O ataque de Bolsonaro às universidades: uma batalha estratégica para minar a resistência ao governo

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imagem por Juan Chirioca

texto por Fernando Pardal

“Queremos que a garotada comece a não se interessar por política”. Essa frase de Bolsonaro marcou seu discurso na posse do novo ministro da educação, Abraham Weintraub. Ela é uma espécie de corolário da política do ex-capitão em relação à educação, com seu ataque virulento e feroz contra o caráter potencialmente questionador e explosivo da juventude numa roupagem de “guerra santa” contra a “doutrinação comunista” e a “ideologia de gênero”. Mas, não menos importante é o horizonte econômico a partir do qual o governo encara a questão – aliás, no atual contexto esses dois aspectos são indissociáveis.

O corte anunciado por Weintraub de 30% das verbas de três universidades – a princípio, pois depois foram generalizados para todas – UFF, UFBA e UnB, sob a alegação de “balbúrdia” é uma nítida expressão dessa conjunção de interesses. Contudo, é justamente pela importância do flanco educacional, tanto no plano político-ideológico como no econômico, que o amplo consórcio reacionário que compõe o governo de Bolsonaro vem batendo cabeça para tentar acomodar os interesses de todas as aves de rapina que querem se aproveitar dele.

A primeira tentativa de escolher um nome para dirigir o Ministério da Educação (MEC) trouxe a público essa disputa, e ficou marcada como uma das principais “caneladas” – para usar a expressão do próprio Bolsonaro – do governo da extrema-direita. Paulo Guedes, o ultraliberal que possui grande destaque na condução do governo, tem laços estreitos com os capitalistas da educação: sua irmã é vice-presidente da Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup) e o próprio ministro é investidor dos fundos de educação da Abril e Bozano.  Assim, não surpreende que o primeiro nome indicado para o MEC tenha sido o de Mozart Ramos Neves, presidente do “Todos Pela Educação” e diretor de inovação do Instituto Ayrton Senna, duas organizações lobbistas dos interesses dos empresários da educação. Contudo, os setores evangélicos, fervorosos cruzados contra a “ideologia de gênero” e a “doutrinação comunista”, reagiram imediatamente, e fizeram com que o presidente retrocedesse. Tentaram emplacar um nome próprio, Guilherme Schelb – um dos principais defensores do “Escola sem partido” -, que também não vingou. Assim, acabou vigorando a indicação de outro setor, os olavistas, e com bom trânsito entre militares, e Ricardo Vélez assumiu a cadeira.

Como apontava o site “desafios da educação”, mantido por empresas educacionais, desde a eleição Bolsonaro apontava para o conceito de “universidades empreendedoras”, um nome “chique” para esconder o que poderímos sintetizar como uma combinação de desmonte e privatização. Nessa linha, Eduardo Bolsonaro já fazia questão de alardear que não via o ensino superior como papel do Estado, e o próprio candidato presidencial defendia a cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Mas, além desse projeto empresarial, a equipe de transição de Bolsonaro já tinha uma outra preocupação bastante pertinente em relação às universidades públicas. Lembremos que, no período eleitoral, enquanto o PT fazia um esforço imenso para canalizar o ódio massivo contra Bolsonaro para um mero apertar dos botões 13 e confirma nas urnas, ocorreram duas mobilizações contra o ex-militar: uma delas foram os massivos atos de rua capitaneados pelo movimento de mulheres, o #EleNão; a outra foram as universidades que promoveram debates e atos públicos contra Bolsonaro.

Já nesse momento os setores bolsonaristas do judiciário colocaram a cabeça pra fora, tentando dar mostras de como contribuiriam ativamente para o reforço de uma repressão ostensiva a serviço do executivo. As censuras começaram a ser arbitradas pelas instâncias inferiores, e não tardou para que o STF as derrubasse, numa clara demonstração de forças para disciplinar Bolsonaro.

O potencial explosivo da juventude nas universidades para ser um foco de resistência contra Bolsonaro não passou batido, e sua equipe de transição já discutia a possibilidade de um “levante” nas federais  contra o novo governo. Sem dúvida, ainda ressoavam na cabeça desses burocratas as imagens não tão distantes das centenas de ocupações de escolas, Institutos Federais e universidades, bem como a expressiva participação da juventude na marcha à Brasília, que, lutando contra a PEC do teto de gastos foi um dos pontos mais altos da resistência aos ataques de Temer. E isso é apenas o exemplo mais recente de um fenômeno bastante generalizado, que tende a colocar a juventude como “o apito da panela de pressão” das contradições sociais, precedendo grandes lutas dos trabalhadores. Sabendo da magnitude dos ataques que o governo precisaria implementar, e da grande probabilidade do movimento estudantil ser um dos pontos cruciais da resistência, os ataques à universidade ganhavam uma importância política estratégica para Bolsonaro que extrapolava o dos planos de austeridade.

Some-se a isso o fato de que a expansão das universidades federais promovida pelos governos petistas – ainda que baseada na completa precarização, como ficou claro na imensa greve das federais de 2012 – também contribuiu para que o petismo ganhasse posições, se encastelando nas burocracias acadêmicas e reitorias país afora. Um importante ponto de apoio petista que Bolsonaro não deixaria passar. Não à toa, uma das primeiras declarações de Vélez era a de que iria mudar o sistema já antidemocrático de eleição de reitores nas federais para garantir uma plena ingerência do governo com a indicação direta de nomes. Vélez já anunciava a intenção de fazer um “mapeamento ideológico” dos reitores das universidades com o propósito de iniciar a perseguição

Em meio aos conflitos no âmbito do MEC que paralisavam Vélez, com as disputas entre militares, olavistas e demais setores que levavam a demissões e substituições de cargo – e as cobranças públicas da classe dominante por mais eficácia por meio de seus porta-vozes na imprensa – tanto o ministro como o presidente iam tentando avançar posições, ficando claro já que o carro-chefe da sua propaganda para implementar o desmonte e a privatização seria tanto o alardeamento de um “fantasma vermelho” que supostamente domina as universidades, como a boa e velha tentativa de contrapor os “privilégios” do ensino superior aos “direitos” da educação básica e infantil. Em sua primeira entrevista, Vélez já disse que “as universidades devem ficar reservadas a uma elite intelectual”. E em março, Bolsonaro fez um pronunciamento por seu meio preferido, o Twitter, contra o “massacre ideológico da esquerda” nas universidades, que “tripudia o capitalismo e enaltece o socialismo”, defendendo “quebrar o ciclo da massa hipnotizada”.

Mesmo em meio aos conflitos no MEC, o governo não ficou paralisado, e avançava em medidas draconianas como a mudança no ENEM, passando a impô-lo explicitamente como um filtro ideológico claro no ingresso às universidades e submetido diretamente ao crivo do presidente. Também em abril, retirou da câmara um projeto que previa a criação de duas universidades e três institutos federais.

Com a troca de Vélez pelo ministro Abraham Weintraub, o governo parece ter acertado o prumo de sua política ao se definir por um nome que, ao mesmo tempo que se alinha aos setores mais ideologicamente reacionários (Weintraub é um olavista de carteirinha), tem boa entrada com o “mercado”, tendo sido CEO do Banco Votorantin, instituição que cresceu sob as “benesses” da ditadura. Como apontado por Luiz Carlos Freitas, o MEC não perdeu tempo em afirmar um dialógo mais sólido envolvendo secretários estaduais e municipais da educação, junto a representantes do lobby empresarial como o próprio Mozart Neves, do Instituto Ayrton Senna e que fora a primeira aposta de Bolsonaro para o MEC.

Com o “ajuste” no MEC, o governo partiu para a ofensiva novamente contra as universidades, alinhando-se nas três esferas. No plano federal, Bolsonaro sinalizou a retomada da ofensiva com seu tweet sobre a “descentralização” (sic) dos investimentos em sociologia e filosofia, e focar nas áreas de “retorno imediato” (sic) como medicina, engenharia e veterinária.

Na semana seguinte, Weintraub anunciaria os cortes de 30% nas 3 universidades citadas anteriormente, afirmando que o critério era “balbúrdia”. No caso, a “balbúrdia” promovida nas universidades foram encontros estudantis, além dos protestos na época eleitoral, bem como o fato de que as três universidades são das que mais foram permeadas pelo ingresso de estudantes negros por meio da política de cotas. Contestado a respeito do critério ideológico para os cortes, Weintraub disse que estes seriam generalizados para todas as federais, e muitas reitorias já disseram que isso acarretaria a inviabilização do funcionamento das instituições. Mais hábil que seu antecessor, Weintraub divulgou um vídeo no Twitter em que relaciona diretamente o orçamento das universidades à falta de creches, alegando que um estudante na graduação custa R$ 30 mil e uma criança na creche custa R$ 3 mil ao ano.

Para além do fato de que Weintraub alega dados falsos sobre a proporção dos custos – conforme afirma O Globo, em 2008 o MEC divulgou um estudo afirmando que então o custo era de R$ 14.763 (universitário) contra R$ 2.632 (creche) anualmente – a manobra ideológica está justamente em afirmar que são as universidades as responsáveis pela falta de creche no país. Enquanto isso, Weintraub e Bolsonaro escondem que anualmente o governo desembolsa cerca de R$ 1 trilhão por ano em juros e amortizações dos títulos da dívida pública, um dinheiro que vai diretamente para o bolso de bancos e especuladores multimilionários. Esse dinheiro seria o suficiente para custear 200 USPs, 1000 UERJs ou 2500 UFRJs. Poderia facilmente sanar toda a falta vagas em creches e o déficit nas universidades. Ao usar a contraposição de um escandaloso déficit em vagas nas creches ao minguado orçamento de um ensino superior restritivo e elitista que abarca uma ínfima minoria dos que desejariam estar nas universidades, o que o governo quer ocultar é que foi ele mesmo que cortou, numa canetada, nada menos que R$ 5,839 bilhões da educação (aproximamente 25% do previsto na Lei Orçamentária de 2019). Segundo recente estudo da Associação Nacional de Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes), esse corte no MEC na verdade chega a R$ 7,4 bilhões, sendo que R$ 2,4 bilhões são na educação básica, o que desmascara a manobra demagógica do governo de opor os investimentos no ensino superior aos do ensino básico. Os cortes, na realidade, são feitos em nome de seguir enchendo os bolsos dos patrões, deixando tanto as creches à míngua quanto destruindo as universidades ainda mais.

A ofensiva do bolsonarismo, pautando-se em mentiras deslavadas, se estende também aos planos estaduais, como vemos no estado de São Paulo, onde se está instaurando uma CPI das universidades que, escondendo-se atrás do discurso demagógico de um “combate à corrupção”, pretende de fato fazer uma devassa ideológica nas três universidades estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp) e avançar contra a autonomia universitária. O próprio autor da proposta da CPI, Wellington Moura (PRB), afirmou que seu objetivo é investigar o “aparelhamento de esquerda” nas universidades. Paralelamente, uma das deputadas de destaque na CPI – e professora da USP – Janaína Paschoal, também avança com um projeto de lei para proibir sob pena de multas a venda ou distribuição de álcool nas universidades: por um lado quer aumentar o controle repressivo, tirar a autonomia financeira das entidades estudantis, mas também ampliar a propaganda de que as universidades públicas são um “antro” de imoralidade “balbúrdia”, o que serve como pretexto para corte de verbas e outros ataques.

Isso coloca a questão fundamental de que setores podem defender a universidade e por que métodos. As castas burocráticas que dirigem a universidade, que são elas mesmas muitas vezes as maiores defensoras dos projetos privatistas (vide na USP o projeto elaborado junto com a consultoria privada McKinsey, que gerou os “parâmetros de sustentabilidade” que orientam o desmonte do Hospital Universitário, demissões e a precarização do trabalho cujo último fruto foi a trágica morte do estudante e estagiário Filipe Leme em um acidente de trabalho na Escola Politécnica), não são aliadas para combater os ataques de Bolsonaro. Pelo contrário, do alto de seu privilégio, sempre foram defensoras de que a universidade seguisse antidemocrática, fechada aos trabalhadores. Também são eles que sempre estiveram à frente da repressão às greves e mobilizações de estudantes, professores e técnicos contra o desmonte e em defesa da universidade. Hoje, estão preocupados com seus cargos e privilégios para manter a universidade tal qual ela é: racista, elitista, reservada a uma pequena minoria e completamente de costas para as necessidades dos trabalhadores. A pretexto da falta de verbas, vêm avançando em parcerias público-privadas, terceirizações, e também implementando o modelo produtivista de universidade que preza uma produção acadêmica estéril e voltada para si ou para os interesses de empresas – cujos rankings, aliás, vem usando como argumento contra os cortes do governo.

A UNE, que durante toda a era petista refreou qualquer mobilização, sua ausência para levar qualquer tipo de combate pela democratização radical tanto do acesso como da produção de conhecimento e das estruturas de poder nas universidades foi extremamente funcional para que a extrema-direita ganhasse base social para fomentar um discurso demagógico contra os privilegiados nas universidades, que está a serviço de tornar seu acesso ainda mais restrito enquanto amplia a possibilidade de mercantilização da educação.

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