“Nada é mais falso do que o senso comum de que na ditadura não havia corrupção” – entrevista com Pedro Campos

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imagem por Romualdo Nicola

Entrevista com Pedro Henrique Campos, por Simone Ishibashi, para o Ideias de Esquerda

Pedro Henrique Campos é historiador e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ). Vencedor do prêmio Jabuti com seu livro Estranhas Catedrais (Eduff, 2018), Pedro Campos desenvolveu uma minuciosa análise sobre as relações firmadas entre a ditadura militar e as empreiteiras. Nesta entrevista, Pedro Campos retoma alguns dos elementos analisados em seu livro e desvenda mistificações que se tornaram parte do senso comum, como a de que na ditadura militar não haveria corrupção.

 

Ideias de Esquerda: Em sua obra Estranhas Catedrais você detalha aspectos fundamentais do desenvolvimento dos grandes grupos empresariais brasileiros e sua relação com os distintos regimes políticos, focando nas empreiteiras e no regime militar. Como se desenvolveram as empreiteiras cariocas e paulistas, quais as suas distinções e como elas se relacionaram com o regime militar?

Pedro Henrique Campos: As cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo são alguns dos maiores mercados da indústria da construção pesada na história do país, ao lado de Minas Gerais. As empresas de determinadas localidades têm suas peculiaridades, que dizem respeito em certo sentido à própria trajetória econômica da região. Assim, as empreiteiras cariocas, historicamente, tiveram no século XX um papel político muito significativo, tendo intensa atuação em agências federais localizadas na cidade (como o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER –, a Eletrobrás, Petrobras etc.), e são em geral mais antigas que as paulistas e mais associadas ao mercado imobiliário, no caso o da cidade do Rio. Além disso, são empresários bastante organizados em organizações patronais, sendo as principais entidades nacionais do país até hoje sediadas no Rio. Já as empreiteiras paulistas cresceram em boa medida associadas às próprias agências estaduais de contratação de empreendimentos de infraestrutura, como o DER-SP (Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo), a Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S. A.) e a Cesp (Companhia Energética do Estado de São Paulo). Apesar das trajetórias distintas das empreiteiras cariocas e paulistas, algumas das principais construtoras das duas cidades se uniram em iniciativas como o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), para se opor ao governo João Goulart, elaborar propostas de reformulação do Estado e das políticas públicas e participar do golpe de Estado de 1964. Dessa forma, empresários da construção do Rio, de São Paulo, de outras estados e de outros ramos econômicos apoiaram e participaram da derrubada do governo Jango, tendo eles em seu currículo um histórico de pouco apreço pela democracia.

 

IdE: A Camargo Corrêa é apontada em seu livro como a empreiteira que mais cresceu durante a ditadura militar. Por que isso ocorreu?

PHC: A Camargo Corrêa foi a maior empreiteira durante a ditadura brasileira. Depois do regime, acabou sendo superada no campo da construção por outras empresas, como Andrade Gutierrez e Odebrecht, mas permaneceu sendo, em geral, uma das três maiores do país junto com essas duas. A empresa era controlada por Sebastião Camargo, empresário vinculado a algumas das mais poderosas famílias da classe dominante paulista, como os Penteado, os Ermírio de Moraes, os controladores do Bradesco, entre outros. Além disso, o sócio-fundador da companhia junto com Sebastião Camargo foi Sylvio Brand, que era na época da formação da construtora, em 1938, cunhado do governador (interventor) do estado de São Paulo Adhemar de Barros. A empreiteira teve ascensão significativa com obras junto ao governo estadual paulista, prefeituras e grupos privados, próximos de Sebastião Camargo e outros sócios da empresa. A empreiteira atuou nas obras de Brasília e no período do Plano de Metas de Kubitschek. Era ligada a militares e multinacionais. Ao longo da ditadura, a Camargo Corrêa tinha uma proximidade significativa com o ministro Antonio Delfim Netto, o “czar da economia”, que era acusado de facilitar negócios para a empreiteira. A empresa também era famosa pela truculência do seu proprietário, tendo ela participado do financiamento da Operação Bandeirantes (Oban). Sebastião Camargo era perseguido pelos integrantes da resistência armada à ditadura como alvo do “justiçamento”, tendo em vista sua colaboração para a repressão e perseguição dos militantes da esquerda armada. A maior revolta ocorrida em um canteiro de obra na ditadura teve lugar em um empreendimento tocado pela Camargo Corrêa. Dessa forma, em 1980, ocorreu um grande quebra-quebra no canteiro da obra da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. A empreiteira chegou também a participar da construção simultânea das três maiores hidrelétricas do mundo – Itaipu, Tucuruí e Guri (na Venezuela) –, sendo ela considerada a empresa que mais tinha equipamentos em todo o mundo da Caterpillar, maiores fabricantes de máquinas de construção do planeta. Por fim, Sebastião Camargo foi o primeiro brasileiro a constar como bilionário nas revistas Forbes e Fortune, tendo a empresa feito durante e depois da ditadura intensa internacionalização e ramificação para setores como produção de cimento (Intercement), tecidos (Tavex), calçados (Alpargatas), concessão de rodovias (CCR), dentre outros. Toda a força política da empresa foi decisiva para o seu sucesso antes, durante e após a ditadura

 

IdE: Durante a ditadura militar era comum que os donos das grandes empresas e empreiteiras tivessem cargos políticos? Como isso acontecia e, na sua opinião, o que isso revela sobre esse senso comum que se espalhou recentemente de que na ditadura militar não haveria corrupção?

PHC: Vários empreiteiros e empresários em geral dispuseram de cargos no aparelho de Estado durante o período da ditadura. Em primeiro lugar, era comum a sua participação em conselhos e comissões, tomando parte no processo decisório de algumas políticas estatais e interferindo no processo de direcionamento do fundo público. Além disso, alguns proprietários e dirigentes de empreiteiras dispuseram de cargos fundamentais em agências estatais durante o regime. Assim, o diretor da construtora Noreno do Brasil foi presidente da Eletrobrás no governo Castelo Branco (1964-1967); José Carlos de Figueiredo Ferraz, dono da empreiteira que leva o seu nome, foi prefeito biônico de São Paulo no auge da ditadura, entre 1971 e 1973; o banqueiro e diretor da Odebrecht, Ângelo Calmon de Sá, foi ministro de Indústria e Comércio no governo Geisel, entre 1977 e 1979; e o dirigente da Cetenco, Eduardo Celestino Rodrigues, foi assessor do Ministério de Minas e Energia durante o governo Figueiredo (1979-1985). Vários outros empresários de outros ramos cumpriram cargos-chave na ditadura, em geral por indicação. Esses são casos emblemáticos que denunciam que os empreiteiros e outros empresários não só apoiaram e se beneficiaram da ditadura. Muitas vezes eles compuseram o regime, participando da administração estatal e cumprindo funções decisivas no aparelho de Estado àquela época.

Sobre a corrupção, nada é mais falso do que o senso comum difundido de que durante a ditadura não havia ou mesmo era menor a corrupção do que no período democrático, ou que os militares não se corrompiam. Deu-se justamente o contrário. Na época, houve um conjunto de condições que viabilizaram uma espécie de “tempestade perfeita” para a reprodução e a multiplicação de práticas corruptas. Nesse sentido, a falta de transparência no aparelho de Estado e das políticas públicas, a ampliação da arrecadação e dos fundos estatais, o aparelhamento de vários cargos públicos por parte de empresários e o cerceamento a órgãos de controle (imprensa, Congresso, oposição política, movimentos sociais, judiciário, ministério público) fizeram com que houvesse uma verdadeira escalada dos interesses empresariais sobre o aparelho de Estado à época, com a multiplicação de mecanismos de apropriação legal e ilegal de fundo público por empresas e que foram pouco noticiados à época. No entanto, alguns casos acabaram vindo à tona, em especial, no período da transição, e não eram poucos e nem pequenos. Esses são os casos dos “escândalos” do relatório Saraiva, Delfin, Capemi, Halles, Lume, Luftalla, Coroa-Brastel, dentre vários outros.

 

IdE: E os militares? Eles costumavam ocupar postos importantes em empresas privadas durante a ditadura militar? Isso se mantém ainda hoje?

PHC: Era muito comum o convite e a nomeação de altos militares (oficiais) para a diretoria e os cargos em empresas privadas durante a ditadura. Segundo o relato de empresários, tê-los em seus quadros funcionais facilitava o trâmite junto ao governo e aos militares que controlavam algumas pastas e agências estatais. Notamos que isso ocorria com militares de altas patentes e com grandes empresas, sobretudo multinacionais. Assim, há alguns casos emblemáticos dessa tendência, como o de Golbery do Couto e Silva – importante oficial do exército que foi um dos formuladores do golpe de 1964, do processo de abertura política e criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) – que chegou a presidir a Dow Chemical do Brasil, com acusações posteriores de criar facilidades oficiais para empresa quando assumiu cargos relevantes nos governos Geisel e Figueiredo. Essa foi uma prática corrente na ditadura, mas que perdeu fôlego com o processo de redemocratização, já que os militares passaram a não ter mais tanta ascendência sobre o aparelho de Estado e as políticas públicas, sendo menos relevante para as empresas manterem oficiais em seus quadros para abrir caminhos no governo.

 

IdE: Analisando o discurso dos empreiteiros durante a ditadura militar, você indica como eles se colocam em uma posição “absolutamente passiva na relação com o aparelho do Estado, sendo o empresário induzido ao atraso e à ilegalidade”. Como seria, na verdade, essa relação entre os grupos capitalistas e o Estado em linhas gerais nas distintas fases da ditadura militar?

Alguns empreiteiros chegam a difundir a afronta de se dizerem vítimas da ditadura. Está claro que houve alguns poucos empresários desse e de outros ramos que foram perseguidos pelo regime por conta de disputas políticas (alguns eram próximos de Juscelino Kubitschek, por exemplo) e tensões vividas em alguns projetos de engenharia da época. Mas o fato é que a maioria das empreiteiras, sobretudo as maiores de ontem e de hoje (Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, OAS e outras), tiveram estreita relação com a ditadura, apoiando em geral o golpe de 1964, envolvendo-se com os militares e figuras fortes do regime, muitas vezes integrando importantes agências estatais e sendo beneficiários das políticas implementadas na época, com subsídios, financiamento, reserva de mercado, além de uma política endereçada aos trabalhadores que favorecia as empresas, com compressão salarial, perseguição dos sindicatos, proibição de greves, retirada de direitos – como a estabilidade em empresa privada após 10 anos de serviço –, e pouca fiscalização sobre o uso de instrumentos de segurança nos canteiros de obra, o que fez com que os empresários não se preocupassem com isso e, por conseguinte, levou à multiplicação dos acidentes de trabalho. Nesse sentido, os empreiteiros compuseram a ditadura, assim como outros agentes privados, fazendo com que denominássemos aquele regime como uma ditadura empresarial-militar, tendo em vista o seu perfil de classe.

IdE: Qual era a relação da Operação Bandeirantes (Oban) com o empresariado em geral, e com os empreiteiros em particular?

A Operação Bandeirantes (Oban) foi uma ação da repressão no estado de São Paulo feita para desbaratar os grupos de resistência armada à ditadura. A iniciativa contava com o apoio de empresas, como a Ultragás, a Folha de S. Paulo, a Mercedes-Benz, a General Electric, a Camargo Corrêa e outras. Eram agentes da polícia liderados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que tinham como prática a detenção, tortura e assassinato de integrantes da esquerda armada. O Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e a Ação Libertadora Nacional (ALN) “justiçaram” o diretor da Ultragás, Henning Boilesen, que, segundo relatos, não só dava suporte à Oban, como gostava de assistir às sessões de tortura. Sobre as empreiteiras, há apontamentos de que a Camargo Corrêa contribuía com o aparato de repressão.

IdE: A Lava Jato atacou as empreiteiras e seus laços com a Petrobras e o estado. Como essa operação tem sido recebida nos meios militares tradicionalmente ligados às empreiteiras?

A Operação Lava Jato desarticulou esquemas ilegais vinculando empreiteiras junto à Petrobras e outras agências do aparelho de Estado. Para além do seu uso político, caráter seletivo e mecanismos de ação típicos de um Estado de exceção, a operação detalhou as formas de escalada dos interesses empresariais sobre as empresas estatais e órgãos públicos, com pagamento de propina, interferência em decisões e políticas implementadas. A operação acabou quebrando as maiores empresas de engenharia do país, destruindo empregos, causando sérios danos na economia e abrindo o mercado para construtoras estrangeiras. Aparentemente, boa parte da cúpula das forças armadas não se opôs à operação Lava Janto, agindo justamente no sentido oposto ou, melhor, apoiando a pauta da luta contra a corrupção como uma espécie de tábua de salvação do Brasil, agenda que ganhou força no país nos últimos anos, em especial nos setores mais conservadores da sociedade. Apesar de algumas poucas empreiteiras terem uma certa entrada e relação com as forças armadas, essa ponte – que era muito forte durante a ditadura – perdeu força após o regime, fazendo com que, aparentemente, os militares não tenham se importado tanto com a desarticulação completa do setor de engenharia e infraestrutura na economia brasileira que ocorreu nos últimos anos.

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