O ascenso negro dos anos 70-80 e a tradição petista

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DANIEL MATOS E MARCELLO PABLITO

Número 1, maio 2017

Na segunda metade da década de 70, ligado ao descontentamento generalizado contra a ditadura e o ascenso proletário e camponês em curso, emergiu um poderoso movimento negro no país. Ao mesmo tempo em que se colocava no marco da luta contra a ditadura e, nesse marco, tinha uma relação profunda com o agudo processo de luta de classes nacional, era influenciado pelas lutas de libertação das colônias negras na África, como Angola, Guiné Bissau, Moçambique, Gana, entre outros, e pela luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, que tinha como algumas de suas referências Martin Luther King, Malcolm X, e os Panteras Negras. Assim, a questão negra se rearticulou em várias dimensões, não somente político-sociais, mas também culturais.

Nosso objetivo neste artigo é tratar, ainda que rapidamente, dessa efervescência política, cultural e social da população negra no marco das possibilidades de questionamento profundo não somente à ditadura mas aos próprios limites da ordem capitalista. Afinal, a força desse movimento negro residiu justamente aí: na relação com os movimentos da própria classe trabalhadora, em grande medida negra, e na articulação, ao longo do processo da luta de classes, entre raça e classe. Também buscamos demonstrar como tanto as organizações de esquerda, quanto as direções das organizações de frente única da classe trabalhadora, como os sindicatos, não levantaram em nenhum momento demandas que articulassem os interesses da população negra e servissem como alavanca para o combate ao racismo. O que seria da luta contra o racismo se os comitês de fábrica do ABC, a vanguarda da luta contra a ditadura  no final dos anos 70, defendesse os interesses da população negra como moradia digna e o fim da repressão policial?

Nos marcos da cultura, nos bairros da periferia do Rio de Janeiro, o funk transforma-se em um instrumento de afirmação da identidade negra, que, entre outros aspectos, se expressava em uma forma própria de vestir, de pentear o cabelo (“Black Power”). Revalorizam-se as religiões de origem africana, os filhos de negros começam a ser batizados com nomes africanos e as letras de samba passam a expressar suas raízes negras de maneira mais explícita. É também, como parte desse processo, que surgem grupos que buscam reviver a cultura afrodescendente através dos movimentos culturais pan-africanistas.

Diferentemente do que ocorreu nos anos 30, esse novo movimento negro possuía uma relação mais próxima com as lutas operárias e populares, com as ideias e as organizações de esquerda. É nesse contexto que o questionamento à ideologia da “democracia racial” ganha profundidade e amplitude. Como parte da valorização da resistência negra, no passado e no presente, o mito da Princesa Isabel como “libertadora” e do 13 de Maio como dia da “libertação” é pisoteado, e em seu lugar emerge a história do Quilombo de Palmares e o dia da morte de Zumbi em 20 de Novembro como referência de luta.

A emergência desse movimento negro está profundamente ligada à resposta à política repressiva criada pela ditadura militar para conter o enorme agravamento do problema da moradia e da pobreza nos principais centros urbanos do país. O êxodo rural das décadas de 50, 60 e 70, agravado pelo boom de crescimento econômico durante o “milagre brasileiro”, provocou um enorme adensamento das favelas, ao mesmo tempo em que constituiu boa parte da força de trabalho que gerou o novo proletariado urbano que protagonizará o ascenso grevístico desenvolvido a partir de 1978.

Os grupos de extermínio paramilitares criados pela ditadura utilizando policiais tinham como função primordial, além da perseguição e do assassinato a operários combativos, a imposição do clima de terror nas favelas contra o povo pobre e negro para impedir a organização e a ação política dos setores mais oprimidos do proletariado, submetidos a condições de vida humilhantes que provocavam recorrentes explosões sociais, de diferentes maneiras.

Esses grupos de extermínio, ligados à miséria agravada nas favelas com a chegada do desemprego em massa e a hiperinflação na década de 80, constituem a origem do crime organizado tal como conhecemos hoje no país. Além de uma enorme fonte de lucros para setores da burguesia, o crime organizado se constituiu no Brasil como um instrumento auxiliar à repressão Estatal oficial, como mecanismo de desvio e contenção das explosões sociais inerentes à pobreza crônica e estrutural. A combinação entre tráfico, milícias e polícia constitui-se, desde a década de 1970, como um sistema de guerra civil de baixa intensidade destinado, entre outras coisas, a impedir que as crises permanentes provocadas pela precariedade ou a falta de moradia, pela falta de serviços públicos nas favelas e diversas expressões do racismo não se politizem e se transformem em novas formas de organização ou em violência social e política contra a ordem capitalista.

Nos anos 1970, os bailes funk que reuniam o movimento negro nas favelas tinham como um dos principais motivos de protesto em suas músicas a violência policial e o racismo. Nos primeiros anos da década de 80, os choques da crise econômica deram lugar a verdadeiras rebeliões nas periferias, com ondas de saques que desestabilizaram politicamente os principais centros urbanos, que algumas vezes se dirigiram contra os centros de poder político e econômico locais.

Na segunda metade da década de 70, a relação estrutural historicamente construída entre a questão agrária, a questão negra e a questão urbana no Brasil ganha um entrelaçamento superior, desenvolvendo o potencial de emergir em distintas formas de luta contra o regime político. Esses processos se ligavam por múltiplas vias aos peões super-explorados que construíram com seu suor e seu sangue o “milagre brasileiro”, em grande parte composto por negros, retirantes nordestinos, camponeses pobres que se proletarizaram ao longo da década 70 e que fizeram parte do enorme adensamento das favelas nesse período.

Questão negra, luta operária e combate ao capitalismo

As greves do ABC, a partir de 1978, contaram com a solidariedade das mais diversas partes do país. Frente ao arrocho salarial imposto pela ditadura e agravado pela espiral inflacionária, assim como diante das demissões impostas como retaliação às greves e à crise econômica que golpeou o país, essas greves estabeleceram a possibilidade e a necessidade de lutar concretamente pela unificação dos distintos setores em luta, avançando das reivindicações corporativamente isoladas para a formulação de pautas unificadas que respondessem às demandas de conjunto.

Para se desenvolver de forma consequente, a unificação dessas pautas deveria assimilar as consignas mínimas, democráticas e transicionais, como o fim da violência policial nas favelas; moradia, saúde e educação dignas; igualdade econômica, política e social aos negros; salário mínimo necessário para que todos tenham uma vida digna com reajuste mensal automático de acordo com o aumento do custo de vida; redução da jornada de trabalho para garantir emprego para todos sem redução dos salários; expropriação dos grandes monopólios e das empresas que fechem ou demitam em massa colocando a produção sob controle dos trabalhadores; expropriação do agronegócio, com criação de frentes coletivas de trabalho no campo combinadas com a reforma agrária.

A articulação dessas demandas, ligadas à denúncia do racismo, cumpriria um papel fundamental para afirmar a identidade negra como parte fundamental da classe trabalhadora. Essa seria a orientação capaz de unificar as fileiras da classe trabalhadora – empregada e desempregada -, assim como unificar o movimento grevístico com os movimentos negro, camponês e de juventude, conduzindo as lutas parciais para a derrubada revolucionária da ditadura.   Nesse processo, a afirmação, de múltiplas maneiras, da identidade negra da população negra e trabalhadora, seria importante como um passo para o questionamento mais profundo do domínio político da burguesia.

Essa perspectiva não poderia ter sido levada a cabo senão através de um duro combate às burocráticas assembleias-comícios que reuniam dezenas de milhares de operários no ABC apenas para servir ao comando da burocracia de esquerda “autêntica”, a mesma que combatia e domesticava o desenvolvimento das comissões de fábrica, impedindo que se constituíssem como embriões de organismos de duplo poder. As oposições sindicais dos metalúrgicos de São Paulo e as comissões de fábrica do ABC poderiam e deveriam ter servido de embriões na luta pela auto-organização de um movimento de greve que ultrapassasse os limites corporativos impostos pelos sindicalistas “autênticos” e defendesse a constituição de uma coordenação de delegados com mandatos revogáveis eleitos por locais de trabalho para unificar, centralizar e dirigir a luta, aproveitando-se da estrutura piramidal do comitê de greve do ABC para que o poder emanasse das fábricas através das assembleias de base. Dito de outra maneira, ao impedir que a classe operária avançasse em sua auto-organização, as direções da luta sindical naquele momento impediam que a força social da classe trabalhadora brasileira se desenvolvesse plenamente até o questionamento político do poder. A auto-organização, articulada às demandas mais sentidas da população e a medidas concretas contra expressões do racismo, teria permitido que as lutas adquirissem importante apoio da população mais pobre, explorada e oprimida.

Como discutimos em outros artigos desta revista, o final da década de 70 estabeleceu condições excepcionais para que as correntes de esquerda, em especial as tendências de origem trotskista, propagandeassem e agitassem, entre as grandes greves de 1978-80 no ABC, a necessidade dos operários que as protagonizavam assumirem como sua a luta por uma Assembleia Constituinte que debatesse os problemas estruturais de concentração de terras no campo, a falta de moradia nas cidades, a opressão secular ao povo negro e a opressão imperialista. Existiam condições para lutar por uma Assembleia Constituinte Revolucionária imposta pela força da mobilização independente das massas em luta, que emergisse a partir da unificação das greves em curso em torno dessa demanda, hegemonizando o conjunto dos setores mais oprimidos da sociedade que se encontravam descontentes.

Em relação à população negra, uma Constituinte revolucionária teria sido um espaço para que o conjunto da população pudesse debater e avançar em medidas de combate às mais variadas expressões do racismo no país. Qual não seria a força social de uma constituinte na qual negras e negros apontassem o caminho para o combate à violência policial, à falta de moradia, à desigualdade salarial entre negros e brancos, à concentração de terras? Estava colocada a possibilidade de discutir amplamente com os operários em luta problemas fundamentais como a luta pela punição aos assassinos e torturadores da ditadura; de confisco dos imóveis utilizados para a especulação imobiliária e planos de obras públicas sob controle dos trabalhadores para garantir uma verdadeira reforma urbana; de não pagar a dívida externa para garantir o direito à educação e à saúde de qualidade e universal, etc.

Tal política só poderia se dar a partir do combate contra os setores burgueses opositores que buscavam uma transição controlada “por cima”, que não colocasse em risco o domínio capitalista e consequentemente não questionasse todas as travas à solução das questões mínimas e democráticas mais importantes do país e que historicamente não foram encaradas pela burguesia. Articuladas com a luta por uma Assembleia Constituinte Revolucionária, essas questões poderiam e deveriam ter sido levadas ao cotidiano das greves. Essa era a forma através da qual seria possível que os setores de vanguarda da classe operária assumissem como sua a tarefa, através da ação independente das massas trabalhadoras com seus próprios métodos de luta, afirmando a identidade negra como parte de sua luta permanente para desenvolver uma aliança sólida com entre a classe trabalhadora, com sua massa de negros, aos demais setores sociais explorados e oprimidos pelo capitalismo. Essa perspectiva deveria estar em função de uma orientação estratégica que levasse a classe trabalhadora à conclusão da necessidade de derrubar a ditadura militar pela via insurrecional.

O Movimento Negro Unificado e a tradição petista

De maneira distinta a depender dos países, há uma pressão muito forte vinda, em primeiro lugar, da própria burguesia, para que as demandas do povo negro sejam levadas adiante de maneira separada das reivindicações da classe trabalhadora, até mesmo quando estas adquirem caráter mais político. A pressão por essa separação se faz sentir de diversas maneiras, seja nos sindicatos (como vimos acima) ou até mesmo nas organizações de esquerda.

No Brasil, como parte desse momento importante da luta de classes e da ânsia por politizar o debate acerca dos vários aspectos da questão negra, confluem, para um movimento comum, o Movimento Negro Unificado (MNU), diversas organizações negras há pouco criadas naquele momento.

O MNU cumpriu um papel progressista muito importante para uma rearticulação do movimento negro e que no seu programa reivindicasse vários aspectos corretos e necessários para responder às demandas do povo negro. Entretanto, apesar deste movimento ter sido fortemente influenciado por organizações operárias de esquerda, inclusive por grupos trotskistas como a Convergência Socialista (que posteriormente deu origem ao PSTU), em sua primeira “Carta de Princípios” não existe qualquer referência ao imperialismo, à luta de classes, à ditadura ou ao capitalismo, como se a opressão ao povo negro não estivesse completamente ligada à opressão imperialista e à exploração da burguesia sobre o proletariado. Tampouco existia qualquer referência ao papel dos operários em greve no ABC na luta contra o racismo. Essa separação era a expressão, em relação à questão negra, da mesma estratégia que separava as greves operárias da luta contra a ditadura.

Ao mesmo tempo, se olhamos para a fundação do PT e da CUT, verificamos que as mesmas organizações que participaram da fundação do MNU, quando atuavam nas organizações de massas do movimento operário, nunca encararam a luta contra a opressão ao povo negro como uma tarefa da ação independente das organizações operárias, fundamental para que essas conquistassem hegemonia sobre os contingentes massivos de pobres urbanos que se acumulavam nas cidades e que serviam como base social do clientelismo estatal dos partidos burgueses dominantes.

Tanto na “Carta de Princípios” do movimento pró-PT publicada no 1º de Maio de 1979, como no “Manifesto de Fundação” do partido, aprovado em 10 de Fevereiro de 1980 – onde estavam presentes essas mesmas correntes de esquerda que participavam do MNU –, não existe qualquer menção especial à luta contra a opressão histórica ao povo negro no Brasil. Da mesma forma, o primeiro CONCLAT, movimento de fundação pró-CUT, em 1981, não faz qualquer referência à questão negra. Apenas nas resoluções do CONCLAT de 1983 e nas resoluções do primeiro Congresso da CUT de 1984 existe uma referência superficial que se limitou a dizer: “Contra todo tipo de discriminação do negro, da mulher e das minorias”.

A luta contra o racismo exige uma posição de independência de classe. Essa é uma conclusão decisiva deste olhar panorâmico sobre a articulação da questão negra, a luta de classes no final dos anos 70 e a organização da esquerda. Esse norte deve servir inclusive na luta contra a própria burocracia sindical que, justamente pelo potencial revolucionário de uma luta antirracista da classe trabalhadora, se esforça por separar a luta sindical da luta pelas demandas da população negra. As organizações de frente única dos trabalhadores precisam defender com todas as forças essas demandas, como a luta pelo fim do trabalho terceirizado, com a incorporação imediata de todos os trabalhadores terceirizados e rotativos ao quadro de funcionários efetivos, sem necessidade de concurso público no funcionalismo; pela equiparação salarial entre homens e mulheres, negros e brancos; precisam ser uma voz de peso contra a violência policial, defendendo o fim da polícia e do massacre da juventude negra, assim como o não pagamento da dívida pública para que esse dinheiro seja utilizado em benefício da maioria da população.

Em um momento político no qual o sistema judiciário se fortalece no Brasil, é mais necessário que nunca desmascarar seu caráter racista, que aponta suas leis contra a classe trabalhadora, o povo negro e pobre e atua em para garantir os interesses da burguesia. Neste momento de crise do regime político brasileiro e, em especial, quando os trabalhadores voltam a entrar em cena e mostrar seu peso social e político e as demandas da população negra se fazem sentir com força, uma luta antirracista e anticapitalista é urgente.

 

 

 

 

 

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