Alguns apontamentos entre 1964 e 2018

0
.
imagem: Juan Chirioca
Por Thiago Flamé
As comparações são inevitáveis, apesar dos abismos que separam os dois momentos. Entretanto, algumas comparações podem ser úteis para pensar o que está por vir.

Numa palestra na USP, nas vésperas das eleições, o filósofo Paulo Arantes buscou desenvolver essa comparação, trazendo alguns elementos com os quais podemos dialogar. Sem dúvida, como ele diz, “uma era geológica” separa os dois momentos. Partindo da constatação óbvia de que naquele momento se tratou de um golpe militar clássico, uma “quartelada” verdadeira, o que não é o caso agora, apesar do peso que os militares reformados vão ter no governo Bolsonaro.

O contexto do golpe de 1964 era o da Guerra Fria, cinco anos depois da revolução cubana. Naquele momento essa ameaça era menos ilusória do que hoje e, ainda que uma revolução comunista ou uma república sindical estavam longe dos planos de João Goulart, foi o fantasma agitado pelos militares para desencadear o golpe. Para além dos pretextos, o golpe que derrubou Jango mirava os camponeses, os marinheiros e soldados, e a classe trabalhadora, contra a qual o golpe foi dado, para acabar com suas organizações e impor um aumento sem precedentes do nível de exploração, o qual foi a base do chamado milagre econômico que permitiu que a ditadura se assentasse definitivamente.

Sobre o bonapartismo e o 18 Brumário de Luís Bonaparte

Seguindo o caminho de retomar o 18 Brumário de Luís Bonaparte, que mostra como a derrota de uma insurreição popular – em junho de 1848 – acabou tendo como resultado a ascensão de uma figura tosca como o sobrinho de Napoleão Bonaparte, devido a incapacidade da burguesia de conter suas próprias contradições de classe e se autogovernar no marco de uma democracia parlamentar. Na frase que Marx consagrou, “a tragédia se repetiu como farsa”. Da grande revolução francesa de 1789 à revolução derrotada de 1848, de Napoleão Bonaparte o grande, a Luís Bonaparte, o pequeno. A situação no Brasil não permite nenhuma comparação com 1848, mas o método de Marx ajuda muito a pensar o momento atual. A ironia de Paulo Arantes com os que buscaram uma analogia direta entre o bonapartismo de 1848 e o golpe institucional de 2016 atinge o alvo: se a tragédia estava agora se repetindo como farsa, então os dois lados estão representando seu papel.

E é verdade que o PT representou seu papel nessa farsa. Ameaçado pelas manifestações de junho, identificou a juventude que se manifestava contra toda a casta política com a direita, e facilitou o caminho para a nova direita que surgiu em 2013 e que se fortaleceu em 2015. Mas, da mesma forma que entre o junho francês e a ditadura bonapartista uma série de etapas políticas e golpes mais brandos foram dados contra a constituição antes da consolidação da ditadura, também no Brasil de hoje uma série de medidas autoritárias foram sendo tomadas, como o afastamento de Dilma e a prisão arbitrária de Lula, que pavimentou o caminho para a eleição de um candidato a ditador para a presidência. Agora, o golpe institucional, ou “golpe tabajara” como diz Paulo Arantes para diferenciar de um golpe militar clássico, iniciado em 2016 segue sua marcha e está em aberto o modo como vai seguir e desenvolver-se.

Na definição clássica que se extrai do 18 Brumário de Marx, depois retomada por Trotsky para discutir os governos que antecederam o nazismo na Alemanha na década de 30, o Bonapartismo surge de um equilíbrio de forças, de um impasse entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista, a burguesia e o proletariado, e frente a essa espécie de equilíbrio catastrófico se criam as condições para que uma figura surja como que se elevando sobre as classes, para submeter a sociedade através de uma ditadura militar.

No Brasil do golpe institucional alguns desses elementos estão presentes, e agora muito mais com o governo Bolsonaro. De um lado, uma burguesia que necessita avançar em ataques profundos aos direitos e ao nível de vida da classe trabalhadora e do povo e, de outro, uma classe trabalhadora que não está derrotada historicamente e que ainda sonha em voltar aos dias do gradualismo petista quando a vida era melhor. Nessa situação, a instituição que tem se arvorado esse papel de um árbitro autoritário para impor as reformas que a burguesia necessita tem sido o judiciário e sua cúpula, o STF, cada vez mais apoiado pelo militares, questões que Paulo Arantes passa por alto em sua palestra, o que acaba diminuindo a profundidade histórica do “golpe tabajara”.

Desenvolvendo mais o conceito de bonapartismo, Paulo Arantes fala em “Bonapartismo lulista”, que seria o avesso do bonapartismo de Bolsonaro. Numa primeira vista a comparação parece totalmente descabida. Dado que Lula e Bolsonaro são opostos, como seria possível uma aproximação conceitual desse tipo? Arantes não desenvolve esse elemento e dá uma explicação rasa para a comparação, retomando a análise de André Singer sobre a mudança da base social de lulismo durante o seu governo. Lula teria elementos bonapartistas porque se apoiou crescentemente numa base social de pobres urbanos e camponeses concentrada no nordeste.

Seria necessário ir além do conceito de Marx e retomar as elaborações de Trotsky sobre o tipo específico de bonapartismo que se desenvolve em países atrasados como o Brasil. Enquanto nos países imperialistas o bonapartismo se eleva sobre as disputas entre a burguesia e o proletariado, para governar a serviço da primeira se apoiando numa ditadura militar, nos países atrasados a burguesia local é relativamente débil em relação a burguesia imperialista, e o bonapartismo nesses países pode oscilar entre um governo que se apoia na classe operária para barganhar com o imperialismo pequenas vantagens para a burguesia nacional ou que se apoia no imperialismo para submeter o proletariado local através de métodos ditatoriais.

No argumento de Arantes, Lula estaria aproximado do primeiro tipo de bonapartismo e Bolsonaro do outro. Se Lula de fato se apoiou nas massas para conseguir uma maior margem de manobra com o imperialismo, a serviço de desenvolver os chamados “global players” brasileiros (o que lhe dá um certo componente bonapartista), nunca foi além disso, se mantendo estritamente nos marcos da democracia burguesa degrada da constituição de 1988. Nunca chegou ao ponto de um Chávez, que refez a constituição venezuelana e se apoiava nas forças armadas para fazer esse jogo de barganha com o imperialismo. O que se desenvolve com o golpe institucional, e agora com Bolsonaro, se aproxima da outra possibilidade de bonapartismo nos países atrasados, um bonapartismo totalmente submisso e alinhado aos EUA que avança cada vez mais em medidas restritivas das liberdades democráticas. Primeiro contra o PT, e agora, crescentemente contra o movimento de massas (basta ver a tentativa de revisão da lei antiterrorista em curso para atingir também o movimento operário e o conjunto do protesto social). Mas, ainda assim, ainda é um pré-bonapartismo, na medida em que se apoia só secundariamente nos militares e que o fechamento do regime ainda está em seu início.

Os objetivos de Bolsonaro, bonapartismo e fascismo

Paulo Arantes, muito corretamente, não utiliza o conceito de fascismo para falar do governo Bolsonaro. Seguindo a definição clássica do que é o fascismo, Paulo Arantes explica que seu objetivo histórico é a destruição das organizações operárias. Não é o caso neste momento, não por que não existam mais organizações operárias como insinua Paulo Arantes, mas porque os objetivos do governo Bolsonaro e dos golpistas ainda não se chocaram com uma resistência de massas da classe trabalhadora. Caso isso se dê, poderemos ver tanto o desenvolvimento de um bonapartismo mais clássico apoiado diretamente no exército, quanto o crescimento de organizações fascistas na base dura bolsonarista que se volte contra o movimento de massas.

Não sendo um governo fascista nem um bonapartismo militar clássico, o que seria o governo Bolsonaro e quais objetivos teria? Paulo Arantes parte de uma discussão interessante, mas chega numa conclusão equivocada, em nossa visão, justamente por não analisar os interesses de classe por trás de Bolsonaro. Arantes diz que Bolsonaro representa a linha dura do exército que era contra a abertura “lenta, gradual e segura” defendida por Geisel, e que foi derrotada na década de 70. Não é um detalhe que reivindique tanto o torturador Ustra. Isso ajuda a entender a reserva que tem a cúpula do exército em relação ao Bolsonaro, apoiando seu governo mas buscando conter seus “excessos”. Até mesmo Geisel, antes de morrer, criticou duramente o parlamentar Bolsonaro recém saído do exército. De acordo com esse raciocínio de Arantes, Bolsonaro teria como objetivo terminar a obra da ditadura, exterminando a esquerda (talvez com matanças parecidas com as do Chile ou da Argentina), e que ele não está brincando quando diz que o erro da ditadura foi ter só torturado e não matado.

Não somos nós que vamos duvidar dos objetivos macabros de um Bolsonaro. Mas, independente do que pense e queira Bolsonaro, este não pode fazer o que quiser e bem entender. É exemplo disso que na sua primeira declaração para a televisão depois de eleito, trocou o livro de cabeceira escrito por Ustra por um livro de Churchill, como um sinal de que está disposto a respeitar a constituição. Os poderes por trás de Bolsonaro, os mesmo que apoiaram o golpe institucional, pretendem levar até o final a obra não da ditadura, mas do governo Temer de ataques a todos os direitos trabalhistas e sociais. Ao mesmo tempo, o imperialismo norte americano e o governo Trump querem as privatizações, especialmente do petróleo, e também um maior alinhamento do Brasil com seu governo no plano geopolítico. O desencadeamento de uma repressão generalizada contra a esquerda não seria funcional a esses planos.

O que sim está em curso é um aumento da repressão estatal, das leis repressivas, da ofensiva policial nas periferias, da repressão contra manifestações e organizações da esquerda, chegando inclusive a ameaças, ainda pequenas, à liberdade de imprensa, de manifestação, de reunião e de organização. Essa é a situação atual, medidas autoritárias comandadas pelo judiciário, apoiado pelo exército, que ao mesmo tempo que promove uma escalada do autoritarismo “constitucional” para garantir as reformas, pressiona Bolsonaro para que esse se mantenha nessa linha. Também não falamos em fascismo, mas não podemos deixar de alertar que o discurso de Bolsonaro se volta justamente contra as organizações operárias que existem, como o PT (um partido que, apesar de tudo, segue sendo a representação política oficial do movimento operário) e os sindicatos (para não falar do MTST e MST), e que sua base de apoio de ultra direita pode ser mobilizada contra manifestações e organizações operárias caso seja necessário. Inclusive podem ser ministradas medidas proto-fascistas de forma homeopática, para fortalecer o papel de árbitro do judiciário cada vez mais apoiado pelo exército.

Ainda é impossível saber como evoluirão essas tensões no interior do governo Bolsonaro e entre os fatores de poder que lhe sustentam. E como se dará a articulação entre as diferentes alas do governo, os militares representados por Augusto Heleno no ministério da defesa, o ultra liberal Paulo Guedes, o próprio Bolsonaro e seus filhos que adotam realmente um discurso fascistizante, assim como qual papel cumprirá o ministro Sérgio Moro como representante do bonapartismo judiciário no governo. O que temos certeza é que, ainda que Bolsonaro vá buscar aplicar seu programa nas esferas dos costumes e da educação, o ponto fundamental serão os ataques econômicos e sociais às condições de vida das massas. O nível de enfrentamento da luta de classes em torno a esses ataques é que vão definir como vai evoluir o regime político marcado pelo bonapartismo judiciário, e quais contornos vai tomar o governo Bolsonaro.

About author

No comments