Sobre a relação entre gênero e classe

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Entrevista com Tithi Bhattacharya

 

Tithi Bhattacharya é marxista, feminista e professora de história da Universidade de Purdue, no Estado de Indiana (EUA). Em 2017, editou Social Reproduction Theory. Remapping Class, Recentering Opression (Teoria da Reprodução Social. Remapeando a classe, recentralizando a opressão, em tradução livre), livro que tem a particularidade de se propor como uma visão marxista da Teoria da Reprodução Social. Aqui apresentamos uma conversa na qual ela nos expõe seus pontos de vista sobre a relações entre classe e gênero, as possibilidades de um feminismo anticapitalista e a busca por fortalecer a classe trabalhadora.

 

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IdZ: Em seu livro, você diz: “estou propondo aqui três coisas: a) uma reafirmação teórica sobre a classe trabalhadora como sujeito revolucionário; b) uma definição mais ampla sobre a classe trabalhadora que aquela que se refere às/aos assalariadas/os; c) uma reconsideração da luta de classes que inclua as lutas que vão além dos salários e das condições de trabalho”. Gostaríamos de organizar a entrevista em torno dessa afirmação. Primeiro, a ideia da classe operária como sujeito revolucionário não é uma posição muito habitual no feminismo em geral, e imagino que tampouco é generalizada no feminismo dos 99%. O que significa a defesa dessa proposta no marco dos debates do feminismo na atualidade?

 

Bom, agradeço a pergunta, porque considero que é muito importante. Não acredito que haja uma contradição entre esse ponto de vista do poder da classe operária ou a potencialidade da classe operária para mudar o mundo, e o feminismo dos 99%, surgido em 2016 a partir da Greve de Mulheres[1]. Porque nasceu precisamente para estabelecer essa ideia do poder da classe operária. Porque particularmente nos Estados Unidos e no norte da Europa, mas também em várias regiões do mundo (eu trabalho de forma muito próxima do feminismo da Índia, de onde venho), a ideia de feminismo que se apreciou durante o neoliberalismo foi a que construiu essa vaga figura do “empowerment”. Essa ideia de “empoderamento” evita a pergunta de quem é a que se empodera e para que fins, essas são as perguntas que o neoliberalismo silencia. Então, o feminismo se colocou um tanto próximo da ideia de “empoderamento” das mulheres, o que, em termos reais, se transformou na ideia de êxito de um setor muito pequeno de mulheres de todo o mundo: êxito como políticas, êxito como mulheres de negócios, êxito como CEOs, etc. Quando as mulheres escalam essas posições e têm êxito, isso é considerado um êxito para o feminismo. Enquanto o verdadeiro problema é que, para a grande maioria das mulheres em todo mundo, o neoliberalismo significou um empobrecimento das condições de vida e das condições de trabalho. Então, se o feminismo quer se converter em uma ameaça para o sexismo e a violência capitalistas, em vez de ser uma serva do desenvolvimento capitalista, então tem que ser um feminismo anticapitalista. Essa forma de entender o feminismo está estreitamente ligada à questão do poder da classe operária. Creio que há um problema teórico e um problema político que é preciso abordar. O teórico é que, durante muito tempo, tanto nas concepções liberais de classe e classe operária, como na autopercepção da classe trabalhadora, há uma separação teórica entre o que são considerados problemas de classe e o que são questões de opressão social. As mulheres, as minorias étnicas ou, mais ainda, as pessoas trans, não são vistas como membros de uma classe, então, somos compreendidas por nossa opressão mais que por nosso pertencimento a uma classe. Penso que este é um problema sobre o qual a Teoria da Reprodução Social, como está colocado no livro, trata de lançar uma luz. Trata de disputar que as percepções de gênero, de raça, de deficiências, etc. devem ser compreendidas como parte da questão de classe e não como assuntos separados. Essa é a parte teórica. As conclusões estratégicas que se tira é que todas essas questões são questões de luta de classes. As lutas que desafiam a opressão social também são lutas de classes. Então, para mim, a concepção de que a luta de classes está limitada a lutas por aumentos salariais ou lutas dentro dos locais de trabalho, deve ser combatida. Na etapa neoliberal, as condições de vida pioraram junto com as condições de trabalho. As duas estão relacionadas, de modo que a vulnerabilidade das condições de vida te torna mais vulnerável no local de trabalho. Sem estabilidade como imigrante, é mais fácil para o patrão despedir você. Ou se você é uma mulher, também é mais fácil para o chefe assediá-la. Por exemplo, em relação à questão migratória: a luta contra as cotas para imigrantes (“immigration rates”, em inglês) não se pode separar da luta ela sindicalização, porque as duas são lutas que andam de mãos dadas. Essa é a consequência estratégica: no livro, tentamos ter um entendimento mais integral da classe trabalhadora, que integre questões de raça, gênero, igualdade e opressão social entendidas como um todo.

 

 

IdZ: Em relação a essa compreensão mais integral da classe trabalhadora, no livro você coloca que é uma “ampliação” da definição de classe, mas eu me pergunto: uma ampliação a respeito de que definição da classe trabalhadora? A de Marx? A de certo marxismo? A da maioria dos sindicatos?

 

TB: Bom, no livro, há um uso recorrente de palavras ou do prefixo “re”, porque entendemos essa compreensão teórica não tanto como algo novo, mas também como uma recuperação das tradições marxistas clássicas. A ideia central é que, no Volume I de O capital (no conjunto dos três volumes de O capital) e em vários outros lugares, Marx desenvolve uma compreensão do motor do capitalismo. Qual é essa dinâmica que impulsiona o sistema adiante? O motor se encontra na produção de mercadorias por parte da classe operária no local de trabalho, que permite ao capitalismo extrair o mais-valor através desse processo. Desse modo, não se trata de um processo extraeconômico como os modos de produção anteriores. É e se faz através da exploração e da extração de lucro e mais-valor fazendo com que a trabalhadora[2] trabalhe mais tempo ou mais intensamente para que o patrão obtenha os lucros. É esse o ponto de partida e o motor do capitalismo. Mas, em várias passagens da obra de Marx, como, por exemplo, em A ideologia Alemã, Marx e Engels dizem basicamente que esse é o modo que a trabalhadoras tem de viver, subsistir, em algum sentido, esse é o começo do sistema: a trabalhadora tem que estar separada de seus meios de subsistência, porque se todos tivéssemos acesso a reproduzir nossas vidas, não teríamos que trabalhar para nosso chefes. Ninguém iria a um trabalho horrível das 9h às 17h, e incluindo-se cada vez mais horas, se tivéssemos meios de produzir nossa própria comida e sustentar nossas próprias vidas. Em um momento particular da história do capitalismo, a classe operária foi separada ou violentamente arrancada de seus meios de reprodução, razão pela qual a classe operária passa a depender do capitalismo para reproduzir sua vida. Por isso, vende sua força de trabalho ou sua capacidade de trabalhar: para ganhar a vida. Na história do capitalismo, a questão começa quando a trabalhadora começa a trabalhar, ou seja, quando se toma a força de trabalho como algo dado. Em Teoria da Reprodução Social, dou um passo atrás e digo: “a força de trabalho não é dada, tem que ser reproduzida”. Existem inúmeros processos sociais que entram nessa reprodução da força de trabalho. Não está dada. Porque se tomamos a força de trabalho como algo dado, a força de trabalho de cada ser humano seria exclusivamente a força de trabalho portada ao nascer. Mas, obviamente, a força de trabalho não se reduz a essa força “primeira”: é formada, moldada, produzida e aperfeiçoada por nós mesmo dentro da família e dentro das redes sociais às quais pertencemos por muitos anos. Nenhum destes são processos naturais. Todos são processos sociais. A Teoria da Reprodução Social nos leva a olhá-los. Gosto de pensá-la como um mecanismo teórico extremamente elaborado para desenvolver: estamos desenvolvendo constantemente todas as categorias naturalizadas, filosóficas e políticas, que o capitalismo nos apresenta. Então, surge a pergunta sobre que tipo de processos sociais produzem a força de trabalho. O que é óbvio é que há um processo biológico: você nasce e é socializado. Na maioria das famílias, não socializamos nossas filhas (talvez deveríamos começar dentro do movimento feminista), dizendo: o matrimônio e a monogamia são terríveis. Algumas de nós, obviamente, fala com suas filhas sobre essas coisas quando já estão suficientemente maduras para lidar com essas questões. Mas não começamos daí. Em outras palavras: socializamos a menina em  relações sociais capitalistas. Logo, socializamos a menina nas escolas, nos postos de saúde. E quando menciono esse mecanismo de socialização mais institucionais, imediatamente nos damos conta de quanto estão segmentados. Certos bairros têm certos tipos de escolas e outros têm escolas melhores. Desse modo, estamos falando da reprodução diferencial da força de trabalho: uma parte da força de trabalho é preparada ou socializada para ir a Harvard, enquanto outra parte da força de trabalho é preparada e socializada para se converter  em um trabalhador da construção. Assim, de novo, quando dizemos que a força de trabalho se reproduz não é um processo simples. Necessitamos olhar as várias instituições sociais que reproduzem a força de trabalho. Então, começamos a entender que a reprodução da força de trabalho é também a reprodução das relações sociais capitalistas. Ambas estão intrinsecamente relacionadas. A produção de mercadorias no lugar do trabalho e a produção da mão de obra ou da trabalhadora fora do lugar do trabalho são processos relacionados. Do contrário, as relações sociais capitalistas se tornariam instáveis. Assim, pois, para assegurar sua própria estabilidade tem que haver uma conexão sistemática entre como se reproduz a força de trabalho, em que lugares, etc. Por exemplo, a família baseada no parentesco tem que ser estável para que a próxima geração possa ser socializada. As feministas na Argentina são uma grande inspiração nesse momento, porque essa é precisamente uma das coisas que vocês estão combatendo. Nossas irmãs nas ruas estão lutando contra o fato de que os políticos e os capitalistas e a Igreja Católica estão basicamente pressionando por um fortalecimento da unidade familiar através da questão do aborto, dizendo que as mulheres têm que ser mães. É uma compreensão forçada da relação das mulheres com seus corpos, com nosso corpos e com a unidade familiar. Obviamente, a Argentina não está sozinha nisso. Todos os países capitalistas têm uma agenda “pró-família”, é só uma questão de até que ponto pressionam com isso as nossas gargantas.

 

IdZ: Em relação a isso, porque na Argentina, a cúpula da CGT (Confederación General del Trabalho de la República Argentina) chegou a colocar a preocupação com os custos que significaria para a assistência e previdência social a legalização do aborto (argumento que, de certo, já tinha sido colocado por setores da direita, como a vice-presidente Michetti). Você considera que o direito ao aborto é um direito que os sindicatos têm que defender?

 

Absolutamente sim. Creio que os sindicatos – não apenas os sindicatos, mas qualquer setor do movimento operário, tenham ou não organização sindical – deveriam se ocupar da questão do aborto. Sem direitos sobre nossa capacidade reprodutiva, temos direitos reduzidos sobre nossa capacidade produtiva. Essas batalhas não podem se separar em absoluto. E creio que estamos mais frágeis tanto no movimento feminista como no movimento operário se os sindicatos se negam a lutar pelos nossos direitos reprodutivos. O mesmo se dá com o racismo: se os sindicatos não tomam essas lutas, se enfraquecem. O direito ao aborto é um terreno muito importante de empoderamento para as mulheres da classe trabalhadora. Não sei quais são as cifras na Argentina, mas nos Estados Unidos, é uma batalha de classes direta: as pessoas ricas podem pagar o aborto, essa é a simples verdade. “Parentalidade Planejada” (Planned Parenthood) é a instituição que mais ajuda no aborto (nos EUA) e tem sido alvo de muita violência do Estado e dos antiabortistas em geral. A grande maioria das mulheres acessam os serviços da Planned Parenthood é pobre e de minorias étnicas[3], 60% são mulheres de minorias étnicas. Trata-se de uma questão de classe direta para as mulheres da classe trabalhadora. E se você pensa nisso, a questão de ter ou não ter uma filha é completamente uma questão da classe trabalhadora. Como você vai alimentar a criança? Essa é a primeira pergunta e está diretamente ligada a que tipo de trabalho você tem, a qual, por sua vez, está relacionada com o tipo de atenção médica a que você pode ter acesso. Realmente, você pode ter uma criança? Pode ter os nove meses de gestação até dar à luz? Dispõe de cuidados médicos para gestar o bebê e parir? E depois que o bebê nasce, com que diabos vai alimentá-lo? Você tem um lugar para ela? Também liga-se a outros problemas: e se as autoridades migratórias lhe tiram o bebê, como está fazendo Trump? Todos esses são problemas reprodutivos. Não estão separados, porque o nascimento de um bebê não é só uma questão de mulheres. São as mulheres e os corpos identificados como femininos os que dão à luz (porque os homens trans também o fazem), mas a questão da “parentalidade” é completamente uma questão social.

 

IdZ: No livro, você coloca que o circuito da reprodução da força de trabalho (terreno no qual aparecem todas essas questões que são próprias classe operária ainda que não se costume ver desse modo) está subordinada ao circuito da produção. Você poderia precisar essa relação? O que significa essa subordinação?

 

Em termos marxistas, para dizer simplesmente, a força de trabalho dos trabalhadores é aproveitada para produzir mercadorias no lugar do trabalho, mas a reprodução dessa força de trabalho ocorre fora do circuito de produção de mercadorias. Então, esses dois circuitos estão obviamente conectados da maneira como falamos antes, mas são circuitos separados. Quais são as características dessa separação? Dentro do local de trabalho, o capital tem o controle e a dominação total sobre as atividades dos trabalhadores. Mas esse não é o caso na reprodução da força de trabalho. O capitalismo, claro, na medida em que é uma totalidade global sistêmica, tem influência e domínio sobre o circuito de reprodução da força de trabalho, mas não um controle total. Por exemplo, ainda que a maioria dos políticos capitalistas gostaria, na realidade não podem: entrar em nossas casas e ditar como vivemos; o que tentam de várias maneiras, por exemplo, com a proibição do aborto legal, as leis que justificam a violação e outras expressões de sexismo. Essas são diversas formas em que o capitalismo tenta controlar o circuito da reprodução. Mas, simplesmente, não tem controle total. Dessa maneira, não importa quais sejam as leis sobre o aborto, não importa quão forte seja a Igreja Católica, as mulheres jovens, ainda, encontram prazer ao dizer “não, não serei uma mulher heterossexual, sou lésbica ou sou uma pessoa trans”, de modo que os seres humanos expressam constantemente seu potencial humano real de diversas formas, para além do que o capitalismo considera normativo ou correto. Essas coisas acontecem o tempo todo. De certo, não digo que ser lésbica ou ser uma pessoa trans seja em si mesmo um desafio para o capitalismo. É claro que não é, pode se tornar um desafio para o capitalismo se se transforma em um movimento, mas umas pessoa individual que se converte em trans não necessariamente é um desafio para o capitalismo. O que trato de assinalar é que essas relações sociais, esses desenvolvimentos emocionais afetivos continuam, apesar das tentativas dos capitalistas de regulá-los ou dominá-los. E a razão pela qual a dominação ou a regulação nunca é completa e sempre está em formação e resistência é devido à forma que se configura o sistema: o capitalismo não tem controle total sobre a reprodução da força de trabalho. Tem que deixar que as trabalhadoras se ocupem de sua própria reprodução social e determinem a melhor forma de se encaixar nesse sistema. Devido a essa frouxidão e a que há um certo grau de autonomia, é que podem ocorrer todo tipo de coisas subversivas nessa esfera. De novo, com isso, não estou dizendo que na esfera do trabalho não ocorrem coisas subversivas: uma greve é exatamente isso. Estou dizendo que ali a subversão enfrenta o controle direto do capitalismo, enquanto que na esfera da reprodução social as subversões e as afirmações sucedem, apesar de esse controle do capitalismo ser muito menos pleno.

 

IdZ: Essa ideia de pensar a luta de classe no terreno da reprodução social obriga, acredito, à pergunta que o sociólogo John Womack chamou “posição estratégica” para designar aquelas posições dentro do circuito produtivo nas quais os trabalhadores teriam mais poder de fogo, quer dizer, aquelas posições nas quais, do modo mais econômico em termos de sua força, causavam o maior dano ao capital. Qual é a relação entre esses dois territórios da luta de classes (o da produção e o da reprodução) para você a partir do ponto de vista das posições estratégicas? São equivalentes a partir do ponto de vista da capacidade de dano da classe trabalhadora? É o mesmo uma greve em uma fábrica, em um metrô, do que em um bairro?

 

Como marxista, acredito que o maior poder da classe trabalhadora está no local de trabalho. É aí o local onde o coletivo da classe é mais forte e é aí onde tem a capacidade de causar dano ao sistema, ou colapsá-lo.  E é assim, porque em vez de trabalho, se o trabalhador deixa de trabalhar, está parando o motor do sistema que é a extração do mais-valor. Todo o resto existe para que o sistema extraia mais-valor. Se essa extração de mais-valor é interrompida, o sistema deve se fechar. Então, sim, creio que a importância estratégica do lugar de trabalho é diferente e é muito mais poderosa que as lutas não trabalhistas. Isso, em termos do que é mais prejudicial para o sistema em seu conjunto. Contudo, não podemos ver o assunto de uma forma estática, como se houvesse estágios da luta. A razão pela qual eu acho que esta é uma questão muito importante nesse momento é porque globalmente o poder dos sindicatos e, portanto, o poder dos trabalhadores no local de trabalho, não apenas diminuiu, mas, ainda, em grandes áreas do globo, não existe. Por exemplo, em duas das maiores economias, Índia e China, o poder dos sindicatos nos locais de trabalho é mínimo. Há um vasto setor informal na Índia onde as pessoas nunca ouviram falar dos sindicatos. Dessa maneira, estamos falando de um período de 40 anos no qual o capital travou uma batalha implacável contra os sindicatos nos locais de trabalho e diminui seu poder. Diante desses tipos de circunstâncias, podemos dizer duas coisas como militantes: podemos dizer “classe, nós vamos esperar o momento mítico dourado no qual os sindicados sejam reconstruídos”; essa é uma posição de esquerda que sustenta que todo o poder deve advir dos sindicatos, motivo pelo qual todas as lutas devem ser para reconstruir o movimento sindical, e isso é tudo o que há para se colocar o foco e concentrar-se, qualquer outra luta deve estar subordinada a essa luta. A posição da ala direita seria que a classe trabalhadora está acabada e não haverá luta coletiva contra o capital, porque o movimento sindical acabou. Essas são as duas respostas possíveis à posição debilitada da classe trabalhadora no lugar de trabalho. Acredito que nós, como feministas marxistas, temos um ponto de vista diferente. Dizemos “por que as pessoas trabalham?”. As pessoas não trabalham para ter dinheiro. As pessoas trabalham para viver. Então, a forma salarial é uma mediação entre o ser humano e sua existência, sua manutenção. Os salários são um meio, por isso as pessoas se concentram no salário. Acredito que, como marxistas, às vezes nos esquecemos, e os líderes sindicais definitivamente se esquecem, que não é o salário o que preocupa o trabalhador. O que o preocupa é que o salário permite conseguir, que é a vida. Quando as condições de vida pioram para a classe trabalhadora, a luta explode. Não importa que a classe trabalhadora não possa lutar no local de trabalho, porque o poder coletivo se debilitou, a classe trabalhadora continua lutando nos bairros, nas lutas de inquilinos, ou por água potável, e essas lutas eu acho que constroem a confiança da classe comum todo, de maneira que em seguida essa confiança pode voltar a expressar-se no local de trabalho. Como marxistas, se se tem uma visão de longo prazo, observa-se que o desenvolvimento da consciência da classe trabalhadora pode acontecer de inúmeras maneiras. Pode acontecer de, simultaneamente, se desenvolverem greves no local de trabalho junto com o desenvolvimento dos movimentos sociais. Pode acontecer também que não haja movimentos sociais, mas apenas as lutas nos locais de trabalho, uma onda de greves que se traduza em um movimento social, por exemplo, em um movimento anti-imperialista. Mas o contrário também pode ocorrer: se você estender a ferramenta da greve para fora dos limites do local de trabalho, os movimentos sociais podem construir confiança na classe operária para que a greve retorne ao local de trabalho, para que haja paralisações nos locais de produção. Por exemplo, se um trabalhador cujo principal problema é a moradia (o aluguel) vai ao sindicato e lá eles lhe propõe de se organizar no local de trabalho, talvez o trabalhador pense (influenciado pelo discurso liberal): “Não vejo qual meu interesse em me unir a um sindicato”. Mas suponhamos que o proprietário o expulse da casa, o trabalhador é uma mãe ou um pai, e a sua família e a sua vida se veem ameaçadas, e então vem o sindicato e diz que o vai ajudar a se organizar contra o proprietário do seu bairro. Então o trabalhador poderia pensar: “OK, trata-se realmente da minha vida. Quero trabalhar com esse sindicato, porque essa situação é um lixo”. É aí que se gera a confiança no sindicato. E, então, quando o sindicato chega e diz “se temos salários mais altos, então será mais fácil ter acesso a melhores moradias…”, então o trabalhador poderia considerar se unir ao sindicato, porque agora o sindicato tomou parte em lutas sociais duras para ter sua confiança. E eu acho que esse tipo de “sindicalismo de luta de classes” é o caminho a seguir no período neoliberal, porque o movimento sindical foi tão atacado no local de trabalho em todo o mundo que para reconstruí-lo não podemos limitar nossa imaginação e nossos horizontes políticos ao lugar de trabalho apenas. Devemos nos dirigir ao trabalhador em seu mundo de toda a vida. E é por isso que a questão do aborto se torna importante…

 

IdZ: Eu ia perguntar justamente isso. Nessa dinâmica que vai de fora para dentro do local de trabalho, dos movimentos sociais por demandas que a princípio não se apresentam como próprias da classe operária (ainda que o sejam), até a organização e a luta na produção como centro nevrálgico do capitalismo, você considera que as mulheres tenha um papel especial a cumprir, um papel de protagonismo? Penso no fato de que as mulheres são a metade da classe operária, são 70% ou 80% nos trabalhos de reprodução social, você acha que isso abre a possibilidade de pensar as mulheres como vanguarda de uma reconstrução da classe operária? Ou você acha essa pode ser uma hipótese essencialista?

 

Não acho que seja essencialista de modo algum. Acho que é importante, porque tem a ver com o que discutimos anteriormente. Antes de tudo, está a questão de que uma maioria das trabalhadoras são mulheres e estão em todos os setores. Isso já é um tema que temos que ter em conta. Mas acho que tem aqui um problema estrutural mais profundo que faz com que a lutas tenham tanta marca de gênero, estejam tão generalizadas nos últimos anos: o problema estrutural é que o neoliberalismo nesses 40 anos levou adiante um ataque cruel contra os padrões de vida dos trabalhadores: saúde, aposentadorias, escolas, privatização dos serviços públicos. A privatização de todos os recursos que nós seres humanos necessitamos para nos reproduzir, se tornou a vanguarda dos ataques neoliberais, isso significa que durante 40 anos nossa capacidade de reprodução tem sido atacada pelo neoliberalismo e, devido ao sexismo, as mulheres têm arcado com a pior parte desses ataques. Quando privatizam sua água, as pessoas mais afetadas são as mulheres, quando fecham escolhas, as mulheres são as mais afetadas, quando o sistema de saúde se privatiza ou se fecha diretamente, as mulheres (que são as que assumem as tarefas de cuidado nas famílias e nos bairros) são as mais afetadas. Então, faz 40 anos que o neoliberalismo vem atacando a reprodução social, o que tem tido consequências marcada fortemente pelo gênero, e eu acho que se deve falar muito mais disso nos sindicatos, entre os marxistas e as pessoas de esquerda. 2008 foi a gota que transbordou o copo do conselho neoliberal, a crise se instalou na “casa” do capitalismo. Mas se nos fixamos nos movimentos anteriores, de dez anos antes de 2008 e dez anos depois de 2008, verão quão intensamente marcados pelo gênero são. Frequentemente, ou são dirigidos por mulheres, ou a grande maioria dos participantes desses movimentos sociais são mulheres, e os problemas que colocam são todos temas que têm graves consequências paras as mulheres. Mas não estamos falando de questões necessariamente feministas. É por isso que acredito que o feminismo dos 99% tem um sentido perfeito, porque não se pode falar de melhoras a situação das mulheres a menos que se ataque o próprio sistema que cria essas condições de humilhação para as mulheres. E esse sistema é o capitalismo. Então, não se pode fortalecer o feminismo no mundo de hoje se não é um feminismo que seja também anticapitalista, porque todos esses temas dos quais estamos falando não são questões feministas, mas são questões fortemente relacionadas com o gênero, o que as converte em questões feministas. Acho que devemos descartar a ideia de que o feminismo trata apenas das mulheres. O feminismo trata de gênero e o gênero está no coração de como o capitalismo se reproduz a si mesmo. Dessa maneira, a menos que os homens, as mulheres e as pessoas de todas as sexualidades, orientações e habilidades se unam nessa batalha, o feminismo não se fortalece. Se você demanda um feminismo que é só para mulheres cis, realmente fortalece a família capitalista e as ideias heteronormativas de parentesco, que por sua vez serão ideias que se volta contra você. Portanto, como pessoa cis convém que você lute pelos direitos das pessoas trans, mas não por uma “boa moral”, mas porque seu interesse está ligado a isso, porque lutar por isso enfraquece o sistema como um todo, e portanto suas condições melhoram quando o sistema se enfraquece. Dessa maneira, essa é a razão pela qual eu acredito que a pergunta sobre o que é “um tema feminista” deve ser uma pergunta constante, porque eu acho que todos os temas anticapitalistas são, na realidade, questões feministas.

 

IdZ: Por último, gostaria de terminar a entrevista com a sua opinião sobre um processo que eu acredito estar muito relacionado com o que estamos falando: as greves docentes nos EUA, que, desde fevereiro, se expandem por distintos estados, formando o que chamaram de “Primavera docente”. Três perguntas: por que agora? Por que no setor da educação pública? Por que as mulheres à frente?

 

Bom, vou começas pelo final. 77% de todos os docentes nos EUA são mulheres. Isso é um fato, Em alguns estados, a porcentagem é mais de 80%. Então, a maioria dos grevistas ter sido de mulheres responde a isso. Por que agora? Porque nos últimos 40 anos, o neoliberalismo tem atacado a educação e tem tentado por diversas maneiras privatizar a educação, enfraquecer as professoras nos locais de trabalho, debilitar os grandes sindicatos de docentes e, basicamente, atacar o próprio trabalho de ensino. Quando as pessoas se tornam professoras, é porque realmente gostam de ensinar às crianças, e eu acho que devemos levar isso a sério. Não é apenas uma espécie de esforço emocional que as professoras fazem, é realmente uma alegria e um orgulho que as pessoas sentem em seu trabalho de ensinar, de dar forma a uma mente jovem. E cada política levada adiante para as escolas públicas (e que é bipartidária, de George Bush a Barack Obama) prejudicou a capacidade da docente de fazer justamente isto: desfrutar de formar e ensinar em suas próprias aulas. Por exemplo, os testes padronizados como modo de medir a performance docente: todas essas políticas são ferramentas que tentam controlar o processo de ensino no nível da sala de aula. E em nível macro, há fortes cortes de verbas para a educação pública, que obriga as escolas a fecharem e obriga as professoras a abandonarem seus trabalhos, porque se torna inviável para uma pessoa ensinar, manter uma família e ter uma vida. Definitivamente, durante os últimos 40 anos, tem havido um forte ataque à profissão docente que estava destinado a chegar a um ponto crítico em algum momento. Acredito que a eleição de Donald Trump sacudiu todos esses temas juntos de um modo que não havia sido feito antes. Ou seja, todos esses pequenos ingredientes já existiam, Donald Trump não os inventou. Mas acredito que intensificou os processos politicamente e as reivindicações docentes começaram a desempenhar um papel importante. E o gênero tem uma importância vital nisso e não é apenas porque a grande maioria das professoras são mulheres, mas por que a educação, infelizmente, é considerada trabalho de mulheres. Eu passei um tempo em West Virginia quando explodiu a greve. Estive em Kentucky também. E a classe dominante entendeu muito mais rápido que nós mesmas a importância do gênero nas greves. Eles usaram todos os tipos de epítetos sexistas para desqualificar as professoras. Em West Virginia, as professoras eram chamadas de “Dumb Bunnies” (“coelhos bobos”, em referência a uma série de livros infantis), para dizer que eram coelhinhos bobos que saltavam sem saber o que estavam fazendo. Como resposta, as professoras se vestiram de coelhinhas rosas e fizeram uma manifesto na capital: “OK, somos coelhinhos bobos”. Assim, por um lado, existe isso. Mas, além disso, tem outro tema: o catalizador da greve de West Virginia foi o ataque à aposentadoria dos docentes. Uma das conquistas que as professoras mantinham no marco de todas essas políticas contra a educação pública era a aposentadoria e o serviço de saúde. Como são empregos estatais, ainda conservam esses direitos. Mas essa última rodada de ataques também foi contra a aposentadoria. Então, primeiro, o salário não é suficientemente bom; segundo, as condições de trabalho são humilhantes, mas inclusive se você aguentava tudo isso, uma vez aposentada você tinha ao menos uma aposentadoria que lhe permitia passar a última etapa da sua vida de modo tranquilo. Isso foi tirado das professoras em West Virginia. E, como se sabe, quando se trata da terceira idade, o gênero desempenha um papel particular, porque são as mulheres as que se encarregam do cuidado com as pessoas mais velhas. Por outro lado, afeta as mulheres de maneiras particulares. Mas também o tema da saúde adotou um caráter de gênero em West Virginia. Disseram às professoras que elas teriam que cumprir certos padrões para ter acesso a atendimento médico. E para isso teriam que levar um dispositivo no pulso, que controlaria todos seus ritmos e suas capacidades biológicas. E sobre a base desse controle, se determinaria a quantidade do montante a pagar pelo plano de saúde. Então, uma mulher de 40 anos seria monitorada de acordo com a mesma escala que uma mulher de 70 anos com cirurgia no joelho e que um homem de 25 anos. Quem é mais vital entre o homem de 25, a mulher de 47 ou a mulher de 70 anos? Quem for o mais vital pagará menos. É desse modo que tratam de vincular a atenção médica e as aposentadorias aos ritmos biológicos. Obviamente, isso se converte em um tema fortemente de gênero. Esses foram alguns dos problemas que desencadearam a greve em West Virginia. Mas acredito que a verdadeira pergunta que devemos nos fazer é por que a greve se espalhou. Por que se, como disseram os políticos, se tratava de um problema local, então deveria ter ficado em West Virginia. Mas se espalhou, porque é um problema sistemático. Essa tem sido a condição docente nos EUA nos últimos 40 anos. O que West Virginia demonstrou foi que podemos ganhar. E isso aconteceu contra qualquer prognóstico. A direção do sindicato estava contra as professoras, os políticos republicanos estavam contra as professoras, os democratas estavam pedindo para as professoras encerrarem o conflito por menos. E, contudo, as professoras organizadas na base nos locais de trabalho se mantiveram firmes contra todas essas forças e ganharam. E esse doce sabor da vitória foi o que convenceu a todas essas outras professoras do que se pode conquistar. Essa ideia de que “se pode conquistar” se perdeu no movimento operário e no horizonte de imaginação e de consciência da classe operária dos EUA durante muito tempo. Dessa maneira, agora, se você olha para o que está acontecendo nos EUA, West Virginia não apenas fez com que as professoras se levantasse, como colocou em greve as trabalhadoras das companhias aéreas, ativou as greves de UPS (serviço de correios). De repente, tem um clima no ar de que “pode acontecer”, de que “podemos ganhar”. Essa consciência está, repentinamente, de volta no ar e acredito que é muito muito importante reconhecer o papel de uma luta no local de trabalho em um pequeno estado, o poder e o potencial que você tem uma vez que ganha.

 

[1] Ver “Nancy Fraser: el feminismo del 99% e a era Trump”, La Izquierda Diario, 29/3/2017.

[2] Durante a entrevista, Titi Bhattacharya emprega o gênero feminino para se referir a uma trabalhadora mulher, a um trabalhador homem ou de qualquer gênero. De modo que em português, assim como em castelhano, língua da qual esta entrevista foi traduzida, optamos por empregar “trabalhadoras” para nos referirmos a trabalhadoras mulheres ou de qualquer gênero.

[3] Nos Estados Unidos, há a expressão “people of color”, que não tem sentido pejorativo e é aplicada a pessoas de origem africana, asiática, indígena e de outros grupos politicamente definidos como minorias étnicas. Há também “colored people”, que poderia ser traduzido como “pessoas de cor”, era utilizado apenas em referência a afrodescendentes e, historicamente, adquiriu um sentido depreciativo. Dessa maneira, para a expressão “de color” utilizada em espanhol como tradução do termo inglês, optamos por empregar “minorias étnicas”. (N. T.)

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