“Mau Lugar”, do Coletivo de Galochas: o suicídio, o desejo e a insubmissão

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Por Fernando Pardal

 

“(…) é um absurdo considerar antinatural um comportamento que se consuma com tanta frequência; o suicídio não é, de modo algum, antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas. O que é contra a natureza não acontece. Ao contrário, está na natureza de nossa sociedade gerar muitos suicídios (…)”

– Karl Marx, Sobre o suicídio, 18461

O Coletivo de Galochas reestreou nessa quinta-feira, 13, sua peça “Mau Lugar” no Teatro da USP (TUSP). Colocam em cena uma distopia que trata da morte, do suicídio, da satisfação compulsória, de uma sociedade onde é proibido ser insatisfeito. Mas, como eles mesmos afirmam, “Diferentemente da utopia, que é lugar nenhum, a distopia pode ser qualquer lugar. Pode ser aqui mesmo e agora. Pode ser apenas uma tamanha falta de perspectiva que o suicídio transparece com um ato de resistência. Pode ser tamanha opressão que nossa humanidade torna-se um fardo insuportável. Pode ser ainda a sensação de prisão de uma vida vivida em caixas de pequenas satisfações compulsórias, pequenas vitórias de pequenas disputas. Um mau lugar”2.

Apresentação de cenas de “Mau Lugar” em outubro de 2017 na sede do grupo

E se 800 mil pessoas cometessem suicídios todos os anos? Uma a cada 40 segundos. E se o suicídio fosse a segunda maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos em todo o mundo? E se apenas no Brasil fossem 12 mil suicídios anualmente, um a cada 45 minutos? Isso seria considerado um “mau lugar” o suficiente para dizermos que vivemos em uma distopia? Pois nela vivemos. Esses dados, produzidos pela ONU, referem-se a alguns anos atrás. Provavelmente os números hoje são maiores, já que a crise acentua a desigualdade e a miséria, agravando milhares de causas para o suicídio. E estima-se que por trás de cada suicídio consumado existem vinte tentativas mal sucedidas.

Os Galochas, como em todas suas peças, continuam falando sobre o agora e o urgente. Mas deixaram de lado, nesse momento, a fúria agitativa de sua “Revolução das Galochas”, peça feita no calor das jornadas de junho de 2013, e que trazia também uma realidade “fictícia” em que os “comuns” – os trabalhadores, os explorados – juntavam-se para combater o “Esquema” – o capitalismo. Segundo eles, “Os utópicos coquetéis molotovs da montagem de {Revoluções das Galochas} que, em 2013, fulguravam como símbolos da insatisfação social e resistência, parecem não corresponder à realidade, onde um rapaz continua preso por portar produto de limpeza em uma manifestação”3. A referência aqui é a Rafael Braga, jovem negro que se encontra ainda arbitrariamente preso desde as manifestações de 2013, mesmo que todos saibam de sua inocência.

Os Galochas decidiram falar sobre esse Mau Lugar em que vivemos, em uma “ausência de perspectivas”, nas suas palavras. A forma brutal de dominação apresentada em sua peça, com um controle totalitário e violento a serviço do lucro, e imposto a partir da felicidade e da satisfação compulsórias, de uma sociedade de delações e vigilância, dialoga com tantas outras distopias que conhecemos. Da vigilância já quase “lugar comum” de um 1984 de George Orwell, passando pela visionária distopia “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, onde a droga da felicidade compulsória, Soma, já se fazia presente.

Mas nenhuma distopia produz um eco e reverbera de forma tão sombria quanto o faz Mau Lugar se ela não dialoga imediatamente com o que vemos e vivemos. A sociedade dos suicídios e da felicidade compulsória não é outra senão a nossa.

Lúcia é a protagonista do drama. Aqui cabe um parênteses sobre a opção estética pela forma dramática: os Galochas sempre trabalharam com o teatro épico, ou seja, com a quebra de sequências e linearidades, com narradores e o elemento histórico em cena, com a quebra da quarta parede, ou seja, com a forma teatral que é por excelência, ao menos desde o início do século XX, aquela que se presta melhor a colocar em cena os assuntos da luta de classes, da história, das grandes paixões coletivas – que foi consagrada como tal pelos dois expoentes do teatro revolucionário Erwin Piscator e Bertolt Brecht. O drama, em contraposição, é a forma estética “clássica” do teatro burguês, que antecedeu a forma épica tal como a conhecemos e acompanhou o teatro que falava das lutas sociais apenas até o limite do naturalismo – no qual produziu obras primas como “Os tecelões”, de Gerhart Hauptmann, sobre a histórica revolta dos tecelões na Silésia em 1844, ou “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri. Mas o drama presta-se ao diálogo, às paixões e conflitos individuais, às cenas privadas em oposição aos dilemas das massas.

Não é à toa que os Galochas voltam ao drama, e é uma escolha consciente. Sobre isso, eles dizem: “Optou-se pelo drama, principalmente a partir de um de seus mais éticos compromissos: com a transparência. O Drama não engana, não surpreende. Mas um drama musicado, onde a música surge como elemento de suspensão, seja do tempo seja do contexto dramático”4. O drama aqui, como dizíamos antes, traz, como é de seu feitio, uma protagonista: Lúcia. A transparência dele, de onde assistimos tudo como se a vida se passassem diante de nossos olhos através de uma tela, nos mostra uma mulher em conflito com sua própria adesão, até então voluntária, aos valores sociais da satisfação controlada.

Vitória, filha de Lúcia, se suicida. O suicídio, crime grave, é delatado por um dos “colaboradores” da fábrica onde Lúcia é supervisora. E ela, tendo que se livrar do corpo da filha para não ser punida pelo crime da “insatisfação” na sua família, acaba descobrindo que em uma sociedade “plena e satisfeita”, toda a miséria recalcada socialmente volta, como no psiquismo individual, através de um sintoma. O suicídio de Vitória é um sintoma, bem como a revolta dos que conspiram para explodir a fábrica onde Lúcia trabalha: a fábrica de remédio da felicidade.

A epígfrafe de Marx que encabeça esse texto poderia ter sido escrita para tratar da peça dos Galochas, ou da sociedade de hoje. Um dos grandes temas da peça, que permeia tanto o percurso de Lúcia como o dos demais personagens, é justamente a impossibilidade de acabar com a miséria humana por meio da “fiscalização” da felicidade e das saídas químicas impositivas. Não há remédio capaz de impedir o sofrimento humano, e essa reflexão é tão atual como imprescindível em um mundo que, hoje, tenta fazê-lo constantemente.

Como discuti aqui, a OMS – órgão do imperialismo para o controle da saúde da população mundial – tem uma série de recomendações para combater o suicídio entre as quais se destaca a não-divulgação destes. Ao mesmo tempo em que exibem a monstruosa cifra de 800 mil suicídios por ano para tentar mostrar que, sim, se importam, orientam a que a imprensa não divulgue onde, como, porque as pessoas se matam. O seu medo é o “contagio”: em uma sociedade onde a ideia de se suicidar é contagiosa, é fundamental “manter as aparências”. Não à toa que epidemias de suicídio, como a que vivemos hoje nas universidades brasileiras, sejam por todos os meios suprimidas do conhecimento público.

A tragédia do dono da fábrica, um representante inquestionável da “sociedade da satisfação” que se apresenta na peça, é também ver seu filho se suicidar, e, portanto, ver ruir o castelo de areia de sua tentativa de suprimir “na marra”, com repressão, vigilância e remédios, a insatisfação profunda gerada pela sociedade que sustenta sua riqueza. A tentativa é, no fundo, a de suprimir o desejo, o que torna o sujeito em sujeito, pela normalização, pela satisfação padronizada, pelo sucesso empresarial pautado nos valores da “ascensão profissional”. Elisabeth Roudinesco, psicanalista francesa, ao tratar da sociedade contemporânea traduz muito bem aquilo que os Galochas colocam em cena magistralmente:

Assim, a era da individualidade substituiu a da subjetividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito. Longe de construir seu ser a partir da consciência das determinações inconscientes que o perpassam à sua revelia, longe de ser uma individualidade biológica, longe de pretender-se um sujeito livre, desvinculado de suas raízes e de sua coletividade, ele se toma por senhor de um destino cuja significação reduz a uma reivindicação normativa. Por isso, liga-se a redes, a grupos, a coletivos e a comunidades, sem conseguir afirmar sua verdadeira diferença. É justamente a existência do sujeito que determina não somente as prescrições psicofarmacológicas atuais, mas também os comportamentos ligados ao sofrimento psíquico. Cada paciente é tratado como um ser anônimo, pertencente a uma totalidade orgânica. Imerso numa massa em que todos são criados à imagem de um clone, ele vê ser-lhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual for o seu sintoma.5

A normalização do desejo e a repressão da revolta se complementam numa totalidade “perfeita”. Mas se é impossível suprimir o desejo, sob pena de que essa repressão retorne como sintoma, o mesmo se dá no plano social e se infiltra na peça, traindo o que os próprios Galochas apresentam como o retrato de uma desesperança irredimível. A revolta do desejo – o coletivo, mas também o individual – aparece em “Mau Lugar” tanto sob o prisma dos que se rebelam, procurando explodir a fábrica, como dos que se suicidam num ato de rebeldia, recusando-se a abrirem mão de serem sujeitos e sendo sujeitos da única forma que encontram: sendo agentes de sua própria morte e se recusando à satisfação compulsória. A profundidade desse conflito se expressa na fala de Divino, um dos rebeldes, quando diz: “A vida é uma dádiva. Mas nem ela, nem a felicidade, podem ser impostas a ninguém”.

Assim, a insubmissão continua sendo a marca perene da obra dos Galochas: dos molotovs de sua “Revolução das Galochas”, à sabotagem e aos suicídios proibidos de “Mau Lugar”, o grupo nos mostra essa característica tão humana, a mesma que alimenta em nós a certeza de que, não importa o quão ruins as coisas fiquem, a emancipação é o destino da humanidade pelo qual vale lutar a cada dia.

O cenário da peça, feito de “praticáveis de caixas” – ou seja, estruturas compostas por caixas com rodas embaixo, que se deslocam pelo palco compondo os cenários, expressam metaforicamente as caixas em que são colocadas as personagens. Seja as caixas subjetivas da satisfação e do trabalho duro. Seja as caixas bastante materiais em que os corpos dos suicidas são escondidos para serem levados ao lixão e queimados clandestinamente.

E na música que segue à queima do corpo de Vitória, filha de Lúcia – uma suspensão do momento dramático, como dizem os Galochas – a letra expressa a luta, o desejo reprimido mas não morto; o conflito entre o desejo e a morte, a morte subjetiva e a morte física, está nos versos:

“Um corpo morto-vivo

Puxa um corpo vivo-morto”

A morta-viva é Lúcia, que trabalha, vai à fábrica, toma os remédios, ostenta sua satisfação compulsória e motiva seus funcionários. Mas cujo desejo é morto, soterrado pela “satisfação” imposta. Já sua filha Vitória, puxada na caixa, é um corpo vivo-morto: apenas no ato do suicídio e mediante ele, tornou livre e vivo seu desejo. O ato da morte física foi o único caminho que encontrou para afirmar seu desejo, nem que fosse o desejo de não mais servir a uma ordem que a transformasse em morta-viva.

Não é à toa que os Galochas recorrem à lembrança de outros que em nossa história expressaram a insubmissão do desejo pelo suicídio: “É recorrente na história o suicídio coletivo de mulheres ou homens negociados como escravos, ou derrotados em batalhas que se recusam à rendição”. Os “comuns” da Revolução das Galochas voltam, como sabotadores, como suicidas. Eles trazem à cena a música da insubmissão dessa peça anterior, “Em que noite mataremos o Rei”.

Vitória, liberta de seu corpo e da submissão a que era imposto em vida, surge girando em meio ao lixão. Lúcia a vê perplexa, e a interroga pelo seu motivo. Mas Vitória apenas gira, porque quer, porque seu desejo é livre. E frente à declaração de Lúcia que dizia ser “estranho” ficar girando sem motivo, Vitória mostra que o “estranho”, o absurdo, é submeter seu desejo a ponto de agir como a mãe: “E o que você acha mais estranho, ficar girando ou queimar o corpo da própria filha em um lixão?”

Com o Mau Lugar dos Galochas, choramos. Mas também aprendemos e praticamos a insubmissão, que é irreprimível. A nossa insatisfação é irreprimível. E ainda “pegaremos em armas, ergueremos bandeiras e faremos a cidade arder toda em vermelho”.

SERVIÇO:

13 a 30 de setembro

Quintas, sextas e sábados às 21h

Domingos às 19h

Duração 80 minutos

Recomendado para maiores de 16 anos

Notas:

1 MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006. P. 25.

2 HERCI, Antonio; LOPES, Daniel; PRESTO, Rafael. Apresentação de Mau Lugar in: Coletivo de Galochas, dramaturgia completa. São Paulo: Conecta Brasil, 2017. P. 113.

3 Idem, p. 115.

4 Idem, p. 116.

5 ROUDINESCO, E. “Por que a psicanálise?”. São Paulo: Zahar. p.3

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