Ricardo Antunes: “Marx percebe um processo de industrialização do setor de serviços”

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Número 2, agosto de 2017

1- O que países como China e Índia dizem sobre o mundo do trabalho hoje? Você considera que esses países continuarão a moldar a fisionomia do proletariado, ou sua influência já estaria diminuindo?

A primeira coisa a dizer sobre isso refere-se ao período recente, ao passado recente. Uma parte significativa das mudanças que vêm ocorrendo no mundo do trabalho, da classe operária e mesmo no capitalismo, em escala global, são decorrência de uma nova divisão internacional do trabalho, onde a China teve um papel decisivo. Bastaria dizer, por exemplo, que nos anos de 1970, o Brasil e a América Latina constituíam-se como o país e o continente onde a super exploração do trabalho encontrava suas condições mais intensificadas. A América Latina, e em particular o Brasil, se constituía como um celeiro fornecedor de força de trabalho sobrante, de tal modo que as empresas, transnacionais, intensificando o processo de internacionalização do capitalismo, expandiram-se intensamente em países como Brasil, México, Argentina e tantos outros. Mas a partir especialmente do fim dos anos 1990, início do século XXI, houve um redesenho muito profundo da divisão internacional do trabalho, que foi decorrente, principalmente, da reinserção da China no sistema global do capital. Esse processo foi consequência da derrota da tendência Maoista, que durante o período de Mao Tse-tung tinha o controle e a direção do Partido Comunista Chinês e com a morte de Mao Tse-Tung foi substituída gradativamente, depois de um pequeno interregno, por Deng Xiaoping e a concepção que na época chamava-se de “socialismo de mercado”, de um mercado socialista que criou as condições para as quais a China saísse daquela concepção, que teve vigência durante a direção de Mao Tse-Tung, de uma economia autárquica relativamente fechada, para uma nova fase marcada pela inserção da China no sistema global do capital.

Isso significou que, nas décadas de 1990 e 2000, a China oferecesse como seu principal componente primeiro, o mercado interno, verdadeiramente espetacular, uma vez que é o país com maior população mundial. E segundo, pelo fato da China ter uma população economicamente ativa muito ampla, uma força sobrante disponível para ser super explorada pelo mundo industrial – força sobrante esta que migrava do campo para as cidades – significou que o patamar de reprodução da força de trabalho estabelecido pela China, fizesse com que até a exploração e super exploração latino-americana deixassem de ser o padrão mais violento de super exploração do trabalho, porque este “atributo” foi transferido para a China.

De tal modo que a China ou, indiretamente, os países asiáticos, dentro deles o segundo país com dimensões continentais como o país chinês, a Índia, e que conta com uma população mundial que além de exceder a casa de um bilhão é economicamente ativa, seguindo os passos da população da China, esse quadro redesenhou um capitalismo global, onde a intensificação, as formas exponencialmente ampliadas de exploração do trabalho tornaram-se uma tônica, um modus operandi do capitalismo global. De tal modo que na Itália, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na Alemanha o padrão chinês de exploração do trabalho passou a ser uma medida que não pode ser desconsiderada por nenhum desses capitais. Isso redesenhou o cenário do mundo, porque na China criou-se uma classe trabalhadora muito importante. Na última década a socióloga do trabalho norte-americana Beverly Silver nos mostrou como foram altas as taxas de greve na China durante essas duas décadas. Nós tivemos no ano passado a maior greve do mundo, entre 160 e 180 milhões de trabalhadores, desencadeada na Índia. Temos lutas sociais em vários países. A Coréia do Sul, por exemplo, é o laboratório das lutas sociais. E temos confrontações em vários outros países que combinam ditaduras com intensa exploração da força de trabalho.

Já mencionei em vários artigos que escrevi que, quando estava na Índia há 2 anos atrás, o primeiro ministro indiano disse que, assim como a China celebrizou-se pelo Made in China (“feito na China”), a Índia deveria se celebrizar com o slogan Make in India (“produza na Índia”). Embora o primeiro ministro indiano não tenha dito com essas palavras, qual era o discreto charme do capitalismo indiano? Seria possível praticar lá uma super exploração do trabalho num nível muito mais intenso do que aquele praticado na China?

E qual é o papel dessas lutas operárias da China na retomada de uma alternativa socialista?

Essa pergunta é muito difícil e a única coisa que eu consigo visualizar é que o socialismo, em escala global, terá um papel no proletariado chinês, na classe trabalhadora chinesa, muito decisivo se, naturalmente, essas lutas, essas greves, algumas das quais consideradas “greves selvagens” conforme o capitalismo categoriza essas lutas na medida em que elas não tem, naturalmente, nem um sindicato autônomo que as organize, porque o sindicalismo chinês é atrelado ao Estado, e porque também o núcleo dominante no Partido Comunista Chinês, nós sabemos que majoritariamente o Partido Comunista Chinês é um instrumento decisivo dentro do aparato de Estado. Perdendo, tendo perdido até onde eu consegui acompanhar, de modo muito intenso pra dizer o mínimo, o papel que o Partido Comunista Chinês teve até a década de 20, 30 e 40 da China, quando ele era profundamente arraigado nas classes populares chinesas, especialmente no campesinato.

Então, o desafio que a China significa para o futuro do socialismo é um enigma decisivo.

2- Podemos falar de um novo proletariado que está surgindo no coração da Europa? E dentro desse amplo setor de serviços você identificaria alguns setores que, pela sua influência econômica ou estratégica, tem algum peso mais relevante nas lutas dos trabalhadores?

Na nova divisão do trabalho e do capital, o sul do mundo tornou-se responsável pela chamada “indústria suja” e o norte do mundo ficou com os chamados “pólos limpos” da industrialização, ideologicamente avançados, etc. Entre um pólo e outro expandiu-se um setor de serviços que, se nos anos 1940, 1950 e 1960 tiveram um forte peso dos chamados “serviços públicos”, no neoliberalismo a resignação produtiva, o capital financeiro da economia global e mundial (aquilo que chamam de “mundialização do capital”, isto é, uma acumulação capitalista comandada pelo seu setor mais forte e mais agressivo que é o capital financeiro) fez com que o setor de serviços fosse em grande parte privatizado, mercadorizado ou, se quisermos a partir de uma adaptação do termo “commodities” em inglês, “commoditizado”.

O que significa isso? Amplos setores de serviços passaram a participar diretamente não mais de uma economia produtora de valores de usos sociais e públicos, mas de um amplo setor de serviços que passou a se inserir no lucro e em muitos casos até mesmo na criação da mais-valia. Um setor muito importante dos serviços púbicos foi privatizado e tornou-se gerador de mais-valia. É aquela hipótese espetacularmente indicada por Marx quando tomou a indústria de transportes no vol. 2 d’O Capital, em que o setor de transportes tinha “um processo de produzir, então, no processo de circulação”, isto é, o setor da economia voltado prioritariamente para a circulação dos capitais pode ser gerador de mais-valia.

O segundo ponto importante é que Marx, no mesmo vol.2 d’O Capital, mostra que a sua concepção de indústria é muito grande. Cabe a indústria de transportes, indústria de armazenamento ou estocagem, indústria de comunicações, indústria de gás, de transporte marítimo ou ferroviário. Ou seja, Marx percebe que há um processo de transformação capitalista no setor de serviços que também se industrializa. Da mesma forma que anteriormente havia se industrializado a propriedade rural e como originalmente tinha se industrializado a própria indústria produtiva, a indústria de serviços, etc. Isso gerou, especialmente no setor de serviços, o que eu venho chamando de um “novo proletariado” que tem frequentemente participação ativa na geração do lucro, participação ativa direta ou indiretamente falando na geração de mais-valia. É possível ver que crescem exponencialmente os call centers, telemarketing, indústria de informação e telecomunicação. Ou também a indústria hoteleira, comércios, indústrias de fast food. Em países como o Brasil, e muitos outros do sul do mundo, cresceram a massa de trabalhadores motoboys que trabalham com a circulação de mercadorias… Ou seja, expandiu-se um conjunto amplo e variado de trabalhadores e trabalhadoras, homens e mulheres, em atividades que no passado eram atividades de serviços prevalentemente improdutivas para o capital e que, a partir dos anos 1970 ou 1980 do século passado, com esse processo que eu descrevi anteriormente, passaram a ter e a serem responsáveis por atividades produtivas para o capital. Nós sabemos que Marx chama de atividade produtiva aquela que se gera mais-valia, e improdutiva aquela que não gera mais-valia. O resultado disso é um crescimento espetacular de um novo proletariado de serviços, sepultando a Tese do Fim do Proletariado.

E o proletariado das últimas três, quatro décadas se expandiu monumentalmente também no setor de serviços. Isso faz com que ele sofra uma exploração intensificada, – como é o caso dos trabalhadores e trabalhadoras de call centers, especialmente o contingente feminino que, talvez com exceção da Índia, é amplamente majoritário – em que há controle dos tempos de movimentos, há tempo médio de operação, controle para ir ao banheiro e almoçar, ou seja, há um ritmo intenso de exploração do trabalho de tal modo que esse proletariado de serviços vive em condições semelhantes àquelas da indústria, com a diferença que eles atuam no setor de serviços. Então, eu não tenho nenhuma dúvida em dizer que há um novo proletariado de serviços que atua. Poderíamos então dizer sobre a expansão monumental da “indústria de serviços”, que é um novo ramo industrial em sentido amplo porque trata-se de uma indústria que frequentemente produz serviços privados, sejam eles serviços privados prevalentemente materiais ou não materiais, como é o caso da indústria de transporte.

E, um útimo ponto, é uma praga, uma pragmática do capitalismo global, a terceirização. E a principal consequência da terceirização, no que diz respeito ao aumento do nível de exploração do trabalho, é a maior divisão que a terceirização traz dentro do movimento sindical e operário, na medida em que ela cria fraturas muito grandes entre terceirizados e terceirizadas com não-terceirizados e não-terceirizadas, dificultando, ainda que não impedindo, ainda mais os laços de coesão e solidariedade na classe operária.

Mas no que diz respeito ao capitalismo, a terceirização é um polo de propulsão da mais-valia em escala global, porque, na medida em que você terceiriza antigos serviços que no passado eram improdutivos, você os torna produtivos.

Quais são os setores, digamos assim, mais importantes? Isso é muito difícil dizer porque eles são relativamente novos. Por certo, nesses setores de serviços, assim como na classe operária em geral, é importante reconhecer aqueles que tem mais papel na criação do valor ou seja, aqueles que tem um papel mais potente na geração da mais-valia ou na valorização da mais-valia e do capital. É também muito importante reconhecer aqueles e aquelas trabalhadores e trabalhadoras que têm tido um papel importante nas lutas sociais e políticas, que não são um decalque da economia, reconhecendo a importância que eles tem na economia política do capital que por certo os torna potencialmente, no plano objetivo portanto, mais importantes. Mas além da importância objetiva, é importante analisar também qual a relevância subjetiva que esses polos da classe trabalhadora vêm tendo.

Dentro disso há um outro polo muito importante: nos últimos trinta anos explodiu um novo proletariado “imigrante global”. O problema agora não são somente os fluxos imigratórios sul-norte, mas os fluxos imigratórios do sul para o norte, pois como nos séculos passados, XIX e XX, eram fluxos especialmente imigratórios do norte pro sul e ao longo da segunda metade do século XX se intensificaram os fluxos do sul pro norte, hoje você tem fluxos migratórios também, como disse há pouco, do norte pro sul, do sul pro sul, do leste pro oeste. Esses novos contingentes de trabalhadores compreendem o que disse o excelente sociólogo do trabalho italiano, Pietro Basso, que há uma nova classe, um novo setor muito importante da classe trabalhadora global que é composta pelos imigrantes. Há uma dialética que marca a vida do trabalhador imigrante, ele é imprescindível, ele ajuda na medida em que ele procura trabalho na Alemanha, na Inglaterra, na França, na Itália, na Espanha, etc., ele acaba sendo parte do rebaixamento da força geral de trabalho desses países. Por outro lado ele é supérfluo, quando tem crise, há desemprego, aumenta os movimentos xenofóbicos da extrema direita antiimigrante, violências com o imigrante, como nós estamos vendo em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Esse é o cenário das lutas sociais que estamos vendo e eu não tenho nenhuma dúvida que o século XXI nos tem mostrado uma explosão desses contingentes que nós temos que nos aprofundar, compreender, para assim melhor entender qual papel eles podem ter nos processos de rebeliões e revoluções que nós ainda vamos presenciar em grande dimensão ao longo do século XXI.

Quais os desafios teóricos que a teoria do valor e o marxismo se colocam frente a essa nova feição do proletariado? Ademais, se pudesse comentar um pouco também se você sente que as ideias de Marx, sobre emancipação dos trabalhadores, do comunismo, nesse novo período de crise do capitalismo ganham um espaço pra renovar a sua atualidade.

Vamos tentar dar duas rotas sobre esses três pontos. Primeiro, não só a teoria do valor não foi feita, como pretendeu ter sido por Habermas, Claus Off, André Gorz, Toni Negri e até Robert Kurz, que é de longe o melhor de todos, porque ele é diferente dos demais por motivos que eu já expus nos meus livros, Adeus ao Trabalho?, Os Sentidos do Trabalho e tantos outros. Esses autores erraram, eurocêntricos, erraram profundamente. A teoria do valor não só não está eliminada, como foi ampliada. Há uma monumental ampliação da teoria do valor e esse é um dos segredos do capitalismo, o capitalismo consegue sobreviver apesar de ter uma profunda crise estrutural que nós estamos vivendo. A teoria do valor se esparrama pra todos os espaços, pontos e coagulos onde o valor pode ser potencializado. Então atividades que no passado eram improdutivas tornaram-se produtivas, atividades de serviços que eram estatais e públicas, tornaram-se também lucrativas e frequentemente produtivas. Marx já tinha percebido que haviam trabalhos imateriais que tinham a potencialidade de serem produtivos, como ele fala no capítulo 14 d’O Capital sobre sua teoria da mais-valia, sobre o trabalho do professor, do músico, do escritor, do pintor e tantos outros, trabalhos estes que de algum modo eram, segundo diz Marx, heranças da fase de subsunção formal do trabalho ao capital e que, por conta disso, ainda que prevalentemente no setor de serviços gerassem mais-valia, explodiu e intensificou-se, no século XXI, de tal modo que você tem hoje uma empresa como a Uber que tem mais de 1 milhão e 500 mil trabalhadoras e trabalhadores no mundo e que são “proprietários dos seus meios de produção”, o automóvel, arcando com custos de manutenção, seguro, saúde, seguro do automóvel, custos de todo o tipo e que geram uma mais-valia que faz com que uma empresa, que no passado não poderia nem existir, hoje seja uma das grandes empresas mundias com um nível de exploração intensificada da mais-valia em escala global.

Os autores do “fim do trabalho” foram incapazes de entender que a tecnologia potencializa o valor até o limite, mas não é a tecnologia quem cria o valor. Ela potencializa e isso faz uma enorme diferença. Então isso faz com que uma das lutas da classe trabalhadora em sentido amplo, seja a de combater os níveis de exploração intensificada do trabalho em todos esses ramos e setores. Isso faz com que a teoria da emancipação social e humana de Marx encontre condições de vigência que ela não encontrava no passado. É verdade que nós estamos agora, no segundo semestre de 2017, presenciando uma contrarrevolução burguesa na sua fase muito intensificada. Trump nos EUA, Macrón ou Le Pen na França, governos da Europa, como Áustria, Hungria e tantos outros lugares ultra-conservadores, em que se vê o crescimento da direita e da extrema direita reinvidicando governarem o mundo com o receituário da direita dura. Ou como na Itália, em que vemos muito fortemente uma centroesquerda chamada Partido Democrático, verdadeiramente grotesca. Daí o crescimento do nazismo, da xenofobia, em que nós vimos também recentemente a vitória do Brixit na Inglaterra. Entretanto, paralelamente a isso, só para dar exemplos, há fenômenos como Bernie Sanders nos EUA, Corbyn na Inglaterra, isto é, uma experiência centroesquerda, de uma esquerda mais aproximada como em Portugal, exemplos que sinalizam também que há descontentamento.

E as rebeliões da juventude, rebeliões populares, as tantas explosões, as greves e confrontações que mostram que há um terreno fértil para recuperar o pensamento emancipatório de Marx sem mais a necessidade de carregar o peso da tragédia stalinista na União Soviética, da tragédia stalinista no Leste Europeu e de tantas outras tragédias que foram atribuídas ao marxismo, mas que não poderiam ser atribuídas a Marx. Só por uma ideologia profundamente deformada e manipuladora é que a tragédia da União Soviética pode ser uma conta debitada a Marx. Ao contrário, para qualquer pessoa que conheça com razoável densidade a obra de Marx, sabe que quando Marx, tratando da revolução nos países que ele considerava atrasados, subordinados, dizia que se a revolução não fosse histórico-mundial, e sim uma revolução parcial, a tendência seria que a imundicie anterior voltasse mesmo depois de um processo de revolução política. Porque você tem um processo de transformação política, mas você não tem a generalização do processo de emancipação social.

Ao lembrarmos da tragédia destrutiva do capitalismo em relação à natureza, em relação à força humana de trabalho global que é destroçada, em relação às guerras, percebe-se que não é possível aceitar que um modo de produção tão destrutivo não nos obrigue a pensar num novo modo de vida. Esse é o imperativo do século XXI: nós temos que pensar num novo modo de vida e, para isso, a companhia de Marx é imprescindível.

 

 

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