A estrutura sindical e a esquerda

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FELIPE GUARNIERI – Operador de Trem do Metrô de SP

Número 2, agosto de 2017

Introdução:

Os dias 15/03 e principalmente a greve geral de 28/04 ficarão marcados na história como o retorno do protagonismo da classe trabalhadora na cena política do país. Apesar de suas principais direções sindicais terem tentado conter de todas as formas, não conseguiram evitar o grande abalo causado pela força da classe operária.

O objetivo desse artigo é demonstrar que as centrais sindicais, apesar da atual divisão política em dois blocos com interesses de pactos distintos, conservam integralmente a estrutura vigente do sindicalismo que tem origem no governo Vargas. Esse quadro leva a uma contradição na relação de classes atuais, onde, apesar da burocracia sindical ser um dos principais alicerces da hegemonia burguesa no Estado, também passa por uma enorme crise de representatividade.

E é justamente nesse aspecto que a reforma trabalhista, após o golpe institucional, também adquire, no seu conteúdo, o caráter de uma reforma sindical. Como uma tentativa da patronal de reduzir, pela direita, o poder destas direções nas centrais sindicais, se retira o imposto sindical e se cria um novo tipo de estrutura sindical que legalize uma taxa de lucro superior através da super exploração do trabalho e da retirada de direitos trabalhistas. O problema a ser abordado diante dessa análise seria então a adaptação da esquerda ao abandonar a crítica da estrutura sindical vigente.

  1. Uma estrutura sindical atual criada pelo Varguismo inspirada no fascismo italiano

O inicio do século XX no Brasil foi marcado por um grande ascenso do movimento operário, com uma forte influência naquele momento do federalista anarquista italiano Enrico Malatesta. O enorme contingente de imigrantes chegava gradualmente para trabalhar nas plantações de café e nas pioneiras indústrias, após o fim do modelo econômico baseado na mão de obra escrava. Foram inúmeras greves por melhores condições de trabalho durante esse período, resultando num grande fortalecimento dos sindicatos e, em 1906, no primeiro Congresso Operário Brasileiro que, se por um lado demonstrou os limites do anarquismo ao renunciar qualquer tipo de luta política a partir de um sindicalismo econômico de resistência, por outro foi muito importante, pois era o primeiro encontro nacional de trabalhadores, posicionando-se contra qualquer tipo de relação de tutela com o estado, a remuneração de cargos dirigentes e chamando a greve geral de 01/05/1917, com duração de 30 dias e que asseguraram uma série de conquistas a distintos setores da classe operária brasileira. Outras greves gerais aconteceram nesse período e, após a revolução de 1917 na Rússia, a influência comunista ganhou mais peso no movimento operário, dando origem  ao PCB que, lamentavelmente, em poucos anos se degenerou através da ingerência direta do stalinismo a partir da Terceira Internacional burocratizada, especialmente ao final da década de 1920.

A repressão do Estado já não era mais suficiente para deter as greves que se espalhavam. Por isso, nas décadas de 30 e 40, durante o regime ditatorial do Estado Novo no Governo Vargas, foi criado o decreto lei nº5.452 que deu origem a Consolidação das Leis Trabalhistas. Inspirada no regime fascista de Mussolini, que combinava coerção e cooptação no movimento sindical dentro de um modelo corporativista, Vargas editou sua versão brasileira da Carta del Lavoro (Carta do Trabalho de 1927 na Itália) e estabeleceu uma sofisticada relação de controle do Estado nos sindicatos. Paralelamente, incorporava parte das conquistas que o movimento operário havia obtido até então (referentes a salário, jornada e demais condições de trabalho), dividia a classe trabalhadora em categorias profissionais, estabelecia o imposto sindical e criava a data-base, relegando a possibilidade de apenas 1 mês por ano (e em períodos distintos) uma determinada categoria reivindicar junto à patronal.

A regulamentação dos sindicatos oficiais levou a uma adesão de novos dirigentes a essa estrutura sindical por meio de uma ideologia populista que na sua essência “tem como mecanismo principal a desorganização da luta sindical, em prol do controle superior do Estado[1]. Não por outro motivo, aprofundou-se a inserção de um partido patronal como o PTB dentro do movimento sindical (partido criado por Vargas em 1945 justamente com essa finalidade), como também pressionou à capitulação do próprio PCB que, mesmo na ilegalidade durante a maior parte do governo varguista, legitimou a aprovação da CLT.

Cria-se, portanto, nesse período, não somente uma nova estrutura sindical, como também as bases materiais para a formação de uma burocracia mais ligada à época imperialista do capitalismo. A burocracia sindical aparece como mediador das relações entre o patrão e o trabalhador, dentro de uma estrutura baseada na dominação de uma classe sobre a outra. Ou como o revolucionário russo Leon Trotski define: “O capitalismo monopolista cada vez está menos disposto a admitir sobre novas bases a independência dos sindicatos. Exige que a burocracia reformista e a aristocracia operária, que dividem as migalhas que caem de sua mesa, se transformem em sua polícia política aos olhos da classe operária”[2].

  1. As bases do questionamento e da adaptação do sindicalismo “autêntico” à estrutura sindical durante a ditadura militar

A burocracia sindical formada pelo bloco PCB e PTB freou os processos de greve dos anos 50-60 e foi responsável pela derrota do movimento operário, culminando na Ditadura Militar. Esse processo levou a incrementar um novo aspecto na estrutura sindical varguista. Se não bastasse a relação de tutela anterior, o novo ministério do trabalho do governo militar instituía uma intervenção direta sobre as direções, concedendo ao Ministro do Trabalho aprovar as direções sindicais “eleitas” pelos trabalhadores.

Como resposta a isso, as greves de Osasco e Contagem marcaram a primeira expressão da influência das oposições sindicais combativas e acabaram por influenciar profundamente a recomposição das comissões de fábrica da década de 70. Os principais dirigentes dessas greves assumiram posteriormente a estratégia da guerrilha, que resulta no abandono do trabalho orgânico no seio da classe revolucionária e na exposição de um amplo setor da vanguarda à repressão do regime militar. Após essa quebra de continuidade, e já ao final da década de 70, o sindicalismo “autêntico” liderado por Lula, nas greves metalúrgicas contra o arrocho salarial no ABC, surgia nesse contexto como dissidência da estrutura sindical permitida pela ditadura.

O sindicalismo “autêntico”, cavalgando num processo de greves que surgiu por baixo e por fora das direções oficiais, consegue se delimitar da maioria dos interventores da ditadura, capitalizando esse processo de questionamento da estrutura sindical vigente no período militar, apesar de não apenas não fomentar a auto-organização das comissões de fábrica que proliferavam naquele momento, como diretamente combatê-las e isolando, por exemplo, as greves do ABC da oposição metalúrgica de SP que lutava contra o peleguismo de Joaquinzão.

Essa é a enorme contradição de todo o processo de lutas operárias e populares que percorreu a década de 80. De um lado, as direções que na historiografia ganharam o título de “autênticas”, com Lula à cabeça, conseguiram se firmar contra o velho peleguismo da ditadura, aparecendo como combativas nas lutas salariais e reivindicativas; por outro lado, foram inimigas de elevar a luta operária a um questionamento frontal à ditadura, que pudesse conduzir a sua derrubada revolucionária. Sua política foi apoiar as alas da “burguesia democrática”, como Ulysses, Tancredo e FHC, subordinando a classe operária ao pacto da transição lenta, gradual e segura para a democracia burguesa.

  1. A origem dos blocos da atual burocracia sindical

A manutenção da estrutura sindical varguista após a Ditadura Militar combinou com o avanço do neoliberalismo tardio dos anos 90 no Brasil e com os governos Collor, Itamar e FHC. A regulamentação das terceirizações, a privatização de setores estratégicos da economia, confluindo num processo chamado de reestruturação produtiva, terá um impacto significativo na burocracia sindical. A CUT era dirigida, desde o desvio do ascenso dos anos 80, com uma estratégia de conciliação de classes que resultou na transição negociada da ditadura, separando a ação sindical da política, realizando greves como parte da tática de pressão parlamentar de oposição, mas sufocando e traindo greves que pudessem se alçar ao patamar político como a de 1995 na Petrobrás. Paralelamente, os empresários viam com bons olhos o surgimento da Força Sindical.

Fundada em 1991, a origem dessa central remete ao final da década de 80 quando Luis Antonio de Medeiros assume o lugar de Joaquinzão na direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, fortalecendo sua corrente conhecida como “sindicalismo de resultado”. Esse setor foi financiado com recurso direto do Ministério do Trabalho em meio aos escândalos de corrupção do governo Collor, como parte de uma política de setores da burguesia para incentivar um sindicalismo baseado nas negociações e com o objetivo a todo custo de evitar o surgimento de greves, assim como retirar espaço do PT e da CUT dentro do movimento sindical.

Assim, CUT e Força Sindical capitanearam os dois grandes blocos da burocracia sindical no decorrer dos anos. O primeiro tendo como principal aliança hoje em dia a CTB, dirigida pelo PC do B. Vale lembrar que durante toda a década de 80, o PC do B atuava como satélite do MDB e se mantinha alinhada com os pelegos da CGT até ser expulsa pela corrente de Medeiros. A partir desse momento o PC do B troca de satélite para o PT e se mantém na CUT até o governo Lula, quando cada setor da burocracia sindical ganhou novos incentivos para ter seu aparato próprio através da MP que redistribuiu os recursos do imposto sindical, levando em 2007 o surgimento da CTB. E o segundo grande bloco foi atraindo outras centrais menores que se formavam também nesse processo atreladas diretamente às frações burguesas do Estado, como a UGT, Nova Central e CGTB.

Durante os anos de governo Lula esses dois grandes blocos se unificaram num interregno, após a crise do mensalão e o momento de crescimento econômico. A conciliação de classe petista se baseava, no plano político, na aliança com a casta política do PMDB; no plano econômico, em atender os interesses da burguesia; e no plano sindical, em unificar as alas da burocracia sindical, como parte de um pacto social que concedia os reajustes salariais dentro dos índices da inflação, aumentava o poder de consumo da classe trabalhadora através do endividamento (alta oferta de crédito) e criava empregos precários, aumentado a super exploração  e consequentemente, favorecendo imensamente os interesses dos principais empresários e banqueiros, que “nunca antes na história desse país lucraram tanto”, como o próprio Lula gostava de afirmar.

Com a entrada do Brasil no centro da crise capitalista internacional esse modelo se enfraqueceu já nos primeiros anos de mandato do governo Dilma. O bloco liderado pela Força Sindical rompeu com o petismo, apoiou Aécio e o PSDB nas eleições de 2014 e foi base dentro do movimento sindical, junto com a FIESP e o até então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do processo de impeachment, um golpe institucional organizado pelos setores mais conservadores do regime (fortalecidos pelo próprio PT nos seus anos de governo) para acelerar as reformas e ataques mais profundos à classe trabalhadora. Paralelamente, CUT e CTB não ofereceram nenhuma resistência concreta contra o golpe, desde lá optaram por uma estratégia por dentro do próprio regime para retomar o pacto social do período anterior, tendo como tática principal a campanha “”Diretas Já”, cujo principal objetivo é emplacar o “Volta Lula 2018”.

  1. A falta que faz uma alternativa independente à esquerda nessa conjuntura

Voltando ao processo que vem dos anos 1980, a contradição maior, no âmbito da esquerda que se reivindica classista e revolucionária, é que o aumento do prestígio dos sindicalistas “autênticos”, que não deixavam de ser apenas uma “ala esquerda” da burocracia sindical, fez com que as correntes que se reivindicavam revolucionárias, inclusive as trotskistas, abandonassem o questionamento à estrutura sindical varguista. Esse questionamento, que era um “ponto pacífico” entre todas as correntes de oposição sindical ao peleguismo nos anos 1970, foi paulatinamente desaparecendo, ao ponto de que, já na virada dos 1980 para os 1990, a adaptação à estrutura sindical era quase a “lei geral” do sindicalismo brasileiro, inclusive nos sindicatos dirigidos pela esquerda.

O principal problema que reside na atual conjuntura é que a estrutura sindical criada por Vargas, cujo objetivo é dividir os trabalhadores em categorias evitando que sejam uma classe, está sendo questionada pela direita através da reforma trabalhista (fim do imposto sindical) e da lei da terceirização. Além disso, a burocracia sindical mantém essa separação do movimento operário dos setores terceirizados e a esquerda não aborda o problema da unicidade sindical em combate à ingerência do Estado na forma como se organiza o movimento sindical. Pelo contrário, muitos setores da própria esquerda reivindicam até hoje o “legado” deixado por Vargas, naturalizando assim uma estratégia de mediação da esquerda diante dos dois blocos da burocracia sindical.

Como se fosse a habilidade de negociações dos dirigentes dessas correntes o fator determinante, por exemplo, que levasse as principais centrais a convocar ou não uma nova greve geral. Por outro lado, a crítica à estrutura sindical varguista – presente em obras acadêmicas – que tende a ir para o campo do paralelismo sindical, não responde ao problema estratégico de combater a burocracia sindical e retomar os sindicatos para as mãos dos trabalhadores.

Os sindicatos, como diz Trotski, devem ser verdadeiras escolas de comunismo, o que na prática significa hoje lutar pela unidade das fileiras operárias e, a partir dos sindicatos, tomar decisões em base a defesa incondicional da democracia operária e que se confrontem cotidianamente com a exploração e opressão do Estado Capitalista. Um treinamento sistemático não apenas para dirigir um sindicato, mas sim um estado. “Os sindicalistas que não se colocam nenhum objetivo de classe, ou seja, que não apontam para a derrubada do sistema capitalista são, apesar de sua composição proletária, os melhores defensores da ordem burguesa”[3]. É necessário, portanto, abordar, a partir dessa perspectiva estratégica, a relação entre o Estado e a burocracia sindical, na dimensão atual da crise política e da aprovação das reformas.

[1] Boito Jr., Armando “O Sindicalismo de Estado no Brasil- Uma análise crítica da estrutura sindical

[2] Trotski, Leon “Os sindicatos na época de decadência imperialista”.

[3] TROTSKI, Leon “Teses sobre a ação comunista no movimento sindical”.

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