Aborto: a experiência de uma encruzilhada

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imagem: Juan Atacho

Por Andrea D’Atri

 

Fornicar e matar, o livro de Laura Klein que aborda a história do aborto, foi publicado em 2005 e reeditado em 2013 sob o título mais palatável O crime e o direito. O problema do aborto. Um livro que hoje se revaloriza ao calor dos debates e do movimento que suscitou o debate da legalização do aborto na Argentina.

A autora contou em entrevista que a mudança do título se deu quando ela percebeu que quem lia o livro no transporte público tentava esconder a capa, dada a forte conotação dos verbos impressos em letras grandes ou, também, porque havia outros nomes desafiadores no ar. O desafio para a controvérsia também percorre o livro, desde o início.

Em seus primeiros parágrafos, narra uma cena de 1994. Em um estúdio de televisão, um grupo de profissionais discute sobre o aborto, com argumentos favoráveis e contrários sustentados em dados científicos, interpretações éticas e posições políticas. Em um canto do estúdio, um grupo de mulheres aguardava para prestar testemunho de suas experiências de aborto. “Tinham sido convidadas também para falar; não para dizer o que pensavam, mas para testemunhar sobre o que haviam feito”, diz a autora. Em um momento de acalorada discussão entre os “especialistas”, a apresentadora se dirige às mulheres e pergunta qual a opinião delas sobre o que se está debatendo. Uma mulher responde, enquanto as demais assistem: “Não entendo do que estão falando”.

A partir dessa anedota, Laura Klein reflete sobre a distância existente entre a experiência de abortar e o debate de ideias, sempre controverso, no qual as mulheres que abortam não se reconhecem. É que, para a autora, a pergunta “a favor ou contra o aborto” obstrui a reflexão, além do que se trata de uma pergunta que considera o aborto como uma questão de princípios e não como uma experiência. Obstrui a reflexão, porque exige uma resposta de “sim” ou “não”, sem voltas, e porque, colocada desse modo, não encontra ninguém que seja a favor. “Todos são ‘contra’, os que condenam se opõem ao aborto legal – e favorecem, de fato, sua clandestinidade – e os que defendem sua legalização se opõem ao aborto clandestino”, diz Klein.

A leitura que faz a autora leva a questionar que se o aborto é uma experiência e, como tal, é única, intransferível, no direito ao aborto legal se trata de outra coisa. Poderíamos muito bem reclamar o direito das mulheres de não morrer na experiência do aborto. O certo é que a experiência do aborto não segue o mesmo caminho do debate de princípios. Porque o debate sobre o aborto se afasta, então, da moral sexual para se apresentar como um conflito ético entre o direito à vida e o direito à liberdade. E isso é o que Laura expõe em sua realidade mais crua, incluído aí o risco de que seu livro, como defesa da legalização do aborto, resulte em uma “calamidade”. Algo que já adverte desde a primeira linha.

A encruzilhada ética de cada mulher e da sociedade

No curso da história, desde tempos imemoriais, as mulheres aprenderam a se prover de métodos contraceptivos e aprenderam a realizar abortos. Colocando em risco sua própria vida, as mulheres que não escolheram ser mães, sempre tiveram que tomar a decisão de abortar ou não.

Mas uma decisão, diz a autora de Fornicar e matar, nunca é o produto de uma reflexão, é sempre uma encruzilhada ética. Às vezes, nós mulheres podemos escolher quando ficamos grávidas. Mas, uma vez grávidas (por não ter podido escolher, por ter falhado em evitar ou por quaisquer que sejam as razões), prosseguir com essa gravidez e ter um filho ou não, não é uma escolha livre, mas uma decisão que se deve tomar no marco de uma “liberdade condicional”. “Que mulher quer abortar? De uma maneira ou de outra, está em um transe ético, se vê coagida a tomar uma decisão aqui e agora, não há um retiro para pensar em paz. Encontra-se em uma situação da qual não há evasão possível, já que não dizer implica continuar grávida”.

Essa análise de Laura Klein sobre a decisão como uma encruzilhada e não como uma escolha livre nos leva a colocar outro ponto de interrogação: não é também uma encruzilhada ética a demanda de milhões de mulheres que morrem no mundo em consequência de abortos clandestinos? Desse ângulo, tão pouco deveria se tomar como uma questão de liberdade de escolha ser a favor ou contra o direito ao aborto. Porque o aborto é um feito que já se apresenta em um ato, impedindo-nos de escolher livremente se queremos que exista ou não.

Laura Klein assinala algo que é contundente: “o aborto é ilegal, abortar é um delito penal, mas as mulheres abortam do mesmo jeito. Não têm o direito, mas têm o poder”. Assim como as mulheres podem conceber e gerar, podem abortar. Mas esse poder não implica uma liberdade de escolha. Podemos ser a favor ou contra o aborto, a favor ou contra sua legalização; mas o aborto é algo inegável, que não se atém a princípios éticos, nem a códigos, nem a instituições jurídicas, políticas ou religiosas. Mas isso, muito bem colocado por Klein e que já se viu aqui, em uma versão popular, como uma consigna do movimento de mulheres: “ser contra o aborto não é ser a favor da vida, mas a favor do aborto clandestino”.

É essa dicotomia “aborto legal ou aborto clandestino” que deveria estar em jogo nos debates, e não a outra, a falsa dicotomia “contra ou a favor do aborto”, que também se costuma, maliciosamente, traduzir como “a favor ou contra a vida”. Se o aborto é uma encruzilhada ética e não uma escolha, o Estado deveria garantir que, nessa encruzilhada, as mulheres não sofram infecções generalizadas, nem perfurações uterinas, nem hemorragias, e que não morram. Porque não podemos escolher, como sociedade, que exista ou não exista o aborto. Temos que tomar decisões sobre os atos consumados; da mesma maneira que uma mulher grávida tem que enfrentar essa encruzilhada ética (abortar ou não abortar) sobre uma gravidez já consumada.

Propriedade e livre escolha: o indivíduo burguês na encruzilhada

Partindo desse ponto de vista, a autora nos deixa uma reflexão que intranquiliza sobre as expressões de que habitualmente se utilizam para falar do direito ao aborto como direito de escolher, sobre a escolha da maternidade como projeto, etc. (em inglês, os favoráveis à legalização do aborto costumam usar a expressão pro-choice). Diz Klein: “A situação de uma mulher grávida que não quer ter um filho não é uma escolha, mas uma decisão”. E essa definição impede todo tipo de caricatura leviana da mulher grávida “elegendo” com frivolidade se interrompe a vida que está gestando, como essas por meio das quais os inimigos da legalização costumam ridicularizar e demonizar as mulheres que abortam. A encruzilhada ética na qual se encontra uma mulher grávida sobre a continuidade ou não dessa gravidez é muito distante da “liberdade de escolher” que experimenta o consumidor diante das ofertas do mercado.

Esse “indivíduo-consumidor”, figura liberal da sociedade burguesa, também é questionado pela figura da mulher grávida.

O conflito se coloca no nível da matéria, como se um lamentável acidente da biologia fosse o responsável pelo encontro entre as mulheres grávidas e as vidas não nascidas no ventre prenhe, onde os interesses de uma e outra parte podem se chocar. Essa patética utopia de independência atravessa os argumentos e as metáforas com que as posições em debate se opõe e não lutam, se excluem e não se contradizem. O requisito necessário é desencaixar o sexo do indivíduo com direitos; a operação é negar a gravidez.

A partir daqui, Laura Klein desenvolve uma reflexão sobre a tão corrente expressão utilizada a favor da legalização: “o direito ao próprio corpo”. Para a autora, é necessário questionar profundamente esse argumento segundo o qual é livre aquele que tem direitos de propriedade sobre si mesmo, tendo em conta que a gravidez é, justamente, uma exceção a essa regra, mas não uma qualquer: a exceção que permite perpetuar a espécie. Assinala:

“Considerar a mulher gestante como se tivesse ali dois seres separados, Mulher + Zigoto, habilita narrar sua relação corporal como um litígio entre os indivíduos por seus respectivos direitos ao próprio corpo. Insensivelmente, o corpo-próprio se desliza a corpo-coisa-casa, como se se tratasse de um objeto, mas cuja propriedade se fala em litígio entre dois indivíduos anônimos quaisquer”.

E mais adiante se pergunta como pode se entender que algo forme parte de outra coisa e ao mesmo tempo seja uma individualidade. A autora sustenta que a contradição lógica não é para as mulheres nem para os embriões, mas “para aqueles que pretendem reduzir a lógica da vida à categoria do indivíduo”. No capítulo seguinte, dedicado a questionar o Código Civil, dá uma resposta: “O que nos faz humanos não é o DNA, mas que uma mãe nos queira ter. Antes de ser indivíduos, somos filhos”.

A encruzilhada do corpo gestante: o poder de fornicar e matar

Como falar de aborto sem falar de gravidez?, se pergunta a autora. E é certo que dividir o debate do aborto daquele no qual se fundamenta é bastante suspeito. É que levar o debate até a gravidez nos obriga a debater o que é a maternidade na nossa sociedade, a que valores está vinculada, por quais interesses, que relação com o Estado e o modo de produção, etc. E questionar a maternidade, inelutavelmente, conduz a pensar a situação social das mulheres: os estereótipos inculcados, os destinos pré-fixados segundo as normas, as violações cotidianas, a mercantilização dos nossos corpos, etc.

Diz Laura Klein: “Abortar é sempre uma experiência trágica também quando uma mulher não quis ser mãe e decidiu abortar, arrependa-se ela mais tarde ou não”. E aqui surge outro ponto de interrogação: seria por acaso a subjetividade (que se coloca nessa experiência intransferível), independente da sociedade que interpreta, que produz, legitima, confere sentido, produz experiência, esse desejo, esse não desejo, essa decisão, esse arrependimento, esse não arrependimento? Acreditamos que não. A autora reconhece que a mulher “não escolheu ficar grávida; é forçada agora por essa falta de liberdade original”. Mas essa falta de liberdade original não é essencial, não é ontológica. A falta de liberdade original não está inscrita no corpo, anatomia não é destino e menos ainda com o desenvolvimento alcançado pela civilização humana. Essa falta de liberdade não fala da situação de opressão determinada de um gênero, da metade da Humanidade.

Nessa falta de liberdade que caracteriza a vida das mulheres, há que destacar o discurso opressor da Igreja. Em seu capítulo sobre a Igreja Católica, Laura Klein assinala de que maneira os verbos “fornicar” e “matar” acompanham a história de sanção do aborto. Porque a primeira proibição do aborto para o dogma religioso não colocaria em consideração o respeito pela vida embrionária, mas penalizaria o “pecado sexual” cometido pela mulher, que caiu nessa gravidez indesejada. O castigo divino recai sobre a “fornicação”, ou seja, sobre o trato sexual com um homem com o qual não é casada, um pecado que a mulher adúltera tentará dissimular com o aborto.

Quiçá fosse possível imaginar uma sociedade onde o aborto não seja uma experiência trágica. Ou onde abortar seja uma decisão em vias de extinção, porque não existiriam as falhas dos contraceptivos, nem a impossibilidade de acesso a eles, nem a violência contra as mulheres, nem o eco mulher = mãe.

Nos organizar para irritar

Laura Klein adverte contra os discursos a favor do aborto que não se atrevem a correr esses riscos políticos de que “não irritar também tem seus custos”. E como o sabemos as que atuamos na política e as que somos ativas lutadoras pela despenalização do aborto na Argentina. Ainda que soe irritante, não haverá direito ao aborto na Argentina se não for como produto da luta das mulheres, mobilizando-se de maneira independente do Estado, suas instituições, o governo e os partidos patronais-clericais. Um movimento que já demonstrou poder transformar em agenda política de massas os debates que pareciam, quando saiu a primeira edição desse livro, reservadas a pequenos círculos de ativistas.

Laura Klein sabe irritar amigos e inimigos, correndo o risco político de não ser “politicamente correta”. Dependerá daqueles que leem o seu livro saber driblar a irritação e se colocar o exercício de interrogar ou se interrogar, de refletir sem se esquivar da complexidade e chegar a novas e mais sábias conclusões, que nos permitam não morrer por esse direito elementar em uma decisão que não podemos escolher com liberdade.

“Há uma distância irredutível entre o discurso do direito e aquele da experiência. E a experiência do aborto diz que o corpo não cabe no direito, que a tragédia não se resolve juridicamente, que há poderes legítimos e direitos impotentes”, diz Laura Klein e prossegue para terminar o livro com essas palavras:

“As mulheres exercem um poder que não têm direito; têm o poder de infringir a lei. Nele reside a força que faz valer a luta por sua legalização: se a lei pode garantir o exercício das liberdades, nos interpela Levi-Strauss, estas não existem mais que por um conteúdo concreto que não provém da lei, mas dos costumes. Aqueles que rejeitam essa força negam a parte de leoa que nós mulheres temos na experiência, desconhecem esse poder como se fosse perigoso. E o é.

Fornicar e matar dessacraliza argumentos que considerávamos bem fundados e nos inquieta ao recordar que, quando se trata de estratégias em debate, o discurso não é irrelevante, nem sequer acessório. É um livro que provoca mais perguntas que certezas, sem modificar por isso nossa postura a favor da legalização do aborto, que é a posição que sustenta e quer transmitir a autora com sua valiosa e irreverente obra. Uma leitura recomendável para uma nova geração que, com autoconfiança, apropriou-se do velho e criou todos os fundamentos para reclamar seus direitos, tingindo de verde a política nacional.

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