Entrevista com Brava Companhia: “Pensar e fazer arte na perspectiva da luta de classes é atuar consciente do seu lugar histórico e social”

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Realizamos entrevista com Ademir de Almeida, integrante da Brava Companhia, que nos contou um pouco sobre a história do grupo, a relação entre a teoria e a prática no teatro e a importância de pensar e fazer arte na perspectiva da luta de classes. 

Entrevista realizada por Débora Torres

 

IdE: É inegável que a Companhia conquistou seu espaço no cenário cultural paulistano muito por conta da linguagem, com traços marcantes do teatro épico, sobretudo Brecht. A partir de quando se deu essa escolha?

 

Ademir de Almeida: Muitos dos traços que marcam o teatro da Brava Companhia surgiram junto com o grupo, lá em 1998. Nasceram com a gente, e nos acompanham desde sempre. São elementos que estiverem presentes em nossa primeira formação como artistas, que, para sorte nossa, se deu num ambiente de liberdade, diversão e muita prática. Mais tarde, a medida que fomos amadurecendo e estudando, descobrimos, no contato com a teoria, muitas coisas novas. Mas também descobrimos, teoricamente, muitas coisas que já fazíamos na prática. Creio que nossos melhores momentos se deram quando conseguimos perceber e aplicar essa consciência teórica sobre a prática. Também é importante dizer que muita gente contribuiu com a nossa formação artística e intelectual. Brecht, Boal, Stanislavsk, Marx  e muitas outras  coisas, chegaram pra gente via Reinaldo Maia, Alexandre Mate, Iná Camargo, Sérgio de Carvalho entre outros. Grupos importantes que foram referência pra gente: Engenho Teatral, Companhia do Latão, União e Olho Vivo, Folias, Dolores, Cia São Jorge, Antropofágica, entre outros. Nunca estivemos sozinhos.

 

IdE: A rua como palco e a intensa pesquisa corporal caminham lado a lado com as pesquisas e estudos teóricos. Como se deu e como se dá esse processo? O quanto estarem sediados na periferia interfere no processo de pesquisa e montagem do grupo?

 

Ademir de Almeida: A partir do momento que adquirimos alguma maturidade como grupo, e, principalmente, quando nos demos conta de nosso lugar na sociedade, e de nossa responsabilidade como trabalhadores da cultura, o trânsito entre teoria e prática se tornou algo obrigatório em nosso trabalho. Os estudos alimentando a prática, e transformando o conteúdo estudado. A prática alimentando os estudos, e transformando o que é praticado. E sempre em sintonia e diálogo com a realidade do nosso tempo histórico, de modo que a matéria criativa não se aliene do mundo e, assim, seja útil – cumpra alguma função na sociedade.

Estar na periferia aumenta nossa responsabilidade como artistas e trabalhadores da cultura porque sabemos o que isso significa. Ou seja, temos consciência de que estamos no território do nosso sistema social onde se obriga muita gente a viver com poucos recursos. Nesse contexto, onde faltam coisas muito básicas, a arte não tem nenhum valor – e por isso precisa ser mais que apenas arte. É com isso em mente que tocamos os nossos projetos artísticos. O objetivo é sempre produzir algo que interfira nesse estado de coisas, de modo a perturbá-lo. Ou, ao menos, questioná-lo.

 

IdE: Nesses tempos de golpe institucional e agora com mais um ataque à Lei de Fomento, qual é a importância de pensar e fazer arte na perspectiva da luta de classes?

 

Ademir de Almeida: Há muito retrocesso social em andamento em, praticamente, todos os setores da sociedade. No campo cultural, que já anda em crise há tempos, parece que o desespero começa a tomar conta dos mais desavisados, produzindo efeitos nefastos. A Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo é uma política consolidada, que já provou seu espírito público e sua importância no cenário cultural paulistano – vide a qualidade e o volume de produção artística que ela viabilizou, desde sua implantação, e sua influência na cena teatral da cidade – atestados, inclusive, em livros e pesquisas acadêmicas. Seria uma tarefa imensa enumerar tudo que a Lei de Fomento produziu até hoje: todos os grupos, artistas e espaços culturais que surgiram a partir de sua implantação, todos os espetáculos e pesquisas de estéticas diversas que ela apoiou, todas as publicações de livros, jornais e revistas, todas as temporadas teatrais gratuitas ou a preços populares que ela possibilitou. E também é igualmente desafiador imaginar quantos cidadãos paulistanos, em todas as regiões da cidade, foram beneficiados com o acesso a toda essa produção. Certamente, é mesmo um sinal desses nossos tempos medíocres que uma política como essa esteja em questão. E o pior, sendo atacada por gente da própria categoria teatral – numa atitude que revela a pouca inteligência (ou a muita canalhice) de alguns poucos artistas – que além de fragilizar esse importante instrumento de fomento cultural, fortalece aquele que já é considerado o pior Secretário de Cultura que a cidade de São Paulo já teve em toda a sua história.

Pensar e fazer arte na perspectiva da luta de classes é atuar consciente do seu lugar histórico e social, e se posicionar de forma coerente, a partir dele, nos momentos de crise. Sem essa perspectiva, você acaba jogando contra você mesmo.

 

IdE: Como foi o processo de concepção e elaboração dos Cadernos de Erros?

 

Ademir de Almeida: A produção dos Cadernos de Erros só foi possível por conta do aporte financeiro da Lei de Fomento ao Teatro.

Eles cumprem a dupla função de registro histórico e teórico do nosso trabalho e de ferramenta de compartilhamento, para que outros trabalhadores da cultura, de outros lugares e de outras épocas no futuro, possam acessar a nossa experiência e, quem sabe, aprender algo com ela.

Eles foram produzidos pelos integrantes da Brava Companhia, a partir de textos, dramaturgias, transcrições, fotos e outros materiais imagéticos relacionados as ações do grupo (espetáculos, ensaios, treinamentos, debates, atividades formativas, cursos, etc). Muitos parceiros também contribuíram com textos e entrevistas.

São quatro volumes impressos, que distribuímos gratuitamente para grupos, artistas, espaços culturais, pesquisadores, estudantes ou qualquer pessoa interessada no nosso trabalho. Os conteúdos também podem ser baixados a partir do nosso blog: blogdabrava.blogspot.com.

 

 

 

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