Internet e a violenta vontade de compartilhar

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Ilustração: Juan Atacho

 

Por Javier Gabino

 

O que aconteceu entre os anos 2000 e 2018 para que a percepção majoritária sobre a internet se deslocasse de ideias que prometiam liberdade, às que apontam controle social? Em algum momento do processo de expansão e assimilação da nova tecnologia a confiança tecno-otimista no progresso interconectado deu lugar à sensação de ameaça.

 

É sobre isso que trata esse artigo, que tenta uma aproximação conectando três perspectivas: a das intenções, ou seja, das forças sociais e econômicas que se propuseram modelar o novo meio; a das palavras, ou seja, das ideologias e práticas culturais que sustentam os novos modos de uso que necessariamente deveriam ser criados; e a do tempo, ou seja, das comparações e paralelismos. Não são mais do que uma série de pontos a partir dos quais conectar o fato, fragmentos numa nota digital que impossibilita um tratamento exaustivo.

 

Na história dos meios de comunicação modernos, a ideia de interatividade esteve sempre presente. O sonho de conectar-se, fusionando o cinema, a imagem eletrônica que estava sendo elaborada e a rádio em expansão, todos num único sistema, pode se identificar com força já nos anos 20 do século passado.

 

Essa violenta vontade de compartilhar entre iguais se baseou em revoluções reais, e ia desde Walter Benjamin, que o esperava por meio do rádio, a Dziga Vertov, que o augurava como um avanço tecnológico para unir os trabalhadores do mundo todo, passando por cientistas e inventores não tão politizados. Mas ainda que não tenham presenciado essa fusão, presenciaram como as antenas e as telas se espalhavam, não com fins culturais, mas bélicos, e como as novas tecnologias eram utilizadas como meio privilegiado de propaganda para o nazismo, o stalinismo, e o crescente Estados Unidos.

 

Essa ambição de compartilhar percorreu o segundo pós-guerra pela negativa, nas agudas críticas à indústria cultural, à unidirecionalidade da televisão, do rádio e da imprensa, que dava ao povo só o lugar do reality show degradante, a ligação telefônica para opinar ou as cartas de leitores filtradas, enquanto mantinha para os empresários dos meios e para os Estados o poder de decisão sobre a informação massiva e a circulação de opiniões.

 

Por isso, quando em 1991 Tim Berners-Lee conseguiu vincular a tecnologia de hipertexto à internet, com a criação da World Wide Web, surgiu a possibilidade do dispositivo sair dos estreitos círculos científicos, acadêmicos e militares para os quais tinha sido prevista em 1969. E abriu o caminho para uma enorme explosão de energia comunicacional descontrolada com profundas consequências culturais, cujo epicentro pode se localizar no ano 2000.

 

A intenção das palavras

 

A pesquisadora de meios de comunicação, José van Dijck, no seu livro “A cultura da conectividade”, faz uma proposta potente ao analisar a origem das principais redes sociais: Facebook, Twitter, Youtube, Wikipedia e a malsucedida Flickr. Sugere que uma das principais mudanças culturais do impacto da internet deve se encontra na mudança social da ideia de “compartilhar”.Quer dizer que em algum momento da metade da década passada conseguiu-se quebrar o limite de resistência a compartilhar todos os aspectos da vida privada de forma pública.

 

Mais ainda, não se trata só do fato cultural de “se mostrar” nas redes, o que outros autores como J. Hoberman (com um olhar do cinema), consideram uma espécie de Cinema total ao estilo do desejo de Bazin, ou um equivalente em vivo infinito dos filmes familiares em “super 8” da década de 70. Mas trata-se da ideia mais preocupante de aceitar que seus dados, gostos de todo tipo, segredos, fotos, áudios, localização em tempo real (enquanto você lê esse artigo) sejam armazenados, vazados e utilizados por megaempresas de tecnologia que tentarão lucrar com eles.

 

“Compartilhar” deveria ser entendido então dessas duas formas. Os proprietários do Facebook, por exemplo, têm todos os motivos para que os usuários utilizem a rede social com total abertura, porque quanto mais saibam sobre eles, mais informação poderão “compartilhar”… mas com terceiros.

 

A abordagem é interessante, porque localiza o problema no que acontece de forma imperceptível por transformações gradativas nos hábitos e a modificação de níveis de aceitação. O que não era normal no começo da rede; a plataforma de Mark Zuckerberg, que tinha surgido em 2005, já em 2007 viu-se obrigada a correr atrás num sistema de uso comercial muito explícito: Beacon, que era aplicado automaticamente e que literalmente mostrava a “teus amigos” o que você tinha comprado. A indignação se fez sentir imediatamente, porque deixava em evidência que os interesses comerciais da companhia estavam por trás disso.

 

O Facebook retrocedeu, mas, para readaptar sua estratégia numa decisão chave: “em vez de se conformar com a norma dominante, começou a trabalhar para mudar a norma, e substituir o senso estreito de ‘compartilhar’ por um mais amplo”. Em favor do qual deveria atuar também o tempo, com o surgimento das novas gerações “digitais nativas”.

 

Segundo van Dijck, o mesmo método de análise poderia se ajustar às outras plataformas com suas palavras e estratégias: “seguir’ no Twitter ou “pesquisar” no Google/Alphabet. Mas de acordo com isso, quiçá se devesse repensar no mesmo sentido as palavras mais usuais: “fazer amizades”, “colaborar”, “curtir”, numa redefinição das significações que poderia acabar inclusive numa reformulação do que significa hoje o “social’. Mas quando afirmou isso em 2012, disse que deveria se considerar a questão de forma provisória, já que a luta para definir a sociabilidade da rede e por atribuir novas normas e sentidos para esse espaço havia surgido apenas em 2001, ainda que em uma década tudo parecia estar de cabeça para baixo.

 

A intenção das ações

 

Poderia se dizer que as intenções das palavras não são as únicas em jogo quando surge uma nova tecnologia. Em 1973, Raymond Williams escrevia sobre a lógica desse tipo de processos colocando que, longe de qualquer determinismo, sua descoberta podia ser por acaso.

 

Mas apontava ao mesmo tempo que todas as tecnologias sempre foram desenvolvidas e melhoradas para facilitar práticas humanas conhecidas ou desejadas. A intenção original sempre corresponde com a ambição de um grupo social em particular. No entanto, em muitos estágios sucessivos outros grupos sociais, às vezes com outras intenções ou no mínimo com diferentes escalas de prioridades, podem adotá-la e desenvolvê-la, frequentemente com propósitos e efeitos diferentes.

 

Surgindo, em muitos casos, usos e efeitos imprevistos, fora de controle, alterações da intenção original. Assim, a forma cultural desenvolvida nunca podia estar totalmente prevista e seria resultado de forças sociais em conflito.

 

Quais foram os primeiros efeitos não controlados com a aparição da nova tecnologia interativa? Se voltamos ao início do século XXI, é possível detectar 2 chaves: uma ligada ao potencial do dispositivo, que derivou no surgimento de um senso comum das massas que atacou sem piedade a ideia de propriedade intelectual, defendendo o direito de compartilhar tudo sem regulações nem leis, com ênfase na liberdade de expressão. Outro que surge do acaso da época, já que coincide com o esgotamento da confiança no “triunfo capitalista” após a queda do muro de Berlim em 1989: já no ano 2000, as consequências do neoliberalismo haviam começado a ser apontadas e atacadas, o que faz surgir novas intenções de uso dos que saem para protestar.

 

Ambos imprevistos explicam uma boa parte da confusão original na qual estam involucradas as grandes empresas de meios de comunicação (cinema, rádio e televisão) e os Estados, e o espaço no qual se desenvolveram experiências que deram surgimento a novos setores capitalistas que nasceram inovando no novo contexto, como também a processos internacionais de protesto impensáveis sem o novo meio. Processos que marcaram a fluidez da rede durante sua primeira época.

 

Viagem pela linha do tempo

 

No livro de Esteban Magnani, “Tensão na rede, liberdade e controle na era digital” (2012), o autor enfatiza a importância do software livre (SL) como “um sonho eterno” dos desenvolvedores. Aponta como, desde os anos 60, existem na informática duas tendências, as coletivas e as fechadas, umas associadas a ideais “do público” e outras a “comerciais/privadas”. Na realidade, para ser mais preciso, aponta que só o desenvolvimento coletivo, colaborativo e compartilhado de distintos códigos bases que foram mudando de forma viral, ensaio e erro, à solução/adaptação, se ramificando com contribuições de milhares de programadores, foi o que permitiu em última instância o surgimento da atual internet e todos os seus derivados. Os sistemas fechados, que procuram experiências controladas, nutriram-se desses desenvolvimentos coletivos, se apropriando do trabalho alheio para “patenteá-los”, no estilo de Cargill com o DNA das sementes: sem nenhum direito.

 

Essa abordagem é interessante porque aponta o ponto de contato com a explosão da internet entre trabalhadores com saberes técnicos específicos sobre o novo meio e trabalhadores de todo tipo, chamados “usuários” em geral, que se apropriaram da rede com uma vontade imparável de compartilhar. É por isso que a disputa sobre “direitos autorais” foi (e ainda é, em alguma medida) um dos territórios digitais em disputa. Ainda que as empresas tenham avançado enormemente, num processo que excede os limites deste artigo, a possibilidade de copiar, clonar e distribuir uma obra musical ou audiovisual sem custo foi uma grande crise no início do século para a indústria cultural tradicional. O que aconteceu foi que os velhos monopólios que ensaiavam essencialmente estratégias punitivas só provocaram duas consequências: não frear todo tipo de sistemas e estratégias populares de “compartilhar” (sistemas e2k, descargas diretas e todo tipo de variantes); e descuidar sua capacidade de entender as novas tendências, deixando o espaço suficiente para o surgimento das grandes plataformas atuais com as quais tiveram que “negociar”.

 

Para continuar com o fio da história, serve trazer como metáforas três fases da revista Time. No ano 2006 a revista escolheu “você” como personagem do ano, celebrando a suposta capacidade de mudar o mundo que tinham os usuários conectados à internet. Mas em 2010 elegia Mark Zuckerberg como personagem do ano, que tirava o título dos usuários, mas prometendo que faria do mundo “um lugar mais aberto e transparente”, dialogando com o espírito utópico que os mobilizava.

 

A terceira fase que nos interessa chegaria em 2011: como uma mostra da volatilidade dos tempos, Time elegeu como personagem do ano a “The protester” em homenagem aos jovens que tinham saído à luta na chamada Primavera Árabe, ganhando o respeito do mundo ao derrubar regimes como o de Mubarak no Egito, e onde todos apontavam o uso das plataformas Twitter e Facebook como catalisadores e até organizadores do descontentamento social.

 

As intenções de uso nos protestos foram outro grande problema do novo meio de comunicação, não resolvido ainda. Seus primeiros passos podem se rastrear até o ano 1999, onde milhares de pessoas convocadas pelos sindicatos, organizações de esquerda, ecologistas, profissionais, anarquistas e outros, mobilizaram-se nas ruas de Seattle contra a Organização Mundial de Comércio (OMC) até sabotar a chamada Rodada do Milênio. Foi o início do que logo foi chamado de movimento antiglobalização ou altermundista. O fato é sintomático por sua localização temporal, por acaso confluindo no vértice da explosão da rede, ao qual se somaria outro acontecimento: o atentado das Torres Gêmeas em Nova Iorque (2001) e a consequente invasão, guerra e ocupação do Iraque em 2003.

 

As manifestações contra a guerra do Iraque convocaram milhões no mundo todo. Foram as primeiras manifestações convocadas pela internet e SMS, e se mostrou a efetividade dos novos meios, já que o protesto mundial começou a se organizar só um mês antes da sua realização.

 

Podemos considerar também a revolta de Grécia em 2008, 2010 e 2011; a chamada Primavera árabe da Tunísia e do Egito de 2010 a 2013; os “indignados” na Espanha e o Occupy Wall Street nos EUA, ambos em 2011, todos processos onde o uso da rede teve o objetivo de compartilhar os protestos. Esses processos foram acompanhados por abordagens como as do sociólogo e economista Manuel Castells, um dos mais impactados pelas utopias da Sociedade em rede, afirmando que, num mundo vítima da crise econômica, do cinismo político, do vazio cultural e da desesperança, tinha acontecido o impensável.

 

Essa adoção de um instrumento técnico como principal referência para interpretar um fenômeno social é o principal traço e defeito do determinismo tecnológico. Nenhuma ferramenta pode ser o motor de uma mudança por si mesma; trabalha sobre um cenário de tensões sociais reais e no máximo pode canalizar processos de uma forma distinta aos equivalentes conhecidos, com mais velocidade e outras escalas, mas não determiná-los. Vendo de 2019, muitas dessas colocações parecem muito distantes no tempo, e destacam o fato de que hoje a rede se percebe mais como uma teia de aranha.

 

Conexões finais

 

Natalia Zuazo publicou em 2018 um livro que é uma amostra tanto do espírito de época como da situação. “Os donos da internet, como nos dominam os gigantes da tecnologia e o que fazer para mudar isso”. Aponta um fato: em apenas 5 anos, desde 2012 até 2017, entre as vinte empresas com maior capitalização do mercado no mundo foi duplicada a presença de companhias tecnológicas, e estas se concentraram no topo. Em 2012, Apple, Microsoft, IBM e Google ocupavam – respectivamente – as colocações 1, 4, 7 e 14 da lista. Em 2017, Apple, Google/Alphabet, Microsoft, Amazon e Facebook, subiam às colocações 1 a 5, uma embaixo da outra, com um domínio absoluto do topo.

 

Da utopia ao monopólio, desenvolve a ideia de como o “clube dos cinco” chegou dominar o mundo. Como outros autores, concentra sua atenção no Big Data ou a mineração de dados, que passou de ser um subproduto das plataformas a ser o principal objetivo de extração para compartilhar com objetivos obscuros, onde só o uso comercial é claro, mas também ocorrem suas tentativas de manipulação política. Como o escândalo aberto com o Facebook e a campanha de Donald Trump.

 

Alguns elementos de aproximação metodológica de como se chegou a essas consequências foram desenhados ao longo desse breve artigo. O processo de consolidação dos gigantes se combinou com um diálogo com as expectativas dos usuários, expresso no uso de palavras e conceitos da gíria comunalista que soube caracterizar as primeiras visões utópicas da rede como um espaço que de forma inerente favorecia a atividade social. Enquanto os sentidos reais dessas palavras foram gradativamente modificados pelas tecnologias automatizadas que direcionam a sociabilidade humana: o algoritmo (PageRank no Google, EdgeRank no Facebook). Esse processo combinou um constante “ensaio e erro” que ainda não acabou. Com a mineração de dados, o que foi apontado por The economist, em maio de 2017 como “o recurso mais valioso do mundo”, que estabelece novas regras de competição, os novos gigantes tecnológicos foram negociando com os representantes dos meios tradicionais ao longo dos anos. Conseguindo assim alianças comerciais lucrativas para ambos, ainda que com o custo de ir reconvertendo a rede na lógica particular mas concentrada, e com a crescente qualidade unidireccional dos velhos meios, já que sob o domínio dos algoritmos não existe nenhuma democracia verdadeira na difusão da informação, a não ser as intercedidas com o dinheiro ou os grandes acordos comerciais. E ainda que não interfira, o algoritmo tem o objetivo de concentrar aos usuários em “bolhas de eco” que permitem se familiarizar e conhecer melhor as suas preferências.

 

A derrota da Primavera árabe (com ditaduras sangrentas) foi outro determinante ao menos para contribuir no deslocamento das redes para usos controlados. Enquanto fenômenos políticos como Obama primeiro, Podemos, Corbyn ou Trump depois, independentemente da orientação política, demonstram o uso da internet mas já a partir das lógicas industriais instrumentais para chegar ao eleitor.

 

No nível institucional, leva inclusive a discutir reformas que considerem “o fato irreversível” de compartilhar os dados discutindo opções como “bancos de dados nacionais”… Esta parece ser a fotografia da situação atual. Mas então o futuro é obscuro? O autor opina que não. O uso da tecnologia é basicamente um efeito de outras causas; nem as instituições que as regulam, nem os usos e práticas culturais que as sustentam são determinados de forma isolada. Toda reativação da luta de classes, todo processo de rebelião ou revolução influenciará o uso das redes. Movimentos de mobilização internacional como o das mulheres mostram a vitalidade atual das conexões que também se potencializam pela rede. A esquerda pode usar a rede para difundir massivamente suas ideias, com relações e apostas internacionais, como a revista e o jornal digital onde se publica esse artigo. O que mudou é que a luta anticapitalista enfrenta hoje o assentamento de novos inimigos para conseguir impor essa violenta vontade de compartilhar.

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