ofuscar a compreensão de que a abolição não se deu sem forte resistência por parte significativa da elite econômica e política. A abolição foi, ao contrário, uma vitória política dos escravos, negros livres, abolicionistas e setores mais amplos da população². Após a abolição, a luta da população negra continua em busca de terras e, ao contrário do que o senso comum nos faz crer, também com uma forte presença nas cidades. A política imigratória do Estado brasileiro buscava dividir e enfraquecer o enorme contingente de negras e negras que deixava de ser escravo, o que implicava o acesso à igualdade jurídica de todos os negros, além de projetar um país menos negro e mais branco. A geração de 1870, que teve de lidar com o fim da escravidão e do Império encarou a presença negra no Brasil como um problema a ser resolvido – uma questão vital para as características  do frágil liberalismo local.  São as décadas de projetos de eugenia, do “racismo científico” à la brasileira; a presença do negro é vista como um problema, como algo a ser resolvido. Após citar uma passagem de Gobinaeu, que havia passado alguns meses no Brasil, onde  despreza a população mestiça no Brasil, Schwarcz afirma: “Nesse como em outros casos, a mestiçagem existente no Brasil não só era descrita como adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação”³.   

Por uma combinação de fatores que não podemos abordar aqui, as transformações sociais e políticas durante os anos da República afloram uma resposta antiliberal no campo das relações raciais. Freyre buscava as características da singularidade brasileira no mundo ocidental e considerava as relações raciais o eixo dessa singularidade: a aptidão do português para a colonização nos trópicos combinada a seu sadismo e a um suposto masoquismo dos negros, assim como a eliminação de qualquer elemento de conflito, de luta entre diferentes setores da sociedade e uma confluência original entre polos são alguns dos alicerces de seu pensamento – profundamente racista mas em chave diferente da geração anterior. Para a geração de 1870, a presença negra era um aspecto negativo da sociedade nacional, as expressões de sua cultura deveriam ser reprimidas e sua presença eliminada ao longo de gerações futuras. No plano da argumentação de Freyre, o negro ocupa uma posição positiva no plano nacional, ainda que subordinada ao português branco4. 

Os negros teriam sido controlados e orientados sob o comando do patriarca, que carrega nos costumes a presença portuguesa. Parte da diferença fundamental com a geração anterior é que a presença portuguesa não está nas veias e sim nos costumes. Para Freyre, o negro contribuiu para a formação brasileira, contribuição essa sob o comando e a direção do patriarca, que lhe orientou, garantiu a razão e, em última instância deu o tom nacional. O Brasil, na visão freyriana é o resultado da fusão, desigual mas ainda assim fusão, entre o negro africano, com seu suposto ritmo, musicalidade, talentos culinários e o caráter, determinação e liderança do português. A fusão é garantida também pela predisposição do português em se relacionar com negros, uma característica lusitana própria em contraposição à anglo-saxã e espanhola.

Não haveria racismo justamente porque o negro se incorporou, sob a guia do patriarca, à ordem colonial, e dessa fusão se originou a sociedade brasileira, fazendo de sua tradição e costumes parte da própria tradição e costumes do que viria a ser o Brasil. Não haveria racismo no Brasil porque o negro e português, além do índio, se fundiram em um só povo, o brasileiro. 

Se a busca por uma “verdadeira” democracia racial influenciou setores do movimento negro até o golpe de 64, assim como o Partido Comunista Brasileiro, ao longo da ditadura e do regime de 88, amplos setores do movimento negro e da intelectualidade progressista criticaram a interpretação racista de Freyre, valorizando a identidade de raça que Freyre tanto se esforça em apagar. Entretanto, há um descompasso significativo entre o combate à ideia de democracia racial nesses círculos e identidade negra de camadas massivas da população brasileira. 

A ideia de democracia racial tem no campo seu centro nevrálgico; quanto mais industrial e urbano o país, mais “impessoal” se torna a opressão racial; há mais dificuldade para mascarar o racismo. Esse é um elemento fundamental para o questionamento mais geral da ideia de democracia racial, mas que o racismo de  Bolsonaro, o PSL e seus aliados busca encobrir. 

O discurso de Bolsonaro se aproxima de Freyre ao afirmar que não existe racismo no Brasil, que este país seria composto por “brasileiros”. Porém, rompe com Freyre ao atacar as expressões que fortalecem e ressaltam a identidade negra. O negro não tem nenhuma contribuição a fazer, ao contrário, a figura do “cidadão de bem” se aparta e se afasta o mais categoricamente possível das expressões identitárias “explícitas”, como cabelo, vestimenta, religiões de matriz africana, comunidades quilombolas, entre outras; é a partir daí que esse discurso se dirige a um Brasil supostamente homogêneo. Durante as eleições houve uma tensão entre o que Bolsonaro e Mourão estão dispostos a expressar publicamente – o que deve seguir no mandato presidencial através de testes sucessivos da correlação de forças – mas por baixo, a base bolsonarista mais ávida entende que Bolsonaro não pode falar tudo o que quer e dividirá com Bolsonaro a tarefa no teste da correlação de forças5. Quando Bolsonaro diz “não me importa se ele é negro ou não” está dizendo “não me importa se é negro ou não… na medida em que não me lembre de sua raça, na medida em que sua cor de pele não seja um obstáculo à ordem e aos valores que defendo, a família e à autoridade do pai”6.  É essa relação de força contrária à tudo o que a história e a tradição negra representa que permite que Bolsonaro apareça no discurso de vitória ao lado do deputado do PSL Hélio Negão com uma camiseta “minha cor é o Brasil” e diga que os negros quilombolas “não servem nem para reprodução” e que o “mais leve lá pesava sete arrobas”. Se o assassinato de Marielle foi a mostra em escala internacional da ferida aberta pelo golpe institucional, o ódio que Bolsonaro destila contra os quilombolas faz parte da defesa ferrenha do grande latifúndio e dos interesses do agronegócio, buscando legitimar os assassinatos que ocorrem no campo e aumenta-los em escala. A incitação do ódio contra os negros que expressam com mais força essa tradição a qual parte o assassinato de Mestre Moa. Não são dois Bolsonaros diferentes, é o mesmo Bolsonaro em uma operação ideológica e política combinada. 

A única maneira de combater o avanço racista de Bolsonaro e companhia é através dos métodos da luta de classes. O futuro presidente, a contragosto até mesmo da Globo, já afirmou em rede nacional após a vitória que não tem medo algum do petismo e da estratégia reformista. Se o petismo e o reformismo em geral não o assustam, a força da classe trabalhadora e de seus aliados o farão tremer. A energia e força política, social e moral do povo negro em combate já mostrou sua força em incontáveis momentos: se derrotou o mais forte exército do continente europeu, expulsando as tropas de Bonaparte durante a Revolução Haitiana, se foi decisiva para a vitória da União sobre os Confederados na Guerra Civil norte-americana, se esteve na linha de frente da resistência ao golpe militar de 64 com os marinheiros do Rio de Janeiro, certamente será um impulso ao ódio de classe tão necessário para a derrota de Bolsonaro. Mas para isso, os organismos de frente única da classe trabalhadora não podem continuar na inércia, como de forma criminosa tem estado até agora. Quanto mais trégua as centrais sindicais derem a Bolsonaro, recusando-se a colocar de pé organismos de mobilização da classe trabalhadora que possam extrapolar o universo dos sindicalizados, mais forte o futuro governo será para atacar os trabalhadores e aprofundar o conteúdo e o curso racista de sua política. 

As profundas transformações que o país vem sofrendo vão reabrir uma gama de debates importantes sobre o Brasil que em grande medida ficaram abafados pelo gradualismo lulista. Além do reordenamento das relações raciais, e ligado a este, tende a ganhar força, por exemplo, o debate sobre o Brasil “legal” versus Brasil “real”. A distância entre o que é afirmado em leis e seu alcance efetivo faz parte da história do Brasil e, entre outros fatores, está ligado ao nosso passado escravista. Em um capítulo recente de nossa história, no qual estamos nas páginas finais, o reformismo foi incapaz de garantir efetivamente uma série de direitos declamados na Constituição “cidadã” de 1988. Para garantir o acesso gratuito da população a saúde, educação, moradia, saneamento básico, entre tantos outros direitos elementares é necessário romper com o imperialismo norte-americano e garantir um governo dos trabalhadores que coloque os reais interesses da nação à frente – e isso o PT jamais se propôs a fazer. Essa distância entre os direitos no papel e o drama da vida da população brasileira é fonte de frustração com a qual Bolsonaro dialoga e oferece solução: diminuir o espaço entre as leis e a realidade através de um ataque combinado a direitos constitucionais, com a “segurança” como carro-chefe dessa operação. É também neste terreno que o marxismo revolucionário oferece a única saída de fundo. 

Como diversos outros aspectos do futuro governo, está em aberto ainda o quão explicitamente racista Bolsonaro poderá ser no exercício da Presidência. O capitão e o PSL foram testando limites ao longo da campanha mas o verdadeiro desafio será imposto pela luta de classes. Retomando, se os organismos de frente única da classe trabalhadora todos os partidos críticos a Bolsonaro e organizações em defesa dos direitos democráticos e organizações do movimento negro não se colocarem em movimento para organizar a luta contra os ataques de Bolsonaro, maior será sua força para se sentir à vontade e destilar todo seu ódio aos negros livremente. Sem mobilização, o assassinato de jovens negros nas favelas será naturalizado; com os trabalhadores alertas os snipers de Witzel não terão o dedo solto. Bolsonaro, PSL e seus aliados apostam na desmoralização dos trabalhadores e do povo negro para entregar o país ao imperialismo. Nós, ao contrário, confiamos na força da classe trabalhadora e na tradição de resistência e combate do povo negro, que hoje necessita se plasmar em uma posição de firme independência de classe e estratégia revolucionária.

 

NOTAS

 

1 Nos EUA, as leis de segregação racial foram uma resposta do governo imperialista à ação política dos negros durante o período de Reconstrução, entre outros fatores motivada pela moralização da população negra por ter sido decisiva para a vitória do exército da União. No Brasil, a força social dos negros que conquistaram sua liberdade é profunda, e a resposta legislativa já no Código Criminal de 1890, buscava responder à altura e, entre outros objetivos, reclamar de volta à elite branca o domínio do campo e das ruas.

2 Depois de mencionar momentos decisivos da abolição da escravidão em diversas regiões do mundo, Robin Blackburn afirma: “Em cada um desses casos a escravidão era politicamente vulnerável, e não economicamente pouco lucrativa; e em um sistema escravista politicamente viável, a resposta natural do proprietário de escravos ao lucro insuficiente não era a emancipação, e sim a venda dos escravos excedentes para setores mais dinâmicos da economia escravista. A emancipação dos escravos entrou na agenda por causa de crises políticas e contestação social globais.” Blackburn, Robin. A Queda do Escravismo Colonial (1776-1848). Rio de Janeiro, Record, 2002, p 557. Voltaremos ao tema da abolição em breve neste semanário. 

 

3 Schwarcz, Lilia Moritz, O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.  São Paulo, Companhia das Letras 1993, p. 13.

 

4 “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.” Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo, Gobal, 2006, p. 367.

 

5 A afirmação de Mourão sobre os filhos criados em famílias sem pai ganha um forte conteúdo racista já que essas famílias são majoritariamente negras, mas tem uma dimensão mais profunda ligada a uma literatura racista do século XX segundo a qual fundamental da dificuldade de adaptação do negro à sociedade norte-americana era que sua cultura tinha muita influência matrilinear. A matrilinearidade é tanto parte da cultura de certos povos africanos quanto uma imposição da escravidão.

 

 6 A defesa da autoridade do pai é um dos traços em comum com Freyre, mas que este também tinha com o liberalismo conservador como, por exemplo, o “autoritarismo instrumental” de Oliveira Vianna.

About author

No comments