A campanha das “Diretas Já” como mecanismo da transição conservadora

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Imagem: Junior Santiago

 

THIAGO RODRIGUES

Número 1, maio de 2017

 

A marca da transição democrática brasileira na década de 1980 foi a identificação das correntes de esquerda com a ideologia democrático-burguesa, aceita como limite máximo da luta contra a ditadura, abandonando a tentativa de derrubá-la por uma via revolucionaria. Seja por parte dos PCs defendendo uma saída negociada com a ditadura, seja por parte do PT que adotava um discurso rupturista e pressionava por uma transição menos controlada pelos militares, ambos setores adotaram a estratégia de colaboração de classes, utilizada pelas classes dominantes para frear o potencial revolucionário da luta dos trabalhadores contra a ditadura.

Um texto de Carlos Nelson Coutinho – importante intelectual e estudioso de Gramsci, militante do partidão, mas que adere desde o inicio ao PT – de 1979 vale a pena ser revisto principalmente porque expressa um sentido geral que passa a fazer parte da esquerda brasileira ao longo dos anos seguintes: “Democracia como valor universal”. Sua conclusão política é que “o que une todos os oposicionistas” é “a luta pela conquista de um regime de liberdades político-formais que ponha definitivamente termo ao regime de exceção”, ou seja, a identificação da substituição do regime militar por um regime democrático-burguês, com um objetivo imediato que melhoraria as condições para a luta socialista. Coutinho busca demonstrar que a “via prussiana”[1] pela qual evolui a política brasileira nunca foi capaz de chegar a formas democráticas ainda que limitadas. Avanços neste sentido seriam a superação desta característica histórica brasileira. Porém, o que queremos demonstrar, e vamos elencar alguns argumentos nesta breve nota, é que, fruto do retrocesso ideológico que marcou a etapa da ofensiva neoliberal e da restauração capitalista no leste, a “via prussiana” como solução conservadora e reacionária para a crise econômica e social da década de 1980 se reafirmava justamente através da transição democrática, utilizando-a como mecanismo de conservação.

 As diretas já como mecanismo do desvio democrático

Depois da derrota da primeira onda do ascenso operário em 1980, os dois anos seguintes seriam de retrocesso e de ofensiva burguesa no marco da recessão. A recessão, o aumento do desemprego, a demissão dos ativistas operários e a ação dos grupos paramilitares de extrema direita, visando especialmente os jornais de esquerda, adquiriram influência considerável.

No Brasil, entre 1981 e 1983, a economia retrocedeu em 10% e a inflação passou de 77% em 1979 para 178% em 1983. Se nas últimas décadas o Brasil havia crescido a ritmos que hoje chamamos “chineses” e se agravou o problema da absorção dos migrantes nos grandes centros urbanos, com a recessão esse problema explode e a pobreza urbana, somada ao desemprego, se aprofunda como um problema democrático estrutural candente, intimamente ligado à luta contra o latifúndio no campo.

Com a recessão e a ameaça sempre presente de uma retomada do ascenso operário, aumentaram as divergências no interior da ditadura e da classe dominante. A avaliação do governo pelos empresários, positiva até janeiro de 1983, desabou em julho[2].

A votação expressiva do PMDB nas eleições de 1982 (para governadores, deputados estaduais, vereadores e prefeito – excluídas as capitais e cidades consideradas de segurança nacional) foi uma imagem distorcida do rechaço popular à ditadura agravado pela recessão. Entre os principais estados do país, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro passaram a ser governados pela oposição. O PT, na sua estreia eleitoral, também conseguiu uma votação expressiva em São Paulo. Nacionalmente o PDS (ex-ARENA) obteve uma vitória numérica (que lhe garantia maioria no Colégio Eleitoral), mas o triunfo político foi da oposição, mais especificamente do PMDB, que venceu nos estados mais industrializados.

A partir de 1982, se dão grandes lutas de operários agrícolas (chamados “boias-frias”) em Pernambuco, Alagoas, São Paulo e outros estados e organização de movimentos de desempregados. Nesse contexto, em 1983, os pobres urbanos e os desempregados foram os protagonistas de uma explosão social, que poderia ser utilizada para forjar a aliança com o movimento operário organizado:

A irrupção imprevista de manifestações selvagens e violentas de desempregados, ‘biscateiros’, ‘marreteiros’ etc. em São Paulo e no Rio de Janeiro, nos meses de março e abril de 1983, sinalizou que a política recessiva começava a colocar em perigo a preservação pacífica da ordem social, pondo em xeque o próprio processo de liberalização”. Ela se deu “para além da capacidade de canalização e controle da oposição legal, incluindo aí não só os partidos políticos, mas também sindicatos e outras organizações de esquerda”.[3]

A ira popular se voltou momentaneamente contra inclusive os governos recém-eleitos do PMDB, que responsabilizam organizações de esquerda e a extrema-direita pelos “tumultos”, num discurso alinhado ao de Figueiredo. A solidariedade entre governo e oposição burguesa (liderada pelo PMDB) se dá pelo temor compartilhado de que as condições da crise pudessem levar a novas e mais graves revoltas e inevitáveis enfrentamentos nas ruas com o exército, de consequências imprevisíveis no marco do processo de “excisão social” dos trabalhadores e as massas com a burguesia e o regime. Se a revolta dos pobres urbanos confluísse com a do movimento operário organizado estaria novamente na ordem do dia, como esteve entre 1978/80, a possibilidade de derrubar a ditadura por via revolucionaria, colocando por terra a política de transição conservadora.

Enquanto os desempregados se rebelavam em São Paulo, com distúrbios e saques que começaram em Santo Amaro e se alastraram até o centro durante três dias, o sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo estava em plena negociação salarial. Seu presidente Jair Meneghelli, do PT, chamou os trabalhadores a tomar “consciência da situação” num apelo contra a greve, sob a alegação que ela só seria forte nas grandes montadoras.[4] Um dia antes, no entanto, o presidente da Federação dos Metalúrgicos de São Paulo (que agrupava grande parte das fábricas menores que supostamente não estariam dispostas à luta) já havia revelado os verdadeiros motivos por trás da posição de não ir à greve: “uma greve, como pretendíamos, fugiria ao controle dos sindicatos nessa época de tumultos e nossa intenção não é aumentar a confusão”.[5]

Crescia a mobilização no campo e a revolta nas cidades. As massivas greves do funcionalismo federal e estadual de São Paulo terminavam de compor um quadro perigoso para a ditadura. A greve geral de 21 de julho paralisou cerca de 3,5 milhões em todo o país. A fraca adesão à greve geral (mesmo em São Paulo, onde ela foi mais forte) não decorre, como muitos petistas defenderam na época, da falta de um nível de organização maior a nível nacional; nem diz respeito à falta de disposição dos trabalhadores para a luta. Depois de frear a luta no momento mais propício, não deveria ser uma surpresa que a convocação posterior tenha tido menos adesão do que a situação permitia. A greve dos metalúrgicos, que não ocorreu em abril, se daria em novembro e obrigaria a patronal a um acordo mais favorável do que o previsto pelo último decreto salarial da ditadura.

Para responder a essa situação, dentro do PMDB começam a se desenhar duas políticas de transição conservadora que teriam como símbolo Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. A aposta de Tancredo é nas eleições indiretas do Colégio Eleitoral em 1985. Ulysses busca uma relação de forças favorável a uma negociação com o regime em torno das eleições diretas nesse mesmo Colégio Eleitoral (tese que o próprio Figueiredo admitia discutir). Apesar de políticas distintas, determinadas pelas suas possibilidades de chegar à presidência, ambos compartilhavam objetivos estratégicos e atuavam de forma acordada e dividindo tarefas no interior do PMDB. Como analisou o próprio Dante de Oliveira:

“A presidência era um sonho de ambos. Mas a ambição dos dois não era inconciliável, pois as diretas que favoreciam Ulysses poderiam vir do governo de transição comandado por Tancredo.”[6]

Apesar de toda a mística da campanha das Diretas, que vai canalizar a revolta contra a ditadura no primeiro semestre de 1984, Diretas e Indiretas são duas variantes políticas do mesmo plano burguês de transição conservadora. Os governadores do PMDB, Franco Montoro em SP, Tancredo Neves em Minas, e Brizola do PDT no Rio, junto com o PMDB, representado pelo seu então presidente Ulysses Guimarães, encabeçavam a mobilização e os comícios das Diretas, negociavam com a ditadura uma saída controlada, via eleição indireta de um civil no colégio eleitoral. No entanto, a importância de compreender isso é que entre as massas não era essa a compreensão, sendo que as Diretas Já tinha a força motora de canalizar os anseios democráticos da sociedade – já que se tratava do fim do regime ditatorial. Um fim negociado, já que a campanha das Diretas tentava evitar um confronto direto com a ditadura, e deixava o desgastado Figueiredo e o colégio eleitoral da ditadura como árbitros do processo. Por isso, partindo dessas diferenças, explicitar o aspecto “conservador” da transição no interior dessas duas políticas é fundamental, já que foi em base a elas que a transição no Brasil se deu por cima, por fora do movimento operário, tutelada pelos militares.

Nesse sentido, a campanha das Diretas, ao fortalecer os governadores e a oposição burguesa em detrimento das demandas e dos métodos operários, abriu caminho para a aceitação do pacto conservador no Colégio Eleitoral. Não à toa setores importantes do PDS e empresários também aderiram – 80% dos prefeitos deste partido em São Paulo[7], por exemplo, sendo que o Carrefour chegou a divulgar anúncios pagos defendendo as Diretas[8].

Quando os governadores entraram com força na campanha das Diretas já, no final de 1983 e início de 1984, convocando grandes demonstrações de massa que eles primeiro buscaram evitar a todo custo, e conseguiram canalizar e controlar a insatisfação que um ano antes havia se transformado em explosão popular. A chance do proletariado se colocar novamente no centro da cena política, rompendo os limites do pacto que colocava todas as decisões para dentro do colégio eleitoral da ditadura, era a greve geral convocada para o dia da votação, que foi cancelada pela direção petista, que mostrou, assim, seu compromisso com a ordem burguesa. A hegemonia social do proletariado e as demandas econômicas e políticas das massas populares foram dissolvidas nos grandes comícios encabeçados pelos governadores com todas as esperanças depositadas no Colégio Eleitoral. A avaliação de um democrata burguês conservador, tucano de carteirinha, confirma essa análise:

Em 1984, com a campanha das diretas já, o processo de transição chegou ao paradoxo dos paradoxos. Em um ambiente econômico ainda sombrio, com o país mal saído de uma severa recessão, multidões iam às ruas para aplaudir palanques sumamente heterogêneos e defender uma posição que já então podia ser vista como moderada: a eleição direta (…) os comícios não entoavam reivindicações contundentes (!?) – como o encurtamento do mandato de Figueiredo ou alguma plataforma mais ambiciosa de reforma social. (…).[9]

A esquerda que se reivindica revolucionária aceita os limites da democracia liberal tutelada

Não existe paradoxo maior do que as correntes que se reivindicavam trotskistas (Democracia Socialista, O Trabalho e Convergência Socialista, para citar as mais importantes) terem se adaptado tanto à política conciliadora da direção lulista, ao ponto de transformarem no eixo da sua própria agitação uma “demanda” vista até por um intelectual tucano como moderada. Confundiram a vitória da estratégia de transição controlada traçada por Geisel e Golbery, e apoiada pelos EUA, com um avanço do movimento operário e de massas e abriram mão de levantar uma estratégia independente coerente – que passava pela luta pela derrubada revolucionaria da ditadura, pela construção de organismos de auto-organização operária e popular nesse processo, que poderiam ser os embriões do poder dos trabalhadores em oposição ao Estado burguês e pela convocação de uma assembleia constituinte sem tutela militar. A Democracia Socialista (DS – na época ligada ao Secretariado Unificado e à LCR francesa, que nos últimos anos se dissolveu no Novo Partido Anticapitalista naquele país), que se reivindicava trotskista e que hoje faz parte do governo Dilma, em documento da época analisou corretamente que “a candidatura de Tancredo no colégio eleitoral não pode ser caracterizada como uma candidatura de oposição à ditadura. (…) É uma tentativa, frente à desagregação da ditadura, de compor a unidade burguesa sob uma nova hegemonia”. Apesar disso, não viu o mais importante estrategicamente, que através de formas diferentes, a campanha das Diretas operava no mesmo sentido:

“o PT atuou como ‘ala esquerda’ do movimento pelas Diretas, expressando a exigência das massas de forma mais radical e pressionando pela massificação, mas limitando suas iniciativas ao que era unitário com a oposição liberal burguesa. (…) Por tudo isso, pelo papel positivo que cumpriu durante a campanha, o PT viu neste período crescer a sua influência.”[10]

Na verdade, o PT cresceu em número de militantes, em expressão política e em votação, ou seja, conheceu um sustentado crescimento em todo o período futuro[11], passando a ser visto como o principal partido de oposição, mas anulava a profunda tendência ao classismo que esse crescimento expressava ao se adaptar à estratégia de uma das alas da oposição burguesa e do projeto de transição conservadora. Ao invés de lutar pela derrubada revolucionaria da ditadura, o PT se preparava para ser principalmente uma oposição parlamentar no novo regime democrático que estava surgindo em negociação com os militares.

Localizada mais à esquerda no mesmo espectro da “esquerda petista”, do qual a DS fazia parte e constantemente era criticada como sectária por essa corrente, a Convergência Socialista (hoje PSTU e Mais) vai mais longe ao que diz respeito à análise do processo. Citamos um pequeno trecho da carta do dirigente Argentino Nahuel Moreno à corrente brasileira em 1984:

 “Assim como no ano passado, insistimos em que era necessário deixar em segundo plano a consigna frontal de ‘Abaixo o governo!’, em troca da de ‘Diretas Já’, que por esta última consigna ia passar a luta e as mobilizações das massas contra o governo. As massas vão ir abandonando, ou já estão em vias de abandonar, a luta pelas diretas. O mesmo vai começar a acontecer com a luta para derrubar Figueiredo…” (…).[12]

Sintetizando, a modo de conclusão, podemos afirmar que nosso balanço é o oposto do que foi feito pelas correntes de esquerda sobre esse processo. A campanha das diretas foi uma ferramenta para preparar o caminho em direção a um pacto com os militares, uma forma de a oposição burguesa sequestrar as enormes aspirações democráticas do movimento de massas e evitar que o movimento operário ocupasse o centro da cena política, no que foi vitoriosa graças a estratégia de conciliação da direção petista. A aceitação do parlamento controlado pela ditadura como árbitro do processo de transição e a escolha de um presidente negociado para organizar a Constituinte e as eleições de 1989 foi, isso sim, um grande triunfo dos militares e da burguesia contra os trabalhadores e o povo e a derrota da própria campanha das Diretas.

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Notas

[1]                      Processo ainda mais agravado nas suas consequências reacionárias, pelo fato de que diferente do caso da Alemanha, no Brasil a debilidade histórica da burguesia a tornou incapaz de pela via conservadora promover mudanças reais – ainda que parciais – na estrutura social, como havia feito Bismark no século XIX.

[2]                      Revista Exame in Basílio Sallum.

[3]                      Basílio Sallum, pág. 87.

[4]                      Folha de São Paulo, 10/04/1983.

[5]                      Folha de São Paulo, 09/04/1983.

[6]                      “Diretas já”, Dante de Oliveira e Domingos Leonelli, pág. 299.

[7]                      Folha de São Paulo, 12/01/1984.

[8]                      “Diretas já”, Dante de Oliveira e Domingos Leonelli, pág. 348.

[9]                      Bolívar Lamounier, pág. 179.

[10]                    “A conjuntura e as nossas tarefas”, sem data.

[11]            Em 1985, na eleição da capital paulista, ficou em terceiro lugar e obteve mais de 19% dos votos; em Fortaleza elegeu a prefeita Maria Luíza Fontenelle, do PRO – Partido Revolucionário Operário (racha do PRC de José Genoíno e Tarso Genro); também ganhou na cidade capixaba de Vila Velha.

[12]                    Carta de Nahuel Moreno à direção do Alicerce.

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