A fúria estudantil nos primeiros anos de chumbo

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Por Guilherme Kranz

O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Walter Benjamin, Teses Sobre o Conceito de História

 

Difícil encontrar algum momento, nos últimos trinta e poucos anos, em que o passado estivesse tão ameaçado. Os nossos mortos não estão em segurança. Nunca estiveram, na verdade, apesar da fina película de democracia instaurada em 1988. Mas agora os fantasmas de 64 parecem falar mais alto. A viúvas clamam pela volta dos generais. Os gorilas começam a se mexer nos quartéis. A turba verde e amarela reencena as marchas por Deus, Família e Propriedade. O torturador confesso é exaltado em praça pública. Os ianques se coçam. E o presidente não mede palavras para defender 1964. Quando o passado está ameaçado, é nossa obrigação trazer a verdade à superfície. Conhecendo-a, não nos libertaremos, mas afiamos nossas armas para poder construir uma força que faça jus aos que tombaram e nos guiar melhor nesses tortuosos tempos.

A ditadura no Brasil levou indígenas, operários, artistas, crianças, estudantes, jornalistas, professores e padres. Muitos estudantes ganharam nomes nos livros de história. Alguns são lembrados todos os anos, como o secundarista Edson Luís, que virou símbolo da luta estudantil. A todos erguemos a cabeça em memória honrosa. O movimento estudantil da década de 1960 continua inspirando gerações até hoje, nos legaram um arsenal de experiências riquíssimas e merece um capítulo especial. Esse breve texto busca trazer alguns de seus grandes feitos, bem como extrair lições de seus limites e contradições para pensarmos o presente.

 

A ditadura começa na Praia do Flamengo, número 132.

Na noite do 1º de abril de 1964, menos de vinte e quatro horas após João Goulart ser deposto, os militares invadiram a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) na Praia do Flamengo, número 132, e atearam-lhe fogo. Em 1980, voltaram e destruíram o prédio. Não é casual o primeiro ataque do regime ter sido desferido contra o movimento estudantil – os estudantes representavam um enorme potencial de resistência aos planos dos militares. Logo em seguida, miraram a repressão nos quartéis, no campo e nas fábricas, mas se torna simbólico atacarem a UNE no primeiro de abril. A direção da entidade na época estava nas mãos da Ação Popular, corrente de esquerda de influência cristã. O PCB também tinha muita força entre os estudantes. Ambas possuíam peso de direção no movimento estudantil nacional.

A escolha da UNE no momento foi de recuo. Optaram por não organizar a resistência aos primeiros passos da ditadura. Diretórios Acadêmicos foram fechados e, em 27 de outubro, o Congresso aprova decreto extinguindo a UNE. Em 9 de novembro, o ministro da educação aprova a Lei Suplicy, que proibia DAs e DCEs de “qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares”. Pouco a pouco vai se delineando uma forte perseguição ao movimento estudantil. As prisões, torturas e assassinatos aos estudantes só ganham corpo na medida em que o movimento estudantil passa a sair às ruas com força, a partir de 1968. Durante os quatro primeiros anos, no campo e no movimento sindical, a repressão já estava bem mais dura.

Entre 64 e 68, o movimento estudantil foi se organizando, portanto, sob a política consciente de recuo das lideranças da AP e do PCB. Em meio a tudo isso, em 1965, os estudantes da USP chegam a organizar uma greve que paralisa mais de 7 mil estudantes. Em distintos locais do país, os estudantes organizavam atos contra a Lei Suplicy, os quais eram prontamente reprimidos (com destaque para Belo Horizonte). Em 1966, o governo militar dá um passo importante no atrelamento da ditadura ao imperialismo norte-americano, com a implementação do acordo MEC-USAID, que previa uma ampla reforma educacional em todos os níveis no país. Em nível universitário, o acordo previa uma reformulação do ensino superior visando à formação de quadros técnicos bem alinhados à política e aos objetivos norte-americanos. A Reforma Universitária previu maior centralização do poder das universidades nas mãos das reitorias. A famigerada Educação Moral e Cívica, que retorna como fantasma insepulto nos latidos golpistas de hoje, foi implementada em 1969. Na segunda metade da década de 1960, em 66, protestos pelas principais capitais contra o MEC-USAID e o regime ocasionaram o chamado “massacre da praia vermelha” no Rio de Janeiro, onde a polícia cercou a Faculdade de Medicina e promoveu um espancamento generalizado de mais de 500 estudantes. Sob repressão, portanto, os estudantes do país todo vão germinando uma insatisfação generalizada que explode apenas em 1968, quando a fúria estudantil toma conta das ruas das principais capitais do país, em grande medida inspirada pelos ares da luta de classes internacional.

 

Fúria estudantil nas ruas, universidades e fábricas de 1968

O recuo organizado a partir de 64 pela UNE começa a ser rompido por uma indignação incontrolável. Não havia direção que conseguisse segurar esse turbilhão. O ciclo de lutas estudantis teve início com a morte do secundarista, Edson Luís, de 18 anos, após um protesto no centro do Rio de Janeiro em março de 1968. A indignação levou cerca de 60 mil às ruas da antiga capital federal. Em junho, os estudantes da USP protagonizaram a ocupação da faculdade de filosofia que se estendeu até outubro, tendo seu fim com a conhecida Batalha da Maria Antônia e a morte do estudante José Guimarães com um tiro disparado pelos grupos proto-fascistas do Mackenzie e da polícia em 2 de outubro. Em julho, o Rio de Janeiro foi invadido por uma onda de protestos após a prisão do estudante Von Der Weil. Em um ato, 10 camburões policiais foram incendiados, centenas de pessoas feridas e 28 mortas. A resposta das ruas se deu 5 dias depois, com a Passeata dos Cem Mil, fenômeno-auge da mobilização estudantil em 68 e palco das famosas fotos de multidões exigindo “Abaixo a Ditadura! Povo no Poder!”

Esse turbilhão efervescente de lutas levou o regime a endurecer cada vez mais a repressão. Em 29 de agosto, ocorreu a grande invasão da UNB, onde tropas militares ocuparam a universidade e prenderam dezenas de lideranças, entre eles, Honestino Guimarães (que veio a desaparecer em 72). Em 12 de outubro, o 30º Congresso da UNE foi invadido em Ibiúna, levando à prisão de 800 estudantes. Dando fim o ciclo estudantil do ano, 68 terminou com a expulsão de mais ou menos 800 estudantes que ocupavam o CRUSP, conjunto residencial da USP, em 17 de novembro. Menos de um mês depois, em 13 de dezembro, o regime militar decretava o AI-5 como dura resposta ao maremoto operário-estudantil que fez tremer as bases da ditadura.

Desse quadro geral das principais ações do movimento estudantil, extrai-se algumas lições: a capacidade do movimento estudantil de influenciar na agenda política nacional e se transformar no principal veículo de insatisfação popular contra a ditadura durante esses primeiros anos. Essa força é tamanha a tal ponto que conseguiu arrastar parte das classes médias para o lado de oposição ao regime, jogo de forças com as pitorescas marchas da família, por Deus e pela liberdade.

 

A aliança operário-estudantil: dois relâmpagos na noite do arrocho

Mas quando lidamos com o movimento estudantil de 68 no Brasil, um outro aspecto costuma ser deixado de lado, não menos importante, sobre a íntima relação com o movimento operário.

Stanislaw Szermeta, liderança operária da oposição metalúrgica de Osasco, em entrevista de 2013, conta um pouco sobre o rico intercâmbio entre estudantes, operários, movimento estudantil e movimento operário: “era todo um conjunto de liderança estudantil que vinha do movimento secundarista, estava já encaminhado para o movimento universitário e que voltava, e que fazia esse link, fazia essa vinculação das lutas” .

Szermeta conta que os “estudantes-operários” de Osasco liam escritos sobre a revolução cubana e vietnamita, sobre marxismo, principalmente orientados pelo “pessoal do movimento estudantil”. Alguns operários participavam desses círculos de estudo e pouco a pouco faziam a ponte com a fábrica.

No bojo desse cruzamento entre estudantes e trabalhadores, estourou o ciclo de greves operárias em 68. Seu estopim se deu no dia 16 de abril, em Contagem, onde 16 mil operários cruzaram os braços contra o arrocho salarial da ditadura, ocuparam fábricas e em poucos dias fizeram o governo recuar conquistando um histórico aumento de 10%. Tudo isso iniciado a partir de lideranças à margem do sindicalismo tradicional e à esquerda do PCB, com a já existente ponte entre movimento estudantil e operário.

O 1º de Maio paulista configurou um dos momentos mais emblemáticos da radicalidade operária e estudantil. Com milhares de pessoas na Praça da Sé, o governador do estado, Abreu Sodré, saiu apedrejado do palanque, que logo em seguida foi incendiado por trabalhadores e estudantes. Sobre o momento, Stanislaw afirma: “o 1º de Maio foi expressão de uma nova vanguarda que estava surgindo das bases, e se chocou com essa velha tradição do PC, por cima…

E foi em 16 de julho, enquanto ocorria a ocupação da Maria Antônia, que estoura a greve em Osasco. Apesar de iniciar forte, foi impedida de se expandir em chave revolucionária por todo o estado de São Paulo e pelo país por conta da violenta repressão orquestrada pelo regime militar. À margem do sindicalismo oficial, impulsionada pelos comitês de fábrica, independentemente das direções do PCB e costurando uma aliança com o movimento estudantil de São Paulo, os operários ocuparam a maior fábrica da região, a Cobrasma, e ao longo do dia foram paralisando praticamente todas as fábricas – cerca de 10 mil braços cruzados e várias ocupações. Pelo que as lideranças metalúrgicas não esperavam foi a rapidez com que se armou o cerco militar à cidade, com o ministro  Jarbas Passarinho voando à São Paulo para instalar o quartel general de repressão em menos de 24 horas. Os tanques sitiaram Osasco, controlaram todas as saídas, o governo decretou a greve ilegal, determinou a intervenção no sindicato e derrotou o movimento, levando inúmeros operários à prisão e à tortura.

A força e o perigo da greve era tamanha que Jarbas Passarinho teve que dar uma declaração com medo de que São Paulo virasse Paris. A greve, apesar da derrota prematura, fez o regime tremer, apontou um caminho sólido para a aliança operário-estudantil e acarretou ações de solidariedade por todo o país. Outra liderança da oposição metalúrgica, o trabalhador da Cobrasma, Antônio Espinosa, batizou as greves de Contagem e de Osasco como “dois relâmpagos na noite do arrocho”, intensos e poderosos, mas incapazes de iluminar o caminho da classe operária na longa noite dos anos de chumbo.

 

Relativa hegemonia cultural de esquerda

Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom.

Roberto Schwarz, Cultura e Política, 1964-1969

Desde o final da década de 1950, a esquerda vai ganhando força cultural em todo o país, em grande medida influenciada pelos estudantes e intelectualidade da época. A definição de Schwarz ao mesmo tempo em que incita alegria, nos compele a questionar os limites de uma hegemonia meramente cultural – bem como a enxergar as contradições do conteúdo dessa hegemonia. Ainda segundo Schwarz, no calor do momento, essa hegemonia “era forte em anti-imperialismo e fraca na propaganda e na organização da luta de classes. A razão estava em parte ao menos na estratégia do Partido Comunista, que pregava a aliança com a burguesia nacional. Formou-se em consequência uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes”.

Durante a década de 1950 e 1960, difundia-se uma arte de esquerda Brasil afora. Músicos, dramaturgos, atores e atrizes, cineastas – todos envolvidos, cada um a seu modo, na organização da irreverência e do protesto, empenhados na conscientização dos trabalhadores e do povo em geral. Esse são anos de Glauber Rocha, Oduvaldo Viana Filho, Leon Hirszman, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Chico Buarque, Geraldo Vandré e o início da tropicália. Parte da difusão artística da época se devia aos CPCs (Centros Popular de Cultura) e da UNE-Volante, ambos ligados ao movimento estudantil organizado e, por consequência, à estratégia política do PCB. A imagem mais ilustrativa da ligação entre a estratégia de conciliação de classes do PCB e essa imensa e massiva produção cultural de então foi a apresentação do show Opinião, em dezembro de 1964, onde sobe ao palco representantes de três classes distintas para cantar a resistência à ditadura: Nara Leão, João do Vale e Zé Keti. Enquanto a UNE era posta na ilegalidade, Nara Leão cantava “podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, mas eu não mudo de opinião, daqui do morro eu não saio não”.

Foi sob esses ares de uma cultura irreverente e de protesto que a juventude ia cantando os caminhos da revolução, apesar das contradições da política hegemônica do stalinismo. O fervilhão do movimento estudantil e operário da época se entrecruzava com as novas formas de se expressar artisticamente e rodavam o país inteiro em busca da conscientização.

 

Algumas lições do movimento estudantil na ditadura

Longe de querer esgotar os debates do movimento estudantil entre 64 e 68, algumas conclusões são pertinentes. Cabe a nós, mais de 50 anos depois, refletir por que os “dois relâmpagos na noite do arrocho”, a poderosa aliança-operário estudantil e o vendaval estudantil não triunfaram na luta contra o regime militar. O PCB, incapaz de enxergar em sua estratégia de conciliação com a burguesia nacional a razão de uma profunda traição, culpava a esquerda por atiçar o regime e provocar a repressão. Os grupos à esquerda do PCB, cuja investigação demandaria um outro artigo ainda mais extenso, tampouco conseguiram extrair as lições imprescindíveis dos processos de luta – parte expressiva dos grupos e lideranças do momento acabaram enveredando para os caminhos da guerrilha urbana depois de 68.

Para além das já mencionadas lições – como a força política que o movimento estudantil teve em disputar setores das classes médias para o lado da oposição à ditadura, a aliança-operário estudantil como liga estratégica para golpear o regime e arrastar consigo setores amplos da população, os fenômenos da base operária como radicalidade que se enfrentava não apenas contra o regime, mas também a estrutura sindical pelega e o próprio PCB – para além dessas lições, ressalta-se também a incapacidade de organizações de esquerda de levarem a frente essas lições para, nos períodos posteriores de maiores enfrentamentos (como acabou ocorrendo ao final da década seguinte, com as greves no ABC), a classe trabalhadora estivesse melhor preparada. De todas as pequenas organizações trotskistas, ou trotskizantes, nenhuma levou a frente esses balanços e lições e acabaram ou se dissolvendo na guerrilha (como os elementos trotskizantes do POLOP) ou se liquidando sem nenhuma influência em todo o processo. A questão é que a aliança entre operários e estudantes radicalizados, organizados e enfurecidos, de fato poderia transformar o relâmpago em uma tempestade que de fato botasse abaixo o poder dos generais e empresários em chave revolucionária, bem como superar os entraves do PCB. Faltou uma organização socialista e revolucionária à altura do desafio.

Se é verdade que muito das mazelas que a ditadura nos trouxe persistem na vida brasileira até hoje, é verdade também que o legado de todos aqueles e aquelas que protagonizaram os combates durante os primeiros anos da ditadura seguem vivos nos corações e mentes de muitos de nós, como memória, afeto, inspiração e lição. E com isso concluímos, apelando a manter viva a chama de 68 e gritando, como as paredes gritavam em Paris e no Brasil, “corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”.

 

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