O papel das universidades frente ao bonapartismo Judiciário e a ultradireita 

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imagem: Juan Chirioca

Por Simone Ishibashi 

A eleição mais farsesca e manipulada da história recente do país está em sua reta final. Aprofundando a tendência bonapartista explícita, aberta desde o golpe institucional de 2016 e aprofundada com a prisão de Lula e a negação de sua candidatura, os últimos dias anteriores ao segundo turno eleitoral foram marcados por escândalos, violações dos direitos democráticos mais básicos, e pela ausência absoluta de qualquer debate eleitoral entre os candidatos presidenciáveis, graças à negativa do reacionário Bolsonaro de discutir suas ridículas e ultra neoliberais políticas. 

Mas talvez um dos pontos culminantes desse processo de ataques incessantes por parte dos verdadeiros donos do poder, representados no autoritário Judiciário, tenha sido a intervenção abertamente direitista, ferindo o princípio básico da liberdade de expressão, das universidades públicas do país. Em uma ação coordenada diversas universidades públicas do país foram literalmente invadidas no dia 25 de outubro, a mando do TRE e do TSE, para favorecer abertamente ao candidato da ultradireita Bolsonaro. 

Alegando que iria apreender material de campanha, a própria Policia Federal invadiu a Universidade Federal de Campina Grande para apreender materiais como o “Manifesto em Defesa da Democracia e da Universidade Pública”, que não fazia qualquer referência aos candidatos presidenciais. O TSE proibiu que o site da UNE veicula-se a campanha “Bolsonaro Não”, e na Universidade Federal Fluminense (UFF) o TER retirou uma faixa que trazia os dizeres “UFF Direito Antifascista”.  UFRJ, UFMG, Unicamp, UFFS, UFPB, praticamente nos quatro cantos do país houve cerco policial para intimidar estudantes, docentes e trabalhadores que se manifestavam contra a ultradireita. Uma violação patente da autonomia universitária, e também aos sindicatos. O Sindipetro do Norte Fluminense também foi invadido a mando do TRE pela polícia, que confiscou exemplares do jornal Brasil de Fato, e o Sepe de Campos de Goytacazes, cujos comunicados sindicais também foram apreendidos pela polícia federal. 

No dia seguinte as reações não tardaram. Manifestações de milhares de estudantes tomaram as ruas nas capitais de diversas regiões do país, denunciando o autoritarismo Judiciário, a ação do TRE, e reafirmando a disposição do combate à ultradireita. Um vivo movimento estudantil se manifestou, mostrando a potência que pode assumir para enfrentar os ataques que se anunciam, sobretudo caso o resultado das eleições levem ao poder o reacionário e submisso aos interesses imperialistas, Bolsonaro. 

Como resultante, as rusgas entre os setores que compõem o Judiciário vieram novamente à tona. Como debatemos aqui (http://www.esquerdadiario.com.br/Os-juizes-da-esquina-e-os-supremos-chefes-do-autoritarismo-judicial) os membros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral saíram a desautorizar as instâncias inferiores que haviam dado as ordens para as invasões das universidades e sindicatos. Com isso, não se pode contudo crer que a alta instância do Judiciário, patrocinadora máxima do aprofundamento do golpe de 2016 nas eleições de 2018, passaram a velar pelos direitos democráticos do povo. A ação mal planejada de juízes que almejam um dia serem Sergio Moro, foi também mal calculada, já que desnudava o seu caráter abertamente autoritário. Mas controlando seu baixo clero, o que as altas instâncias do Judiciário querem é elevar sua tutela. 

No entanto, para além do debate acerca das frações do bonapartismo da casta de toga, o que nos interessa debater aqui foi a rápida e importante reação da comunidade universitária, sobretudo de estudantes e servidores, que colocam como hipótese a possibilidade de que sejam o centro de gravidade da resistência. Em um momento que, a despeito dos contornos concretos que assumirá e que hoje ainda não se pode afirmar com exatidão, será crucial. 

As universidades: muito além de um mero aparato ideológico do Estado 

Os motivos que levam as universidades a serem os polos aglutinadores em potencial da resistência, inclusive prévia à entrada em cena dos próprios sindicatos, aos ataques e à ultradireita são complexos e multifatoriais. O seu próprio papel de usina de produção de conhecimento lega à universidade um papel absolutamente peculiar em relação a várias outras instituições da sociedade civil. Uma das interpretações sobre seu papel e natureza mais conhecida e debatida é a análise de Althusser, que localiza as universidades, bem como as escolas, sindicatos dentre outras instituições, como “aparelhos ideológicos do Estado”. Essa denominação indica justamente que o papel que tais instituições teriam seria o de garantir as vias de dominação da classe dominante, ou de suas frações, através da projeção de sua ideologia. Nesse sentido, como afirma o autor: 

“(…) formações ideológicas que são do domínio da Ideologia de Estado que são realizadas nas citadas instituições e suas práticas. Com efeito, são elas que fornecem a chave não só das instituições e de suas práticas, mas também de uma parte das causas que produzem as subformações ideológicas que vemos aparecer nessas práticas (…)os Aparelhos ideológicos de Estado são a realização, a existência de formações ideológicas que os dominam

A influência do estruturalismo francês sobre o pensamento de Althusser faz com que seus escritos indiquem, portanto, que os aparelhos ideológicos do Estado são parte constituinte da política da classe dominante, já que a sua realização ideológica nessas instituições seria fundamental para garantir a sustentação do poder do Estado. No entanto, ao se referir ao Estado capitalista, Althusser tampouco nega absolutamente que a luta de classes possa ter um papel significativo para as transformações como “subformações ideológicas”. Em outras palavras, pode haver através do embate de classes o surgimento de preceitos ideológicos que podem trazer contradições para o funcionamento dos Aparatos Ideológicos do Estado. Porém, essas contradições teriam um alcance limitado. Quando Althusser analisa, por exemplo, o papel dos sindicatos na França, afirmará que esse: 

não compromete radicalmente a natureza do sistema. A ideologia proletária não “ganhou” o sistema do AIE político ou sindical: pelo contrário, é sempre a Ideologia do Estado burguês que domina aí. É evidente que, em certas circunstâncias, tal situação irá criar “dificuldades” para o “funcionamento” dos AIE político e sindical burgueses. Mas, a burguesia dispõe de toda uma série de técnicas já comprovadas para enfrentar tal perigo”.

Se por um lado a burguesia desenvolveu para enfrentar o perigo da radicalização dos trabalhadores integrando os próprios sindicatos ao Estado capitalista, através do processo que Gramsci denominou como “Estado integral”, por outro se denota que a concepção de Althusser cria um Estado praticamente onipotente, dentro do qual no limite as distinções entre democracia burguesa e fascismo são borradas. 

Em relação ao papel específico das universidades e escolas Althusser dirá: 

A “cultura” que se ensina nas escolas não passa efectivamente de uma cultura em segundo grau, uma cultura que “cultiva” visando um número, quer restrito quer mais largo, de indivíduos desta sociedade, e incidindo sobre objectos privilegiados (letras, artes, lógica, filosofia, etc.), a arte de se ligar a estes objectos: como meio prático de inculcar a estes indivíduos normas definidas de conduta prática perante as instituições, “valores” e acontecimentos desta sociedade. A cultura é ideologia de elite e/ou de massa de uma sociedade dada. Não a ideologia real das massas (pois em função das oposições de classe, há várias tendências na cultura): mas a ideologia que a classe dominante tenta inculcar, directa ou indirectamente, pelo ensino ou outras vias, e num fundo de discriminação (cultura para elites, cultura para as massas populares) às massas que domina. Trata-se dum empreendimento de carácter hegemónico (Gramsci): obter o consentimento das massas pela ideologia difundida (sob as formas da apresentação e da inculcação de cultura). A ideologia dominante é sempre imposta às massas contra certas tendências da sua própria cultura, que não é reconhecida nem sancionada mas resiste”. 

Essa teoria althusseriana aplicada às universidades e escolas, reveste-se de um caráter ainda mais polêmico, na medida em que por serem produtoras de um “bem” distinto, que é o conhecimento, é um terreno fértil para a formação de posições questionadoras da ideologia dominante, que atua em função de manter o papel do Estado tal como é. As narrativas, posições e debates que emergem nas universidades a tornam não um mero Aparelho Ideológico do Estado de transmissão da cultura dominante, ainda que a composição das universidades seja necessariamente policalissista, mas um terreno de disputa, que antecipa as contradições mais profundas da sociedade de classes. 

Isso não nega, evidentemente, que no interior das universidades existam burocracias que atuam em nome de seus interesses e cumprem o papel de serem as vias de transmissão do poder instituído. Ocupando os conselhos, direções e demais instâncias da universidade, essa burocracia cumpre um papel conservador, ou mesmo reacionária, e se separa dos interesses da própria comunidade universitária, muitas vezes coibindo a ação dos que buscam radicalizar a democracia e a autonomia dessa instituição. E, considerando que entramos em um momento em que a crise tende a se agudizar, com ataques às universidades, inclusive com projetos de restrição e cortes orçamentários profundos, não se pode descartar que a própria burocracia acadêmica sofra rachas em seu interior, na medida em que parte de seus interesses também podem ser atacados. 

Mas a comunidade universitária é distinta das suas burocracias. E ainda mais diferente são os movimentos, como o movimento estudantil e dos trabalhadores da universidade, que assume feições próprias e tende a chocar-se com a burocracia acadêmica. Assim, a resistência que esses movimentos podem oferecer, portanto, tampouco são aprioristicamente marginais. Ao contrário, tal como se expressou em diversos processos históricos que abarcam desde o Maio de 1968 até a Primavera de Praga pode assumir a forma de um agente mobilizador dos trabalhadores, aliando-se a ele, fazendo com que seja uma instituição que saia primeiro a se mobilizar e lutar contra os ataques, abrindo caminho para as organizações históricas da classe trabalhadora. 

Num cenário nacional marcado por uma imensa incerteza e polarização, que independentemente dos resultados eleitorais será marcado por uma ultradireita que não se desmobilizará, a perspectiva de encarar a universidade como caixa de ressonância das contradições da sociedade e um terreno de disputa é fundamental. Se a lógica de Althusser estivesse correta, a universidade não estaria sendo a potencial faísca da resistência, tal como se expressou nas manifestações contra os desmandos do TRE e da polícia. Muito pelo contrário, seria, caso houvesse uma vitória de Bolsonaro, uma correia de transmissão dessa ideologia. Ainda que ela possa se expressar nas universidades, e de fato isso já vem ocorrendo, está muito longe de ser hegemônica. E para conquistar isso não bastará à ultradireita reacionária que se elegesse em base à fraude do Judiciário se apropriar do poder do Estado. Haveria que realizar ataques, econômicos em primeiro lugar, o que é uma das bases que Bolsonaro almeja atingir com seu discurso de que as escolas e universidades são “usinas de comunistas”, e físicos. 

Para combater essa perspectiva pré-iluminista que Bolsonaro representa, é preciso, portanto que os debates intelectuais, sobretudo nas vozes opositoras ao ataque ao saber e à ciência, se elevem ainda mais. Mas não apenas. É preciso acima de tudo construir uma força material capaz de ser uma resistência, que possa preparar o caminho para ir à ofensiva, e radicalizar de maneira inédita ainda na história do país o que deveria ser a verdadeira vocação das universidades. E essa é estar a serviço das lutas dos trabalhadores e do povo.  

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