Algumas considerações sobre marxismo e crítica cultural

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imagem por Alexandre Alves

texto por Lara Zaramella e Fernando Pardal

*este texto foi baseado nos encontros do Grupo de Estudos de Cultura e Marxismo realizados na semana passada na Letras USP.

O materialismo histórico e dialético desenvolvido por Marx e Engels surge como uma superação da oposição entre o hegelianismo – que vê a evolução histórica de forma idealista – e o materialismo vulgar, baseado no empirismo. Para Hegel, a história consiste num desenvolvimento do Espírito Absoluto, um tipo de razão metafísica inconsciente da qual os homens e sua história são apenas os agentes. O “estado social” determinaria o movimento histórico, e isso é a realização do Espírito Absoluto, e a evolução social é explicada pela passagem deste a uma fase superior. Como vemos, é uma explicação idealista, pois funda a causa do mundo em uma concepção metafísica.

Em relação à filosofia precedente, a filosofia hegeliana apresentava um aspecto revolucionário. Como diz Engels:

“Em Hegel, a verdade que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas, bastaria guardar de memória; agora a verdade residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da ciência, que sobe, dos degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento, sem porém, alcançar jamais, com o desenvolvimento de uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se possa continuar avançando, em que nada mais reste senão cruzar os braços e contemplar a verdade absoluta conquistada.” (ENGELS, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã)  

Contudo, para que a dialética pudesse explicar o mundo, era preciso escapar ao idealismo: “Hegel, como bom idealista que era, impregnou a dialética desenvolvida de idealismos e elementos místicos, ao defender que a essência da realidade estava embasado nas idéias. Dessa forma, a “revolução das ideias” seria capaz de arrastar consigo a realidade: “O Espírito é a causa do mundo” (Enciclopédia de Hegel). Marx e Engels libertaram a dialética da casca do idealismo de Hegel, alcançando então seu oposto: o materialismo.” (NOVACK).

Nascia então o materialismo dialético, que pode ser sintetizado na seguinte passagem dos jovens Marx e Engels:

“Inteiramente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu. (…) Não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como se ela fora um indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se do indivíduo vivo e real e considera-se a consciência como sua consciência. (…) E logo que se expõe este processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, tal como se apresenta aos empiristas – que, ademais, são abstratos – , ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas.” (MARX; ENGELS).

As relações econômicas e materiais, tidas como base da sociedade, interferem no curso e produção das ideias de determinado momento e em suas relações sociais. É por essa relação dialética entre a base e a superestrurura, que, por exemplo, não se poderia imaginar ou desenvolver conceitos científicos como a física quântica, ou concepções de comunicação como a internet, ou mesmo conceber formas sociais como o comunismo, durante a Idade Média, ideias que são totalmente alheias ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas de então. As ideias se desenvolvem em estreita relação com as condições materiais que permitem seu avanço e superação dialética.

É nesse sentido que o marxismo demonstra a relação entre a base, as relações materiais, as forças produtivas, com a superestrutura, as ideias, a ideologia de uma sociedade.

“As representações, o modo de pensar, a comunicação espiritual entre os homens se apresentam aqui, ainda, como emanação direta da sua relação material, tal como se manifesta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtos das suas representações, das suas ideias etc. – mas se trata de homens reais e ativos, condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e pelo intercâmbio a ele correspondente, inclusive suas formas mais desenvolvidas. (…) A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra forma de ideologia e as formas de consciência que a elas correspondem perdem, assim, a aparência de serem independentes.”

(MARX; ENGELS, A Ideologia Alemã).

A divisão social do trabalho, a propriedade privada

É a partir desta concepção que Marx e Engels são capazes de compreender a divisão social do trabalho, característica da sociedade de classes, em que ocorre o processo de especialização da técnica e existe então uma separação entre trabalho manual e intelectual. É somente a partir da produção de alimento excedente que existem condições objetivas para que nem todos se dediquem às atividades diretamente ligadas à reprodução material da vida, e, portanto, surja o trabalho puramente intelectual. Assim, também ocorre que a consciência encontre as “condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria ‘pura’, da teologia, da filosofia, e da moral ‘puras’”. Ou seja, se imaginar como autônoma das condições materiais. Marx aponta também como é nesse momento que surge a primeira forma de ideólogos: os sacerdotes. Uma das funções primordiais dessa ideologia é justamente justificar a divisão desigual do trabalho; Marx e Engels apontam para o fato de que “a divisão do trabalho e a propriedade privada são expressões idênticas: o que uma diz em relação à atividade, a outra diz em relação ao seu produto” (MARX; ENGELS, A ideologia Alemã).

No capitalismo, em que há um avanço das forças produtivas, a divisão social do trabalho se potencializa, assim como o antagonismo entre as duas classes: burguesia e proletariado. Nesta sociedade se aprofunda a separação entre trabalho manual e intelectual, além de se aprofundar também uma distribuição desigual do trabalho e de seus produtos.

A especialização do trabalho obriga cada qual a se dedicar a uma única atividade como fonte de sobrevivência: “Com efeito, a partir do momento em que o trabalho começa a ser dividido, cada homem se move num círculo exclusivo de atividades, que lhe é imposto e do qual não pode escapar”. No caso do trabalhador fabril, a venda de sua força de trabalho para o capitalista impõe um grau de alienação do trabalho, de estranhamento do trabalhador em relação à sua atividade e ao produto dela, que se opõe a ele como um ser estranho, um poder independente (cf. MARX, Manuscritos econômico-filosóficos). Mas, no caso do intelectual, se impõe também a condição de ver o próprio trabalho manual como uma abstração, na medida em que dele não participa. Um exemplo disso podemos ver, por exemplo, nos professores universitários que chegam ao extremo de dizer que “a classe operária não existe mais”.

A Literatura na história

A sociedade, dividida em classes, para se manter tal como ela é, com essa divisão e a exploração que a constitui, necessita da ideologia que, a partir de mascarar as determinações históricas das condições sociais, justifica, naturaliza e, mais ainda, perpetua tais relações.

Partindo disto é que se pode olhar e analisar para toda produção artística e cultural de um ponto de vista marxista. Qualquer forma de produção cultural está marcada por essas determinações. Terry Eagleton, filósofo e crítico literário marxista, em “O que é Literatura?” (EAGLETON. Crítica Literária: uma introdução) traça o caminho de demonstrar como o conceito e definição de “Literatura” é determinado pelo contexto histórico e social, muito mais do que por características de uma suposta linguagem literária em si.

Longe de ser um dado objetivo da realidade, a literatura se apresenta então como categoria social e histórica especializada, relacionada à ideologia dominante de determinado momento histórico, com suas relações materiais e sociais.

No texto mencionado, Eagleton apresenta definições do que é literatura comumente utilizadas por distintas vertentes teóricas ou por visões já incorporadas ao “senso comum”, demonstrando a impossibilidade de uma definição supra-histórica e universalmente aplicável de “Literatura”. O primeiro argumento que o autor trata é da literatura como “escrita imaginativa”, opondo ficção aos fatos, argumentando por meio de exemplos que essa definição não se sustenta: tanto por escritos não-fictícios, como ensaios, que hoje são lidos como literários, como por textos em que os limites entre fato e ficção são ambíguos ou impossíveis de serem estabelecidos.

Em seguida, Eagleton trata sobre a possibilidade então de que “talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou ‘imaginativa’, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar” (EAGLETON, op. cit), numa transformação da linguagem que a  afastaria da fala cotidiana. Baseando-se no estudo dos formalistas russos, a literatura seria então uma forma “especial” de linguagem, contrastando com a linguagem “comum”. Mas o autor demonstra como, por um lado, essa definição se aplica a certos tipos de literatura – como a linguagem poética – mas não a outros – como trechos de romances em que a linguagem “comum” é empregada. E, por outro lado, como a própria definição do que seria uma linguagem “comum” é sujeita ao estabelecimento de uma norma que é, por si só, ideológica: a linguagem “comum” varia de acordo com região, época, classe social, situação de emprego, etc.

Transitando por estas definições – cada qual adotada como a “verdadeira” em determinado contexto e demonstrada como parcial e relativa pelo crítico – Eagleton deixa claro que “a linguagem em si não tem nenhuma propriedade ou qualidade que a distinga de outros tipos de discurso”. Partindo então da relação do literário com o contexto sócio-histórico, o autor demonstra a relação da arte e cultura com a ideologia dominante.

Não trata-se do estado fixo das coisas, mas sim de “suas relações com o ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente. (…) ‘Literatura’ talvez signifique (…) qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. (…) Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe”. (EAGLETON, op. cit).

Assim, como dito por Eagleton, “o ‘nosso’ Homero não é igual ao Homero da Idade Média, nem o ‘nosso’ Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse autor. (…) Todas as obras literárias, em outras palavras, são ‘reescritas’, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as lêem”. Atribuem-se valores, mudam-se as leituras em consonância com os valores de quem as lê. A crítica e a recepção atribuem significados que outrora poderiam jamais ser vistos no mesmo texto.

As mudanças na avaliação de obras, na forma como se produzem e nas próprias definições do que é literário estão atreladas às mudanças ideológicas. Numa definição simplificada, Eagleton diz: “Não entendo por ‘ideologia’ apenas as crenças que têm raízes profundas, e são muitas vezes inconscientes; considero-a, mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução do poder social”.

Como apontamos a partir dos textos de Marx e Engels, a ideologia de uma época é parte de sua superestrutura, sendo determinada em última instância pela economia. As maneiras diretas e indiretas pelas quais a ideologia – e também as formas artísticas que trazem em seu bojo aspectos dessa ideologia – constituem uma relação complexa cuja compreensão não pode prescindir de uma análise materialista e dialética. A determinados valores que permeiam as posições estéticas e valorativas de uma sociedade Eagleton aponta como um “consenso de avaliações inconscientes presente nessas diferentes opiniões”.

Cabe ressaltar que a relação entre a base econômica e a superestrutura que se ergue relacionada a esta, nunca pode ser compreendida de maneira direta e mecânica, como se de uma derivasse a outra imediatamente. Particularmente as formas mais abstratas, como a filosofia ou a literatura, implicam em mediações que devem ser analisadas em suas particularidades.

esse debate inciado na última reunião do Grupo de Estudos de Cultura e Marxismo terá continuidade no nosso próximo encontro, dias 23 e 24 na Letras USP (veja aqui mais detalhes). Tomando como base as contribuições de Terry Eagleton e Raymond Williams, aprofundaremos a discussão sobre o papel do crítico no capitalismo e as relações dialéticas entre a base e a superestrutura.

 

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