Escola Austríaca: a vulgarização da vulgaridade

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por Seiji Seron

 

A ciência econômica tem uma reputação de difícil que não é de todo injustificada. Mas há uma escola do pensamento econômico que pôde sair dos gabinetes catedráticos e se tornar a referência de “economia” de uma pequena, embora crescente, fração do grande público e, em particular, da juventude. Lamentavelmente, a que o logrou é o chorume da teoria econômica burguesa: a Escola Austríaca. Sua irreverência acadêmica contrasta com a popularidade de organizações políticas como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Partido Novo, e de um sem-número de influenciadores digitais que transformaram o até então desconhecido Ludwig von Mises neste nome cuja menção causa animosidades à direita e à esquerda.

Como o nome de sua obra fundadora sugere, a economia política era a ciência que investiga a natureza e a causa da riqueza das nações (Smith). Antes de mais nada, o posteriormente renegado adjetivo “política” distinguia-a da economia doméstica, mas também dizia respeito ao objeto de estudo de tal ciência, que é o processo material de produção e reprodução das sociedades humanas e, portanto, as relações entre as suas classes sociais. A tentativa de estudar seriamente essas relações sociais é o que diferenciava os economistas políticos clássicos, Adam Smith e David Ricardo, dos economistas vulgares, que abstraiam o caráter social da economia, reduzindo-a a relações entre coisas, objetos, ou a relações utilitárias de um indivíduo isolado com coisas.

Após a crítica marxista ter revelado que o trabalho assalariado é a forma capitalista da exploração, a economia política clássica e sua teoria do valor-trabalho foram renegadas pela burguesia, que as substituíram por uma reformulação da mesma velha vulgaridade em termos de cálculo diferencial: a teoria neoclássica, que abstrai as classes sociais, presumido que todos os indivíduos, sejam eles produtores ou consumidores, capitalistas ou trabalhadores, agem segundo critérios idênticos de racionalidade, maximizando ganhos e minimizando perdas, e que, então, descreve os acontecimentos “na margem”, isto é, que diferença faz ter uma unidade a mais ou a menos de um bem. Ao invés de relações sociais, o objeto da ciência econômica seria simplesmente a alocação mais eficiente dessas unidades marginais. Em relação à ortodoxia neoclássica, a Escola Austríaca é considerada “heterodoxa” porque rejeita os modelos matemáticos, mas sua teoria é essencialmente uma versão menos rigorosa da ortodoxia neoclássica. Um exemplo disso é a análise austríaca dos salários.

O suposto “refutador” de Marx

Em tempos de fake news, não é raro depararmo-nos com a afirmação de que um professor de von Mises, o também austríaco Eugen von Böhm-Bawerk, teria “refutado” Marx. Porém, as páginas e vídeos que dizem isso referem-se mais à sua teoria “positiva” do capital do que às críticas de Böhm-Bawerk a O capital de Marx, sobre as quais já escrevemos aqui. [LINK: https://www.esquerdadiario.com.br/O-trabalho-de-Marx]  [1] Marx explicou que o que os trabalhadores vendem não é propriamente o seu trabalho, mas sim sua força de trabalho. Durante a jornada de trabalho, o capitalista pode dispor livremente da força de trabalho que, desde que foi comprada, lhe pertence, e se apropriar do que for produzido durante a jornada de trabalho. Como o processo de produção é controlado pelo proprietário dos seus meios, os capitalistas podem explorar a força de trabalho, isto é, usá-la de modo a criar um valor maior que o custo de reprodução da força de trabalho, que é o valor dos meios de subsistência que o trabalhador consome para repô-la. Em suma, a diferença entre o valor do trabalho e o valor da força de trabalho é a mais-valia.

Já segundo a teoria bawerkiana do capital, os trabalhadores não são explorados, pois há uma preferência subjetiva que torna o valor de um bem presente superior ao seu valor futuro. Os capitalistas devem pagar os salários de seus empregados quer tenham vendido as mercadorias que esses últimos produziram, quer não. Por isso, é justo que o trabalho presente seja remunerado segundo seu valor futuro, e a mais-valia nada mais é que a diferença entre o valor presente o valor futuro do trabalho. Se os trabalhadores quisessem receber a totalidade do valor (presente) teriam que se tornar “sócios” dos capitalistas, compartilhando com estes os riscos da não venda. Como se não fosse autoevidente que são os operários e suas famílias que arcam com o risco das demissões em massa, o desemprego, a miséria e a fome quando os capitalistas têm prejuízos!

Böhm-Bawerk acha que os proletários escolheram ser proletários porque preferem a certeza de ganhar menos hoje do que a chance de ganhar mais amanhã, mas também correndo o risco de não ganhar nada. Ele não entendeu que, justamente, o que define o proletário é a sua impossibilidade de escolher ser pago no futuro. O trabalhador “livre” só existe porque os produtores diretos foram violentamente separados, privados, de seus meios de produção através do processo de acumulação primitiva que descreve o capítulo XXIV do Livro I d’O capital; por isso, não têm mais a opção de trabalhar para si próprios, muito menos de serem sócios do capitalista, (co-)proprietários de seus meios de produção. Em outras palavras, os trabalhadores assalariados o são porque não podem obter os meios de subsistência de que necessitam de outro modo que não seja a venda “adiantada” de sua força de trabalho.

A lei dos rendimentos marginais decrescentes

Se essa apologia austríaca da exploração é ligeiramente diferente do mainstream neoclássico, a explicação da repartição da renda entre capitalistas e trabalhadores é a mesma: a “lei” dos rendimentos marginais decrescentes. Segundo esta lei, o acréscimo de cada nova unidade de um fator de produção – capital, trabalho ou terra – ao produto total da firma, sendo os outros dois fatores constantes, é menos que proporcional. Já que não existe exploração, a remuneração de cada fator será igual ao seu produto marginal. O lucro da firma [2], aquela diferença entre o valor futuro e presente do trabalho, será igual a quanto o produto aumentou, em termos monetários, após a instalação da última unidade de bens de capital adquirida, e os salários de todos os trabalhadores serão iguais a quanto o produto aumentou depois que o último trabalhador foi contratado. Lucros e salários são proporcionais às respectivas contribuições do capital e do trabalho para a produção total, e a distribuição da renda é justa porque é técnica.

A economia política clássica, particularmente Ricardo, admitia que a agricultura tem rendimentos decrescentes, pois sua expansão acarreta o cultivo de terras menos férteis e o esgotamento das terras já cultivadas. O que, porém, caracteriza a indústria são seus rendimentos crescentes, por causa das sucessivas inovações e do dinamismo tecnológico que o setor apresenta. Os economistas neoclássicos só puderam transpor os rendimentos decrescentes da agricultura para a indústria usando o conceito de “curto prazo”, definido como o tempo durante o qual a técnica e a organização da produção não mudam – algo absolutamente irreal. Não há um único momento, em toda a economia capitalista, no qual alguma firma não esteja introduzindo uma nova técnica e, por mais que a firma em questão não adquira novos bens de capital, não é possível contratar mais que um certo número de trabalhadores sem reorganizar a forma de produção.

O salário mínimo causa desemprego?

Von Mises ainda dirá que a causa do desemprego é que os trabalhadores, por meio dos sindicatos e de leis como o salário-mínimo, tentam obrigar os capitalistas a pagarem mais que o produto marginal do trabalho. Quando isso acontece, não será mais rentável o emprego daquele trabalhador, a “unidade marginal” de trabalho, que, então, será desempregada. Se o Estado e os sindicatos não “distorcessem” o mercado, todo desemprego seria necessariamente: 1) friccional, ou seja, temporário; 2) voluntário: mais uma vez, o indivíduo escolhe não trabalhar por achar que o salário que ganharia não compensa o tempo livre que perderia trabalhando. O pressuposto tácito e, obviamente, falso dessa afirmação é a “Lei”, de autoria de Jean-Baptiste Say (1797-1832), um dos economistas vulgares, que diz que toda oferta cria sua própria demanda e, mais cedo ou mais tarde, toda renda é gasta, seja em bens de capital ou de consumo, de forma que o livre mercado tende ao pleno emprego de todos os fatores de produção disponíveis e, no longo prazo, pelo menos, não há capacidade ociosa. Se a Lei de Say fosse verdadeira, não só o desemprego involuntário como também as crises capitalistas seriam impossíveis.

Embora a correlação que von Mises estabelece entre aumentos salariais e desemprego já tenha sido a mais aceita entre os neoclássicos, tal correlação jamais foi um consenso. Por exemplo, Alfred Marshall, o principal sistematizador da teoria neoclássica, sabia que o poder de barganha dos capitalistas é, de fato, maior que o dos trabalhadores. Em vez de uma distorção, os sindicatos seriam a maneira de aproximar da concorrência perfeita o mercado de trabalho, que, por si só, assemelharia-se mais a um oligopsônio, mercado no qual os compradores estão em número menor do que os vendedores e, por isso, são favorecidos. Entretanto, a opinião de von Mises deixará de ser majoritária após a publicação, em 1936, do Teoria geral do emprego, do juro e da moeda de J. M. Keynes, que irá re-refutar, nos termos dos neoclássicos de então, a Lei de Say, refutada por Marx mais de meio século antes.

Aliás, Keynes não negava totalmente a suposta correlação, alegando que só às custas de alguma inflação pode haver pleno emprego. Este, no entanto, já não era mais uma tendência espontânea do mercado, dependendo, agora, da intervenção econômica do Estado. Na verdade, o que define o nível de emprego é o ritmo dos investimentos ou, como dizemos os marxistas, da acumulação do capital. Em texto [LINK: http://www.ips.org.ar/wp-content/uploads/2011/03/Apuntes-a-prop%C3%B3sito-de-Keynes.pdf] cuja leitura recomendamos enfaticamente, Paula Bach explica que Keynes foi o primeiro economista burguês a confessar “elipticamente” que o capitalismo precisa de um exército industrial de reserva, um pool de desempregados que consiga ser rapidamente posto na ativa ou desmobilizado conforme os capitalistas têm maior ou menor necessidade de mão de obra, à medida que a conjuntura economica oscila.

Repartição da renda: técnica ou social?

Os economistas pós-keynesianos, como Joan Robinson e Pierro Sraffa, também criticaram fortemente a lei dos rendimentos marginais decrescentes. Nas teorias marginalistas – neoclássica e austríaca –, a moeda é algo “neutro”, nada mais que um facilitador das trocas; só o que existe é, por um lado, a quantidade física dos bens e, por outro, as avaliações que os indivíduos têm da utilidade desses bens, avaliações essas que são subjetivas, logo, incomensuráveis. O trabalho e a terra são fatores de produção homogêneos. Assim, é possível medi-los fisicamente, em homens-hora, hectares, etc., e comparar o acréscimo de cada unidade desses fatores ao incremento físico do produto. Em contrapartida, o capital é um fator heterogêneo. A mesma quantidade de dinheiro pode comprar diferentes máquinas, equipamentos, instalações e insumos, distintas combinações de distintos bens de capital. Não existe unidade física de medida do capital.

Por conseguinte, não há como comparar o incremento do capital ao do produto em termos físicos, apenas em termos monetários. Mas a relação monetária entre lucro e capital investido não é outra coisa que a taxa de lucro. Então, o que determina a taxa de lucro? As teorias neoclássica e austríaca da distribuição da renda são tautológicas, ou seja, tomam como dado justo aquilo que deveriam explicar, e os pós-keynesianos não puderam senão reconhecer que, se a repartição entre lucros e salários não é determinada tecnicamente, pela produtividade marginal dos fatores, só pode ser determinada socialmente, pela relação de força entre as classes, como, ademais, a economia política clássica e, em especial, sua crítica marxista já haviam provado. Isso implica que não existe um nível salarial “ótimo” que os trabalhadores devam aceitar para que haja pleno emprego, como pensavam von Mises e o próprio Keynes. Nesse sentido, a superioridade do método marxista é muito bem resumida por Isaak Rubin. Em sua obra de 1924, ele escreveu:

“Os economistas vulgares cometem dois tipos de erros: 1) ou bem […] derivam fenômenos sociais diretamente de fenômenos técnicos; por exemplo, a capacidade do capital de dar lucro, que pressupõe a existência de classes sociais particulares e relações de produção entre elas, é explicada em termos das funções técnicas do capital em seu papel de meios de produção; 2) ou bem […] fazem derivar fenômenos técnicos de fenômenos sociais; por exemplo, atribuem o poder de aumentar a produtividade do trabalho, que é inerente aos meios de produção e representa sua função técnica, ao capital, isto é, a uma forma específica de produção (teoria da produtividade do capital).”[3]

A guisa de conclusão

O curioso é que, a exemplo de Keynes, os mais esclarecidos intelectuais da burguesia tiveram que revisar suas teorias, depurando-as de suas formulações mais inoperacionais, mais grosseiramente ideológicas, na medida em que se desenvolvia o imperialismo, época de crises, guerras e revoluções, de auge da concentração e centralização do capital, e de declínio histórico-civilizatório da sociedade burguesa. Após a crise de 1929, era inviável continuar afirmando que as massas de desempregados seriam, mais cedo ou mais tarde, reabsorvidas pelo livre mercado sem nenhuma intervenção estatal. Enquanto isso, a Escola Austríaca ainda usa os mesmos argumentos doutrinários que só tinham alguma razão de ser numa época anterior, livre-concorrencial, de ascensão histórica do capitalismo, a qual findou irreversivelmente quando da passagem do século XIX para o XX.

Por que esse chorume, essa velharia faz tanto sucesso? Talvez a resposta seja: porque a economia burguesa é chata. Ela usa termos difíceis, como elasticidade, liquidez, custo de oportunidade, tradeoff. Ela se expressa predominantemente na linguagem do cálculo diferencial. Pensar “na margem” não é algo muito intuitivo, exige certo treino, certo hábito. A Escola Austríaca logrou popularizar algumas ideias marginalistas de forma simplificada e isenta de formalizações matemáticas. E o mais importante: pôde tornar suas ideias ultrapassadas em ideias aparentemente radicais, inovadoras e até “subversivas”, porque se contrapõe mais frontalmente do que qualquer outra escola do pensamento econômico àquela que é, realmente, a teoria mais radical e subversiva do nosso tempo: o marxismo.

[1] Ainda sobre a crítica de Böhm-Bawerk a O capital de Marx, ver: http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/historia-de-una-presunta-inconsistencia/

[2] Ou o juro, pois, segundo os austríacos, é o juro e não o lucro que remunera o fator “capital”, uma vez que esse fator de produção, como vimos, está relacionado à preferência temporal.

[3] Ensayos sobre la teoría marxista del valor. Córdoba: Ediciones Pasado y Presente, 1974. pp. 76-7. Tradução livre – itálicos do original.

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