Fronteiras e capitalismo: uma perspectiva socialista

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Autora: Megan Spencer
Tradução: Sérgio Araújo e Jéssica Antunes

A esquerda socialista precisa transformar a oposição ao ICE [Immigration and Custons Enforcement – Agência de Imigração e Alfândega estadunidense] em uma luta pela aberturas das fronteiras. Publicamos esse artigo da última edição da revista Left Voice [integrante da rede internacional Esquerda Diário] como parte do debate ao redor da posição de Bernie Sanders contrária a abertura das fronteiras.

Não existe boa “ICE”

Como reação à política de tolerância zero para a imigração do governo Trump, uma série de mobilizações de massa ocorreram em centenas de cidades dos Estados Unidos. Houveram reuniões e protestos, e até mesmo ocupações em escritórios locais da Agência de Imigração e Alfândega (ICE), exigindo o fechamento desta agência federal responsável por encarceramentos e deportações em massa de imigrantes sem documentação. A separação de familiares, particularmente, produziram uma grande indignação na esquerda, gerando um movimento reformista que chegou até os palcos da política dominante. Depois que Alexandria Ocasio-Cortez adotou o slogan “Abolish the ICE” (pela abolição da ICE), como parte de sua plataforma política, outros Democratas, de uma hora para a outra, proclamaram-se abolicionistas da ICE.

A paralisação do governo federal dos EUA [shutdown] fez parecer que os dois partidos estavam em conflito, mas na verdade o que os Democratas queriam era apenas a segurança das fronteiras no padrão século 21: drones ao invés de muros. Enquanto Alexandria Ocasio-Cortez, num primeiro momento, votou favorável a uma lei que ampliava financiamento para a ICE e somente depois votou contra uma lei parecida, a maior parte do partido Democrata parece concordar com os Republicanos de que a ICE é necessária – a despeito do fato da maioria dos americanos enxergarem a agência de forma desfavorável.

A pequena guatemalteca Jakelin Caal Maquin, de 7 anos de idade, foi apenas uma pessoa a morrer sob custódia da ICE. Mas, abolir a ICE e substituí-la por uma ”versão atualizada da INS” (Immigration and Naturalization Service – Serviço de imigração e naturalização), como Alexandria Ocasio-Cortez[1] propôs inicialmente, não irá acabar com terrorismo sistemático praticado pelo estado contra as pessoas que fogem de seus lares na américa central e migram para os Estados Unidos. É fato que a ICE rapidamente aumentou o número de deportações desde sua fundação em 2003. Entretanto, o INS já costumava atacar e separar famílias décadas antes da ICE fazer isso. Tornar as fronteiras menos terríveis soa como um objetivo hilário, mas o que os Democratas estão defendendo é apenas a substituição de um aparato violento monstruoso por um pouco menos violento.

Imperialismo, fronteiras e migração: O caso da América Central

Não é difícil enxergar a relação direta entre capitalismo e migração. A busca pelo lucro estava por trás das conquistas e do colonialismo europeu, resultando no deslocamento das populações não-europeias. O imperialismo força as populações pobres nas periferias a migrar para para as metrópoles. Hoje os refugiados transbordam para os EUA e para a Europa por conta dos danos causados pela longa história de expansão capitalista, saques e guerras.

Nesses mais de 150 anos as elites estadunidenses têm intervido rotineiramente, algumas vezes militarmente, em qualquer luta por mais independência na América Latina. O governo estadunidense, deixando para trás uma terrível trilha de sangue e morte, já instalou brutais ditaduras pró-capitalistas por todo o continente. Desde os anos 80, utiliza o Banco Mundial e o FMI para promover uma agenda neoliberal e, assim, exacerbar a pobreza e a violência enquanto enriquece corporações e bancos.

A América Central, em participar, tem sido o alvo das agressões estadunidenses. Em El Salvador, por exemplo, os Estados Unidos exerceram um importante papel na longa guerra civil nos anos 80 fornecendo apoio militar e econômico para governos assassinos, que atuaram junto com os esquadrões da morte militares e paramilitares controlados por donos de terras/latifundiários. Isso resultou no assassinato de 75 mil pessoas, incluindo comunistas e militantes de esquerda, sindicalistas, estudantes, lideranças camponesas, jornalistas, líderes religiosos, professores etc., assim como massacres de vilarejos inteiros. Hoje El Salvador está tomada pela violência das gangues, em parte exportadas dos EUA fruto das deportações. A taxa de feminicídios em El Salvador é a terceira maior do mundo.

Outro país que testemunha um êxodo de migrantes para os EUA é a Guatemala, onde a CIA encenou um golpe de estado em 1954 removendo um presidente democraticamente eleito para proteger os interesses de lucro da empresa estadunidense United Fruit Company. Os regimes que vieram ao poder após o desfecho do golpe promoveram um genocídio contra a população nativa, assassinando 200 mil pessoas durante a guerra civil que durou 36 anos.

Em 2009, os Estados Unidos apoiaram o golpe de estado em Honduras, que forçou o presidente Manuel Zelaya a se exilar. Barack Obama e Hillary Clinton estabeleceram um governo de direita golpista no país, abrindo suas portas para mais violência e miséria. Logo, não é nenhum mistério porque os hondurenhos estão saindo de seu país em grande número. O espantoso índice de desemprego, uma das mais altas taxas de homicídios do mundo, duríssima repressão governamental, corrupção desenfreada, extorsão e feminicídios tem motivado as recentes caravanas daqueles em busca de asilo nos EUA, dos quais 80% vieram de Honduras.

No México, o país que segue como aquele que mais contribui com o número de imigrantes nos EUA, é também o país que foi economicamente devastado pelo tratado de livre comércio da américa do norte (NAFTA na sigla em inglês). Os fazendeiros mexicanos não são capazes de competir com o agronegócio estadunidense subsidiado pelo governo. Empresas do norte estão transferindo suas fábricas para o México para tirar vantagem dos baixos salários pagos no país vizinho. Em outras palavras, os produtos podem cruzar livremente as fronteiras para proporcionar lucros aos capitalistas – enquanto o movimento das pessoas entre as fronteiras é restrito e criminalizado.

Porque o Capitalismo precisa de fronteiras?

A competição entre trabalhadores é um requisito básico da exploração capitalista. O lucro – ou na famosa fórmula de Marx, capital – produto – capital – é a extração da mais-valia da classe trabalhadora. Essa extração e apropriação da mais-valia é possibilitada pela propriedade privada dos meios de produção. Há numerosos mecanismos que permitem à classe proprietária maximizar seus lucros, e a competição no mercado de trabalho é um deles. Quanto maior a competição, menor os salários médios e maior o lucro. Uma das fontes de competição é a força de trabalho diferenciada: uma massa de trabalhadores que são forçados a trabalhar por menos que outros. Esta dinâmica rebaixa os salários de todos e beneficia a classe capitalista como um todo. É por esta razão que as populações de trabalhadores cujas condições de vida e direitos legais são particularmente precárias constituem uma importante fonte de valor para a classe dominante.

Patriarcado, racismo e outras formas de opressão ajudam a perpetuar esse tipo de diferenciação entre os trabalhadores. Fronteiras cumprem o mesmo propósito. As fronteiras criam uma população trabalhadora extremamente vulnerável e desprivilegiada, que pode ser ainda mais facilmente explorada e forçada a trabalhar por salários mais baixos. A função das fronteiras, em outras palavras, é dividir os trabalhadores entre “legais” e “ilegais”, ou documentos e sem documentos. Evidentemente, para que os capitalistas realmente possam aproveitar esse tipo de divisão, as fronteiras não podem ser completamente bem sucedidas – sua intenção não é prevenir completamente o movimento de pessoas de um estado-nação para outro. Esse “fracasso” parcial das fronteiras é necessário para sua efetividade, do ponto de vista do capital.

Ainda que seja uma verdade inquestionável que fronteiras como a México-EUA sejam necessariamente algo porosa para servir a classe dominante, isso não significa que “fronteiras abertas e migração em massa são uma vitória dos patrões”, como argumentou Angela Nagle em sua muito comentada obra “O caso da esquerda contra as fronteiras abertas”². Fronteiras abertas iriam permitir que os imigrantes lutassem por mais direitos e se unissem com a classe trabalhadora nativa, o que ajudaria a fortalecer sua posição ao estar cara a cara com a classe capitalista.

Como os sem documento estão desesperados para trabalhar e não têm direitos, eles estão dispostos a trabalhar por menos e é improvável que protestem contra tratamentos injustos ou até mesmo brutais. Esses trabalhadores são frequentemente instrumentos de ataques à sindicatos ou outros trabalhadores nativos. Eles também são mais fáceis de controlar porque vivem com o medo constante de serem presos ou deportados. Sem “status” legal, esses trabalhadores não possuem nenhum recurso para que tenham suas queixas atendidas, assim acabam servindo como ponto de apoio para os chefes na luta contra a classe trabalhadora e suas organizações. É por isso que pelo menos metade dos trabalhadores imigrantes dos quais a agricultura dos EUA depende em grande medida são “sem documento”. . Indústrias inteiras – como o processamento de carne – dependem do trabalho “ilegal”.

A versão neoliberal das fronteiras abertas

Para benefício do capital, as fronteiras precisam ser permeáveis ​​de maneiras bem particulares. Enquanto criminalizam o movimento de pessoas, as fronteiras precisam permitir o movimento de mercadorias. Afinal, o “livre mercado” não gosta de ficar confinado e sempre terá como objetivo explodir quaisquer barreiras que apresentem obstáculos à acumulação de riqueza, à medida que a incessante busca de lucros, nas palavras de Marx, “persegue a burguesia por sobre toda a face Terra”³. Esta é a razão pela qual as fronteiras nacionais têm sido corroídas pelo avanço do regime neoliberal. Quando se trata de investimento e comércio, o capitalismo não quer limitar seu poder de privatizar recursos, despejar produtos, destruir sindicatos e impor austeridade – basicamente, fazer o que quiser para cobrir os bolsos dos acionistas.

Às vezes, uma força de trabalho relativamente móvel atende aos interesses do capital, como na UE, onde os trabalhadores da Europa Oriental fornecem uma camada de mão-de-obra barata para empresas do oeste. Ao mesmo tempo, o capitalismo precisa das fronteiras para manter seu sistema de acumulação de riqueza através da máxima exploração. As fronteiras nacionais perpetuam a competição entre os trabalhadores e a desigualdade social em todos os lugares. Eles prendem pessoas em países pobres e simultaneamente privam os migrantes de todos os direitos. Isso permite que os capitalistas continuem a aumentar a exploração dos trabalhadores em ambos os lados da fronteira.

Apenas a Ponta do ICEberg: Rumo a Abolição das Fronteiras Nacionais

A ICE pode ser um fenômeno recente, mas não é essencialmente diferente daquele que a precedeu. Os socialistas devem desafiar qualquer esforço feito pelos liberais e Democratas para tornar o “muro de Trump” responsável pelo problema de segurança nas fronteiras. Os socialistas precisam enfatizar que as separações familiares ocorreram também sob o comando do “deporter in chief” Barack Obama, assim como as antigas administrações. E ainda, os socialistas não devem deixar de mostrar que a política de tolerância zero de Trump é apenas o episódio mais recente da longa história da política racista anti-imigrantes dos Estados unidos, cujo início pode ser considerado a A Lei de Exclusão Chinesa, de 1882. O Trump pode ser mais incisivo na defesa de programas anti-imigrantes do que o ex-presidente Obama, mas ele herdou um sistema já estruturado. No que se refere a este assunto, a continuidade do trabalho entre Obama e Trump deve ser frisada pois ilustra que a violência anti-imigração tem pouco a ver com qual partido ocupa a Casa Branca.

Claro, alguns dos Democratas mais progressistas são sérios quanto a “#AbolishICE”4, mas eles não oferecem uma crítica profunda da idéia de que as fronteiras nacionais são necessárias e benéficas. Resta aos socialistas a tarefa de explicar como as fronteira são necessárias e benéficas apenas para os lucros capitalistas.

Bernie Sanders é um caso em questão. Em sua campanha de 2016, Sanders argumentou contra a abertura das fronteiras, alegando que era uma “proposta dos irmãos Koch”. Ele acreditava que a imigração irrestrita era o que todos os capitalistas gostariam, porque levaria, invariavelmente, a diminuição dos salários de todos. Na verdade, o que leva a depressão salarial geral é a retirada dos direitos dos imigrantes ilegais, que é estendida a todos a outros trabalhadores. A falsa premissa de Sanders apenas dá credibilidade à retórica anti-imigração de Trump e à direita, que visa dividir a classe trabalhadora e colocar grupos de trabalhadores uns contra os outros, alimentando medos xenófobos e distraindo as pessoas da causa real de seus problemas.

A classe trabalhadora não pode permitir que isso aconteça. Solidariedade é a única alternativa. Isso significa unir os trabalhadores dos dois lados da fronteira na luta por uma vida melhor.

Essa é uma ideia que o movimento socialista defendeu por um século. Em 1914, o alemão e socialista revolucionário Karl Liebknecht a defendeu em uma manifestação anti-guerra na França. Isso ocorreu apenas algumas semanas antes do início da Primeira Guerra Mundial. 20 mil trabalhadores saíram às ruas para pedir solidariedade internacional. Como um jornalista reportou, Liebknecht disse:

“O camarada Liebknecht fez seus ouvintes entenderem como as fronteiras são ridículas. “O que são fronteiras? Por que elas estão lá? Qual é o propósito delas?” Liebknecht tinha viajado pela Alemanha, Bélgica e França, e “em toda parte ele via trabalhadores pobres que lutam para conseguir o pão de cada dia, contra um punhado de ricos exploradores que têm milhões e milhões. Os trabalhadores não precisam de fronteiras; as fronteiras servem apenas a camada superior de cada país, que usa todos os meios à sua disposição para envenenar a mente das pessoas com ódio. Se queremos confrontar o chauvinismo, temos um meio à nossa disposição: a organização dos trabalhadores. Devemos trabalhar para garantir que os trabalhadores de todos os países se unam para impor sua vontade.”5

Notas

  1. Alexandria Ocasio-Cortez, Twitter post, 26 de maio, 2018, 12:45 PM.
  2. Para uma tréplica, ver Jimena Vergara e Luigi Morris, “Nagle Is Wrong: There Is No Left Case Against Open Borders,” Left Voice, 30 de november, 2018.
  3. Karl Marx e Friedrich Engels, “Burgueses e proletários,” cap. 1 no Manifesto do Partido Comunista, Obras Escolhidas, vol. 1 (Moscow: Progress Publishers, 1969), 98-137
  4. Robert Draper, “The Democrats Have an Immigration Problem,” New York Times Revista, 10 de outubro, 2018.

5. Volksfreund (Karlsruhe), 18 de Julho, 1914 (tradução nossa).

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