Zanon: A “greve dos 9 dias” [Parte III]

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Antes de continuar a leitura sugerimos ler primeiro:

Zanon: Fábrica militante sem patrões [Parte I]

Zanon: Novos ares combativos [Parte II]

No começo do ano 2000 a patronal de Zanon tentou impor um Procedimento Preventivo de Crise. Queriam legitimar as demissões, suspensões em massa e impor condições de maior produtividade e exploração, pois com a nova comissão interna tínhamos conseguido impor limites importantes à super exploração. Para isso inventaram uma crise que não tinham, uma verdadeira chantagem frente a qual o governo de Sobisch respondia outorgando subsídios milionários. A patronal de Zanon tinha uma ótima relação com o então governador do MPN (1). Um exemplo disso foi quando Sobisch, Menem e Luigi Zanon (2)

chegaram na fábrica de helicóptero para a inauguração da nova planta de porcelanato, naquela época a mais moderna da América latina, construída com subsídios milionários do próprio governo.

Começou uma guerra fria. Os gerentes e os supervisores pressionavam em todos os setores falando que vinham cem demissões, suspensões rotativas e diminuição do salário, que era a única forma na qual a fábrica podia continuar funcionando. Inclusive teve uma proposta ‘por baixo dos panos’ a alguns delegados da Comissão Interna para que fosse ela mesma a que elaborasse a lista de cem trabalhadores para serem demitidos. Isso foi totalmente rechaçado com muita indignação pela maioria da Comissão Interna.

Estávamos nos preparando para a defesa dos empregos e de nossos direitos. Nas reuniões no local (3)

e nas assembleias dentro da planta começou a organização. A conquista da Interna e as assembleias tinha fortalecido a moral e a ameaça da patronal atuou como disparador.

Aproveitamos as greves nacionais do 5 de maio e do 9 de junho para instalar um velho método de luta da nossa classe: A greve com piquetes. A greve era discutida e se votava em assembleias, e a Comissão Interna, junto com o ativismo, garantia o cumprimento das suas resoluções. A preparação dos piquetes serviu para organizar mais companheiros ativistas. Foram jornadas memoráveis nas quais percorríamos o perímetro de 60 hectares da fábrica, evitando que entrassem os pau-mandados e a chefia. Essas ações eram um elemento importante de ação direta quando o conjunto da classe operária continuava sob a influência e o método de greve passiva da burocracia sindical. Enquanto isso, a única coisa que a burocracia de Montes, alinhada com a central moyanista (4),

fazia era colar nos murais o indicativo de greve.

A patronal procurava nos desgastar, nos cansar, nos submeter, queriam derrotar nossa organização: a Comissão Interna. Eles nos desafiavam, nós respondíamos. A burocracia do sindicato ceramista assediava os companheiros com a possibilidade de demissões por justa causa se entrássemos em greve. Mas nós continuamos em frente. Não só fazíamos greve, mas também organizávamos ações na saída do horário de trabalho.

Nessa situação de tensão extrema, às 6h da manhã do sábado 15 de julho de 2000, enquanto entravam os companheiros nos vestiários, se produz a morte de Daniel Ferrás por causa do descaso e negligência da patronal. Daniel era um jovem operário de 21 anos que passou mal no vestiário e, como não tinha ambulância nem equipe médico e os tubos de oxigênio estavam vazios, morreu. Para nós esse foi um enorme golpe. Durante o final de semana, no funeral, fomos nos encontrando. Todos sentíamos um ódio terrível, dissemos: “isso não da mais”. Na segunda-feira 17, às 6 da manhã, organizamos uma assembleia na entrada da fábrica. A morte do Daniel, o avassalamento do elementar direito à vida, foi a faísca para iniciar a greve. Daniel Ferrás virou nosso mártir operário. Começava assim a “greve dos 9 dias”. O impacto da greve transcendeu os portões da fábrica.

A assembleia foi comovedora. Muitos de nós falamos com lágrimas nos olhos, os companheiros sentiam impotência, mas também muito ódio de classe, que começava a se manifestar. Foi uma greve fortíssima. Ninguém nem pensava em questionar no mais mínimo se tínhamos que paralisar ou não. Tínhamos uma força esmagadora. Preparamos um petitório no qual pedíamos ambulância, serviço médico e a demissão do chefe de segurança e higiene. Também, isso tudo se ligou com o problema que vínhamos arrastando, que eram as ameaças de demissão e suspensões. Por isso, incorporamos ao petitório: “Nenhuma demissão, nenhuma suspensão”, e também: “abaixo o preventivo de crise”, “Chega de pressionar os trabalhadores”.

Às 9 da manhã nos ligaram da Casa de Governo porque o governador Sobisch pedia uma reunião urgente com a Comissão Interna. Na reunião Sobisch nos informou que falou pelo telefone com a empresa e tinha chegado a um acordo em que o governo da província faria compras antecipadas, colocaria milhões de pesos para que Zanon “não tivesse crise” e que não houvesse demissões. Disse que nós deveríamos resolver as suspensões e a diminuição salarial, e que ele como governador se comprometia a que não tivesse demissões. Estava presente também Guillermo Pereyra, secretário geral do sindicato dos petroleiros que era, também, subsecretário de Trabalho e deputado provincial do seu partido, o MPN. Eles nos aguardavam com uma armadilha: tinham organizado uma conferência de imprensa na Casa de Governo na qual queriam anunciar que não teria demissões e queriam aparecer junto a toda a Comissão Interna e o subsecretário de trabalho. Pereyra nos dizia: “galera, aproveitem o momento, agradeçam o governador pela gestão e anunciemos que não vai ter demissões, o que vai ser uma boa notícia para o seu pessoal, para a população e para a paz social da província”. Respondemos: “aqui tem outro problema, acaba de morrer um companheiro e as condições mudaram. Não só não queremos nem demissões nem suspensões, como estamos protestando por segurança e higiene, protestando para ter enfermeiros em todos os turnos”. Frente a isso Sobisch ficou ofendido, nos disse: “isso é exagero, vocês estão indo para o extremo”. Respondemos: “isto é o que trouxemos como mandato da assembleia”. No meio de uma situação agitada, Pereyra nos chamou num canto e disse: “vão aborrecer o governador, aqui temos que sair de forma conjunta vocês, o governador e eu, mostrando isso como um passo à frente, e vocês estão mudando as condições”. Nós apontamos que não estávamos mudando nada e que tinha morrido um companheiro. É óbvio que não teve conferência de imprensa. Mas quando saímos, já estavam convocados todos os meios, então toda a Comissão Interna sentou numa mesa, na qual veio Pereyra completamente frustrado. Ele anunciou que teve um acordo do governador com a empresa para que não tivesse demissões e nós pegamos o microfone para anunciar que, de tudo o que tínhamos votado na assembleia, não se garantia nem sequer a vida dos trabalhadores e aproveitamos essa tribuna para fazer conhecidas todas nossas demandas. Assim o conflito de Zanon, se instalou como um fato importante na província. Isso permitiu posteriormente começar a nos aproximar e nos coordenar com companheiros da ATEN [docentes NdT], servidores do estado, estudantes, e a esquerda. Até esse momento, para muitos, Zanon era um túmulo, e a partir desse momento fez se ouvir, como uma explosão. Tinha uma comissão interna e uma militância política previa que podia tentar transformar essa explosão numa batalha de classe, o que se constituiu como um fato fundacional dos ceramistas e da própria gestação de Zanon.

Enquanto a burocracia queria negociar demissões, suspensões e piores condições de trabalho, os operários encabeçados pela Comissão Interna, começamos a greve por tempo indeterminado. Foi uma greve histórica. Desde o primeiro dia de greve fomos resolvendo cada passo na assembleia. O piquete na porta da fábrica impedia a entrada e saída de caminhões. Assim conseguíamos paralisar a produção e a comercialização.  Aos poucos, íamos incorporando métodos de luta que pareciam ter sido esquecidos pelo movimento operário. Os trabalhadores também adotamos o método do piquete e corte de rua junto aos trabalhadores desempregados. À greve, o bloqueio do portão, os cortes de rua, adicionamos as atividades de difusão do conflito na comunidade e o fundo de greve. Esses elementos, que se deram de forma concentrada durante as primeiras greves, multiplicaram-se e se estenderam nos conflitos posteriores, adicionando também os cortes de pontes e de ruas do centro da cidade de Neuquén.

Na assembleia votamos a formação da Comissão de Mulheres, integrada pelas esposas, filhas, namoradas e irmãs dos trabalhadores, que cumpriu um papel importante nesse primeiro conflito. Elas foram um apoio moral e concreto, Garantiram junto com ativistas e estudantes os restaurantes populares e visitaram todos os meios de comunicação expressando, com sensibilidade, a situação de exploração que sofríamos os operários e nossas famílias a convicção com a que defendíamos nossos direitos. Estiveram lado a lado cada dia do conflito, arrecadando alimentos para o fundo de greve e participando das assembleias.

Foi nessa luta mais dura quando tivemos a primeira crise na Comissão Interna pelas pressões as que estávamos submetidos por parte do Ministério do Trabalho e da burocracia. Existia medo em muitos companheiros de que na Comissão Interna começássemos a nos dividir. Tivemos uma nova assembleia crucial na qual tínhamos que decidir se continuávamos com a luta ou levantávamos a greve. A patronal nos outorgava algumas das reivindicações de segurança em troca de negociarmos as suspensões. Previamente, teve uma reunião da Comissão Interna na que fizemos uma discussão muito dura sobretudo com San Martín (5). Ele defendia que tínhamos que negociar imediatamente as suspensões, e por outro lado, junto com Carlos Acuña (6),

defendemos que não podíamos negociar a morte de Daniel e que tínhamos condições para continuar lutando. Ficamos em minoria. A Comissão Interna se dividiu ao redor dessa posição. Decidimos – e essa questão é muito importante- levar as duas posições que tínhamos à assembleia. Quando nos levantamos para colocar cada uma das posições, pediram que eu expressasse a primeira posição. O pessoal aplaudiu muito. San Martín não quis nem sequer colocar sua posição, pois viu que ia perder. Esse método de expressar as posições divergentes ou as tendências somava-se assim ao debate democrático das assembleias e suas resoluções soberanas. Após instaurá-lo como método do sindicato quando mudamos os estatutos: democracia sindical com liberdade de tendências para todas as correntes ou indivíduos que defendam o sindicato.

É importante reivindicar esse método que usávamos quando na Interna não conseguíamos chegar num acordo: expressar as diferenças na assembleia, discutir abertamente e depois votar. Nem todos concordavam com isso. O método de San Martín era o oposto, era o da burocracia sindical (contrário às oposições e minorias), o de chegar em consenso sobre uma posição na Comissão Interna e leva-la como proposta, como uma só posição. Isso asfixia a democracia do conjunto dos trabalhadores; por isso, a democracia operária, aplicada pela primeira vez nessa ocasião, é a que defendemos até hoje. Esse método foi marcante no interior da fábrica e depois o levamos aos organismos de coordenação que impulsionamos.

Depois de oito dias de conflito e de intermináveis reuniões na Secretaria de Trabalho, na Casa de Governo, etc., a Subsecretaria de Trabalho decretou a conciliação obrigatória o que obrigava os trabalhadores a levantar a greve em seu momento mais forte e à empresa não lhe era exigido nada.  Mais uma vez, uma manobra da patronal e do Estado para desmobilizar os trabalhadores.

A burocracia do Montes apareceu pela primeira vez em todo o conflito. Foi o próprio secretário geral do SOECN (7)

quem trouxe a resolução à assembleia falando que tínhamos que aceitar ou seriamos declarados ilegais. A assembleia ficou muito tensa, porque o conflito tinha começado com muita força na base. Como uma explosão. A greve estava forte, tinha um ativismo combativo e a presença do secretário geral depois de oito dias de luta gerou mais indignação ainda. E como se isso fosse pouco, para trazer a conciliação obrigatória e provocar medo para levantar as medidas de força. Lembro que tiramos o papel das mãos dele e com muita indignação falei: “isto é um papel, aqui morreu um companheiro, e um papel não vai nos parar. Companheiros, estamos fortes, estamos bem, vamos por mais um dia”. Muitos companheiros duvidavam porque ainda tinha muito legalismo, muita confiança no Ministério do Trabalho, na justiça, até mesmo no sindicato. Um certo temor a todas as instituições, tinha ódio mas também muito medo. Teve alguns setores, pequenos, que queriam levantar a greve, entre eles, tinha companheiros da Comissão Interna que começavam a duvidar. Então insistimos em continuar mais um dia, sem deixar nos intimidar por um papel. Tínhamos que demonstrar que nós íamos por todas nossas demandas e que tinham que ser cumpridas. Começou um debate em que começaram falar muitos ativistas. Num clima muito fervilhante, com muitas sensações misturadas o que primou foi a fortaleça de um ativismo duro que inspirou confiança na maior parte dos companheiros e com uma maioria esmagadora votamos continuar. A assembleia explodiu num só grito: “unidade dos trabalhadores, e quem não gostar que se dane”.

No dia seguinte vencemos. A burocracia, a patronal e o governo tomaram nota de nossa decisão de desconhecer a conciliação obrigatória. Compreenderam nossa decisão de ir até o final e que, pelo momento, a relação de forças não estava do lado deles. Por isso, conseguimos todas nossas reivindicações, nem demissões nem suspensões. Não só mantivemos as condições laborais, mas obtivemos melhores condições de segurança e de higiene – uma ambulância e um médico permanente-. Incorporamos uma nova demanda a nosso programa: o controle operário sobre as medidas de segurança. Conseguimos também o pagamento de todos os dias de greve, algo completamente inédito nas lutas operárias dirigidas pela burocracia. Na reunião na Subsecretaria de Trabalho onde a empresa aceitou todas as nossas demandas, lembro que na hora de assinar a ata eu me recusei colocando que até que não votasse a assembleia não podíamos assinar nada. Foi um grande escândalo e não podiam acreditar, me acusavam de querer continuar o conflito. Mas nossa força era tal que não lhes restou outra que aceitar e esperar a resolução da assembleia. A subsecretaria enviou 2 olheiros para observar a assembleia que foi realizada no pátio da fábrica. Foi uma assembleia enorme onde lemos a proposta de ata que foi reafirmada pela assembleia e amplamente ovacionada, com cantos, lágrimas e abraços. Além do conquistado tínhamos que defender o método da assembleia.

“A greve dos 9 dias” acabou com um ato homenagem a Daniel Ferrás, junto com seus familiares, docentes e estudantes nas ruas do centro de Neuquén. Estávamos começando a dar os primeiros passos de um novo caminho de luta, confiando em nossas próprias forças para impor nossas demandas. Com as assembleias cotidianas, a Comissão de Mulheres, a greve e o piquete começamos a superar a prática da burocracia sindical e a tonificar nossos músculos.

Estivemos sempre rodeados do apoio de organizações solidárias como ATEN, de estudantes universitários e de partidos de esquerda. Naqueles dias a docente Silvia Rogetti se acidentou gravemente enquanto trabalhava em condições precárias numa escola em construção. Isso provocou mobilizações de milhares de trabalhadores e trabalhadoras da educação. Num desses atos cederam a palavra aos operários ceramistas que marcharam com uma coluna importante junto com a ATEN. Pela primeira vez tive que falar num ato frente a milhares de trabalhadores e trabalhadoras. Enquanto estava falando, avisam da morte de Silvia, o qual provocou uma enorme indignação que acabou com o escrache da funcionária sobischista Cielo Chrestía, responsável política pela morte de Silvia.

Os operários ceramistas nos transformávamos assim num fator ativo da vanguarda neuquina, forjando essa unidade nas ruas.

No próximo número do suplemento Ideias de Esquerda “Zanon: A recuperação do sindicato [Parte IV]”

1.- MPN (Movimento Popular Neuquino), partido liberal que governava a província de Neuquén.

2.- Na cerimonia inaugural, Luigi Zanon parabenizou o governo militar por “manter a Argentina segura para os investimentos” (citado em Wikipedia, ver https://pt.wikipedia.org/wiki/FaSinPat)

3.- Naquela época, os da Comissão Interna alugamos uma velha casa com campo de futebol, onde começamos a nos reunir regularmente.

4.- Refere-se a  Confederação Geral do Trabalho da Argentina (CGT) liderada por Hugo Moyano.

5.- Delegado da Chapa Marrom que chegou a ser secretário adjunto do primeiro mandato do Sindicato recuperado. Depois trairia na primeira greve como direção do SOECN e seria imediatamente expulso pela assembleia operária.

6.- Integrante da Comissão Interna e secretário de Imprensa do Sindicato.

7.- Sindicato de Operários e Empregados Ceramistas de Neuquén, filiado na CGT

Zanon

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