A questão dos atentados e do terrorismo individual para os marxistas ontem e hoje

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Por Simone Ishibashi

O já enormemente convulsivo cenário político nacional acaba de sofrer mais um abalo. O atentado sofrido pelo candidato de ultradireita que se encontra em segundo lugar nas pesquisas eleitorais, Jair Bolsonaro, golpeado com uma faca enquanto fazia um comício em Minas Gerais, transformou-se em mais uma demonstração da imensa polarização que percorre o país, e cujo ataque à caravana de Lula antes de sua prisão já era uma expressão.  A facada no candidato ultradireitista ocorre poucos dias após Bolsonaro usar uma muleta para simular uma metralhadora, e dizer que atiraria em todos os “petralhas” em outro vídeo de comício. Para além dos rumores que já começaram a se disseminar nas redes sociais contestando a veracidade do ataque, fato é que esse evento terá grandes repercussões no pleito presidencial marcado pelo golpismo, e pela ampla maioria das intenções de voto no candidato proscrito Lula, cuja candidatura foi novamente negada pelo autoritarismo judiciário do TSE.

No imediato, os efeitos do atentado parecem favorecer Jair Bolsonaro. O reacionário, misógino e homofóbico Bolsonaro já havia declarado que não pretendia mais participar dos debates eleitorais. Agora, internado, tem a justificativa perfeita para assim o fazer, sem que lhe colem a pecha de que se acovarda frente ao debate político. Como assinala André Singer, “embora seja difícil prever o que vem pela frente é plausível que a breve janela de racionalidade aberta pelo aumento da rejeição a Bolsonaro se feche com a natural simpatia que toda vítima produz. O imediato recuo de Geraldo Alckmin que buscava desconstruir no horário eleitoral a imagem do capitão reformado, seria um sinal antecipado. (….) Por outro lado, a centralidade adquirida por Bolsonaro disputa com a de Lula, o qual conseguiu manter-se à tona apesar de preso há cinco meses. Mas talvez sendo o antipetismo o principal mote do deputado de ultradireita, os holofotes acesos sobre ele acabem por iluminar igualmente seu objeto de ódio”. Dessa maneira, os efeitos imediatos do atentado se traduzem em favorecimento a Bolsonaro, ainda que não se possa saber o quanto isso se traduzirá em votos, e não reverte o fortalecimento do PT, e mais especificamente de Lula, que segue mantendo o maior índice de intenção de voto mesmo proscrito.

Por sua vez, a tônica do discurso que Bolsonaro adotará também é algo que trará efeitos. A primeira reação de seu candidato a vice, o general Mourão, aberto defensor da ditadura militar, bem como Bolsonaro, responsabilizava a esquerda em geral, e o PT em particular, pelo atentado. Foi rapidamente disciplinado, e passou a adotar uma retórica de conciliação. Bem como o próprio Bolsonaro, que ainda convalescente afirmou “nunca ter feito mal a ninguém”, algo que destila cinismo, pois busca explorar sua condição de vítima para mascarar todas as posições reacionárias, inclusive em defesa da tortura que defendeu ao longo de anos. Atendem dessa maneira aos apelos da Globo, e demais meios porta-vozes dos monopólios capitalistas mais concentrados do país, que rapidamente clamaram pela despolarização.

Mas para além das repercussões eleitorais, há ainda um debate extremamente caro e que marcou a fundação do marxismo, que assume frente a crise nacional à qual se soma o atentado ao direitista Bolsonaro uma faceta relevante e atual. Trata-se do posicionamento dos marxistas frente aos atentados individuais, uma questão que remete à própria formação do marxismo como corrente revolucionária. Um breve resgate de alguns elementos históricos desse debate é útil para refletirmos como a esquerda deve se localizar hoje sobre a situação aberta com o atentado a uma figura tão reacionária e estúpida como Bolsonaro.

Na segunda metade do século XIX, parte das correntes políticas que se inseriam no interior dos movimentos revolucionários na Rússia adotaram a estratégia dos atentados como forma de luta política. Alguns de seus praticantes se tornaram célebres, como Vera Zazulitch. Em 1878, ao lado de Maria Kolenkina, ela realizou um atentado contra o coronel Teodor Trepov, governador de Petrogrado naquele momento, que foi gravemente ferido. Vera Zazulitch foi presa, mas a raiva popular contra o regime e Trepov era tamanha que seu julgamento foi marcado por uma grande manifestação, e o júri popular a absolveu. Temendo que as repercussões do caso fossem ainda maiores, o regime czarista foi obrigado a colocá-la em liberdade. Na Suíça, onde se exilou, passou a se corresponder com os marxistas e traduzir suas obras, fundando o grupo Emancipação do Trabalho. Posteriormente se juntariam a ela Plekhanov, Martov, e o próprio Lênin, fundando o jornal Iskra, elaborado por esse núcleo no exterior. Conforme se aproximou do marxismo, Vera Zazulitch abandonou a estratégia dos atentados terroristas, para então adotar a defesa da luta de massas dos trabalhadores. O contexto no qual Zazulitch realizou o atentado fez com que o povo a apoiasse, diferentemente do agora ocorrido com Bolsonaro, que na conjuntura imediata abre espaço para um fortalecimento de sua figura. Mas nem por isso o atentado perpetrado por ela seria menos inócuo para a emancipação dos trabalhadores.

Mas outras correntes seguiram adotando a estratégia do terrorismo individual como forma fundamental de combate. O populismo russo, também conhecidos como narodniks, foi uma dessas correntes de grande importância. Formada por profissionais liberais, estudantes e intelectuais, era diretamente influenciada por filósofos franceses como Sismondi e Saint Simon, além de nacionalistas russos. O movimento populista defendia a expansão da comuna agrária, em base a uma alegada tradição nacional específica da Rússia, em detrimento da estratégia do Partido Social Democrata Russo de Lênin, de organizar a classe trabalhadora urbana como sujeito revolucionário. Transformando-se cada vez mais em uma corrente heterogênea, que correspondia à sua própria composição de classe, adotam crescentemente a estratégia dos atentados. Em 1881, o czar Alexandre II é abatido por estilhaços de granadas lançadas contra o Palácio de Inverno.

Outras correntes, como os Socialistas Revolucionários (SR), que congregavam os camponeses russos, tanto latifundiários como os camponeses pobres, a partir de 1901 também adotaram os atentados individuais como uma das formas de ação. Em 1904, Boris Savinkov, um dos mais conhecidos terroristas dos SR, assassinou Viacheslav Plehve, ministro do czarismo, e em seguida um grão-duque que era tio do czar. O que por sua vez suscitava reações brutais por parte do regime, que encarcerava e assassinava os militantes não apenas populistas, como de todas as organizações revolucionárias russas, ao mesmo tempo em que não alterava em absolutamente nada a constituição social da dominação czarista. A cada chefe de governo, de polícia, ou emissário assassinado outro era posto em seu lugar, sem que os trabalhadores e o povo russo pudessem se emancipar do julgo ao qual estavam submetidos.

Portanto, desde que nasceu, o marxismo se opõe aos atentados terroristas individuais. Mas isso não encontra sua justificativa em seus métodos violentos. Não se trata de um rechaço moral, mas científico desse recurso como parte da luta política. Em 1911, o organizador do exército vermelho e dirigente bolchevique, Leon Trotski formularia a questão da seguinte forma: “Para que um atentado terrorista mesmo um que obtenha êxito crie confusão na classe dominante, depende da situação política concreta. Seja como for, a confusão terá vida curta; o Estado capitalista não se baseia em ministros de estado e não é eliminado com o desaparecimento deles. As classes a que servem sempre encontrarão pessoas para substituí-los; o mecanismo permanece intacto e em funcionamento. Todavia, a desordem que produz nas filas da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? (….) Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão[1]”.  Ou, em outras palavras, podemos dizer que o terrorismo individual é a negação de Marx quando afirmava que a emancipação dos trabalhadores deveria ser a obra dos próprios trabalhadores.

Mas, tão importante quanto esse combate, foi àquele dado contra as posições pacifistas como resposta aos atentados terroristas. E não apenas ao terrorismo, como também contra a ilusão propagada pelos outrora expoentes do próprio marxismo alemão, como Karl Kautsky, de que o desenvolvimento pacífico e gradual das democracias europeias culminaria numa sociedade socialista conquistada não pelo combate, mas meramente pelas melhorias econômicas para os trabalhadores. Tal tese, elaborada em pleno interlúdio entre a I e a II Guerra Mundial, seria alvo de uma imensa polêmica.

Trotski, debatendo contra Kautsky, relembrará como a própria burguesia se alça através de revoluções, que pressupõem a guerra civil. E, desmascarando a noção de que as democracias capitalistas seriam embasadas em imperativos categóricos kantianos, sendo o reino da paz social, relembra o exemplo da guerra civil norte-americana, país “democrático por excelência”. “Ainda que se tratasse da abolição, não da propriedade privada, mas do tráfico de negros, as instituições democráticas não foram por isso menos incapazes de resolver o conflito por vias pacíficas. Os Estados do Sul derrotados nas eleições presidenciais de 1860 haviam decidido recobrar a qualquer preço a influência que até então haviam exercido para a manutenção da escravidão dos negros. Ao mesmo tempo que pronunciavam, como era lei, discursos grandiloquentes sobre a liberdade e a independência fomentavam a rebelião dos proprietários de escravos. Nisso estava a origem de todas as consequências ulteriores da guerra civil.”

Mas a questão não se encerra apenas no surgimento da democracia capitalista. A questão mais importante remete à retomada das definições de Engels e Marx, sobre como o terror, não individual, mas das massas, tendo à frente os trabalhadores, era algo não apenas legítimo como indispensável para a emancipação dos trabalhadores. Nas palavras de Engels, essa se define como “o ato no qual parte da população impõe sua vontade à outra por meio dos fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários por excelência; e o partido vitorioso se não quer ter lutado em vão, tem que manter esse domínio por meio do terror que suas armas inspiram nos reacionários”. Essa definição, que remete à insurreição através da qual a ampla maioria impõe sua vontade sobre a minoria capitalista, é uma síntese que atesta que não há uma condenação moral ao emprego da violência em si, mas ao sujeito que a emprega e com quais objetivos e consequências isso é feito.

A isso Trotski agregará que os métodos de terror, quando empregados pelos trabalhadores em meio à sua revolução, assumem legitimidade, distinguindo-se completamente do terrorismo individual. Assinala como na guerra, assim como na revolução, a intimidação da classe exploradora é efetivamente um meio legítimo para a sua desmoralização e a quebra da vontade de resistir.

Retornando à presente situação do país, que dista muito ainda de um confronto aberto entre revolução e contrarrevolução, mas que vem marcado pela elevação da polarização social da qual o atentado a Bolsonaro foi o último episódio, tais questões deixam lições. A primeira é que os atentados individuais não favorecem a luta política das forças que defendem o surgimento de uma nova sociedade livre de exploração e opressão, mas sim às expressões da reação carcomida, da qual Bolsonaro e o general Hamilton Morão são figuras emblemáticas. Por isso não são passíveis de apoio. No entanto, isso tampouco deve lançar-nos a posições pacifistas. Pelo contrário, há que preparar a classe trabalhadora e todos os setores oprimidos para que se organizem, e se libertem das ilusões de que não são os verdadeiros alvos na mira de Bolsonaro, para que em seguida possam impor uma saída de fundo à crise. Que pela sua envergadura não se dará pacificamente.

[1] TROTSKI, Leon. Porque os marxistas se opõem ao terrorismo individual. 1911. www.marxists.org

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