Gramsci, os Coletes Amarelos e as perspectivas para uma alternativa ao capitalismo neoliberal

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por Révolution Permanente

O diário digital Frances Revolução Permanente (parte da rede internacional de diários Esquerda Diario e La Izquierda Diario) lançou recentemente um suplemento teórico na perspectiva, acima tudo, de participar no debate estratégico contemporâneo. Com esta oportunidade reuniu-se o Stefano Palombarini, economista e sociólogo que publicou com Bruno Amable L’illusion du bloc bourgeois, e Juan Chingo, editorialista e membro do comitê de redação do Révolution Permanente, para um intercambio, realizado dia 27 de fevereiro passado, sobre o fenomeno dos Coletes Amarelos na França, que reproduzimos aqui em português.

Révolution Permanente : Talvez, a melhor maneira de abrir o debate é a partir do que poderia parecer um paradoxo na situação atual entre, por uma parte, a persistência e a determinação dos Coletes Amarelos, cujos efetivos inclusive estão em uma leve alta nestas ultimas semanas e, por outra, a impressão de que a conjuntura política é mais favorável hoje para Macron do que há algumas semanas. E o mais surpreendente, a priori, ver as ultimas pesquisas para as eleições européias, na qual Macron tem ao redor de 24%[1], ou seja, quase tanto como em 2017… Dando a impressão de que a crise política não se sente, eleitoralmente falando. Como podemos entender essa situação?

Stefano: É certo que, olhando superficialmente, se tem a impressão de que Macron não sofre as conseqüências eleitorais do que ocorre; mas na realidade seu poder está muito debilitado. Por exemplo, quando se pergunta aos franceses se estão satisfeitos com a política do presidente, mais de 70% responde negativamente. Por outra parte, o movimento dos coletes amarelos, não esta na origem das dificuldades que encontra Macron, é mais um sintoma do fato de que seu poder esta muito minoritário.

A boa noticia é que a oposição social se aglutina ao redor das temáticas econômicas (sistema fiscal, serviços públicos, poder aquisitivo) e não ao redor de temas nacionalistas ou através da busca de um inimigo imaginário, como pode ser o caso, por exemplo, da Italia. Isto não estava conseguindo ter entrada, penso, porque os numerosos responsáveis políticos, da extrema direita, mas não somente, esperavam canalizar o descontentamento social contra as minorias como os imigrantes e mulsumanos. Dito isso, não podemos cair num excesso de entusiasmo um pouco cego, e tomar os coletes amarelos pelo que realmente são, ou seja, um movimento que nasce da adesão a um projeto político. Tomando uma vez mais as pesquisas, no caso que houvesse uma lista eleitoral de coletes amarelo, observando como votariam as pessoas que apóiam o movimento, nos daríamos conta de que só 10% votariam a favor da lista dos coletes amarelos, enquanto que 35% elegeria a Rassemblement National [de Marine Le Pen], 15 % DLF [corrente soberanista de direita] ou LR [a direita tradicional], e 15 % França Insumisa.

Me parece que isto mostra bem que se trata de um movimento muito heterogenio: seu impacto nas pesquisas é débil, porque é um movimento muito forte quanto a expressão de um padecimento social que se opõe as política que se implementam, contudo não é o apoio a um projeto político particular. Este é um primeiro limite do movimento que vem, paradoxalmente, o que faz sua força, ou seja, sua capacidade de reunir todos que se opõe a Macron.

Juan: compartilho de muitas das coisas que disse. Insistiria, de toda forma, no fato de que a recuperação, ainda que parcial, durante os últimos atos, é algo significativo quando se pensa na campanha midiática levada adiante pelo governo nas últimass semanas, ao redor, sobretudo, da questão do antisemitismo. Por outro lado, ainda que o nervosismo político de Macron não seja o mesmo que em dezembro, quando se pensa que precisa tomar algumas desições políticas significativas nas próximas semanas e no momento do fil do Grande Debate, o fato da persistência ou não do movimento dos coletes amarelos vai influir na situação. Macron precisa acabar rapidamente com os coletes amarelos, e inclusive sujar a mobilização. É um objetivo imediato e estratégico, contudo pelo que vemos, não tem conseguido até agora.

Com respeito ao movimento como tal, compartilho também de sua analise. Para mim, o limite que coloca é preciso se relacionar com as coordenadas mais gerais nas que nasce o movimento. Deste ponto de vista, ainda quando o movimento faz nascer novos fenômenos e novas subjetividades em relação ao que estávamos acostumados nestas ultimas décadas, sobre tudo, os últimos movimentos sociais, tão pouco sai impune do que denomino a época da “restauração burguesa”, a saber, o processo imposto pelo neoliberalismo, que teve como conseguencia um retrocesso importante da classe trabalhadora desde o ponto de vista de sua relação de forças objetiva, contudo, também no plano ideológico e organizativo[2]..

Nos meus artigos tenho insistido nos elementos positivos e subjetivos, apesar de todos os limites do movimento, poruqe, para mim, representam uma contratendencia na situação internacional dominada até então por tensões comerciais e geopolíticas, ou por fenômenos políticos marcados a direita, como Bolsonaro no Brasil, o governo de Salviani na Italia e inclusive Trump nos EUA. Recordamos que durante as primeiras semanas de mobilização houve toda uma operação da extrema direita a nível internacional para apropriar-se do movimento. Por exempro, Stece Bannon no EUA, um veterano e conselho próximo do atual administrador da Casa Branca, dizia que os coletes amarelos eram da mesma base eleitoral de Trump, os “perdedores da globalização” e que era um exemplo. Entretanto, podemos observar que isto é totalmente diferente, quanto esses setores se expressão eleitoralmente em um populismo de direita como nos EUA, ou no terreno da luta de classe e nas ruas como no caso da França.

Da mesma forma, tenho dito muito do fato dos coletes amarelos, com sua determinação e questionamento ao legalismo que tanto pesou nas mobilizações dos diversos setores sociais na França nos últimos anos, possam atual como um electroshok sobre o movimento sindical e o movimento operário, onde a estratégia de pressão e de conciliação de classe levada adiante pelas direções sindicais, inclusive pelas mais “contenstatórias”, vem levado a uma série de derrotas frente o aumento dos ataques neoliberais, sobre tudo desde a crise de 2008-09. Até o momento, o impacto não é significativo, ainda quando podemos ver que existe um fenômeno de contaminação aqui e ali, contudo podem ter repercussões a médio e a longo prazo, e um cenário desse tipo não se pode descartar. Não acredito que o movimento, que é mais radical e profundo desde maio de 68, não deixe marcar na consciência do conjunto dos trabalhadores. Cedo ou tarde, vamos a colher seus frutos.

Stefano: Há, como dizem, um efeito de longo prazo das políticas neoliberais. É necessário apreciar que se trata de um fenômeno combinado e contraditório. Por um lado, os ataques neoliberais têm como efeito a precarização do trabalho, a fragmentação do processo de produção e, portanto, uma maior distancia subjetiva entre os trabalhadores; todos esses fatores impõem uma situação mais difícil para uma mobilização coletiva. Este processo implica na destruição de todas as organizações intermediárias, não simplesmente os sindicatos, mas também os partidos políticos na sua forma clássica. Macron é o tipo de presidente eleito que não se apóia nas organizações intermediárias e, ao contrario, as evita e as deslegitima na medida do possível. Globalmente então, o neoliberalismo provoca sem duvida alguma, um retrocesso na consciência de classe. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo, contribui não somente com a pauperização e a precarização dos assalariados pouco ou nada qualificados, mas também, e de maneira crescente, a das classes intermediarias, engendrando uma oposição social crescente. Este é o paradoxo, o que poderíamos chamar de ‘destino’ do neoliberalismo, que gera uma oposição crescente e, ao mesmo tempo, uma dificuldade para recuperar a consciência de classes. A reação que resulta desse paradoxo pode tomar formas muito diferentes: nos EUA, por exemplo, existe Trump e Sanders, que em certa medida emergem como reação as políticas neoliberal, contudo é uma reação que toma formas muito distintas.

Voltando aos coletes amarelos, um dos aspectos mais positivos é, efetivamente, que por uma estruturação política improvisada e espontânea, este tipo de movimento tem permitido que muitas pessoas que já não encontravam atratividade na política, voltem a ter o interesse pela discussão e pela mobilização, o que libera uma energia formidável. Se tenho uma posição critica, não é sobre o movimento, mas sobre os seus responsáveis políticos, sobre todos os da esquerda e, em particular, sobre a Francia Insumisa. Esta energia, que surge como oposição a Macron para não traduzir-se em puro protesto, precisa canalizar em um projeto político. Esperar que esse projeto surja expontaneamente dos coletes amarelos é um tanto ilusório, porque na ausência de uma estruturação política, a emergência de um projeto compartilhado pode demorar muito tempo, e ser arriscado, porque os padecimentos sociais e a oposição a Macron são um motor político que pode trabalhar em direções muito diversas. Entre os coletes amarelos há tentativas de estruturar-se políticamente, como em Commercy, por exemplo, mas de conjunto, creio que isto ficou à margem de um movimento social que , ao cabo de quatro meses de existência, se caracteriza essencialmente pela oposição a Macron. O problema não é os coletes amarelos não almejarem produzir diretamente seu próprio movimento político, já é em grande medida salvador que as pessoas se mobilizem para protestar, contudo é um pouco desolador ver que a esquerda política não somente apóia o movimento, o que claramente é muito importante, mas que fundindo-se com ele e esperando recuperar uma parte da energia que libera se esquerda, para recuperar Gramsci, que seu papel e de exercer uma capacidade de direção sobre o que passa. A esquerda deve exercer uma hegemonia sobre os coletes amarelos e não o contrário.

Juan: sobre as contradições do movimento, compartilho de tua visão. Desde o ponto de vista de sua composição, por exemplo, apesar da heterogeneidade que descreve, penso que o combate majoritário é desde os setores de trabalhadores pobres, empregados ou operários de pequenas empresas, ou setores que trabalham com cuidado de pessoas, o que explica a forte presença feminina, e junto delas, setores de trabalhadores “por contra própria” e a pequena patronal. Diria que se trata de uma mobilização majoritáriamente de trabalhadores, contudo os setores mais estratégicos ou mais concentrados do operariado estão ausentes, o que explica também que os métodos mais tradicionais da classe trabalhadora, como a greve, tenham dificuldade para se impor. Desde este ponto de vista, estou dividido nas minhas opiniões, porque em certa medida o movimento tem resultado em mais do que se esperava. Por outro lado, se observa bem que o movimento se choca com a dificuldade de estruturar-se ainda quando, como disse, houveram tentativas, contudo foram débeis em comparação com a tradição com que o movimento operário tem se organizado massivamente durante a história, como os sovietes na Russia, os cometes de fabrica do Bienno Rosso na Italia, ou as coordenadoras e cordões industriais no sul americano durante o ultimo ascenso operário dos anos 1970. Por outra parte, o fato de se entenderem como povo, e não como classe, tem conseqüências políticas, e não são menores.

O fato de o movimento ser heterogenio socialmente, não vejo que seja um problema em si. Tenho me oposto a todas as interpretações de extrema esquerda que tem buscado apoiar-se na presença de pequenos patrões e de trabalhadores por conta própria no movimento, para dizer que não são movimentos da classe trabalhadora e para justificar sua passividade política. Pelo contrário, creio que é impossível pensar em uma mobilização de massas e na construção de um bloco contra-heterogenio, que seja majoritário, sem pensar como criar alianças com as classes médias ou da pequena burguesia. Por outra parte, se olhamos para a história da luta de classes na França, veremos que não existe fenômenos de luta “puros”. Em qualquer país, e na França em particular, onde o peso dos setores pequeno burgueses é tão importante, não existe tal coisa. O problema, voltando ao movimento atual, é que os componentes operários, não numericamente se não programaticamente, não são hegemônicos, e não tem tentado criar um projeto e uma direção política. Creio que se os setores de trabalhadores mais concentrados tivessem estado mais presente no movimento, a questão da relação salarial, da contestação alem dos representantes políticos, mas também aos representantes do grande capital, estariam mais presentes.

Stefano: O que é intrigante para mim é que, apesar da forte mobilização 2016 contra a lei El Khomri, e que logo se ampliou pelos decretos Macron, nos documentos diversos e variados que expressam as reivindicações do Coletes Amarelos, o lugar ocupados por questões relacionadas com o direito do trabalho é praticamente nulo. Estamos diante de um importante paradoxo, penso eu. As políticas neoliberais que se referem à relação salarial são absolutamente centrais para a estratégia de Macron e são uma das principais causas dos sofrimentos sociais que afetam grande parte das classes populares e das classes médias. Mesmo que não seja agradável ouvir, devemos nos perguntar por que um movimento que expressa esses sofrimentos com tanta força e perseverança não levanta essas questões, que são questões decisivas. Minha hipótese é que há uma forte heterogeneidade dentro de um movimento que busca, como é natural, reunir em torno do que pode constituir sua unidade; e começando por aqui, não levante alguns problemas para não dividir. É claro que há um importante componente de trabalhadores no movimento, mas também pequenos empregadores, comerciantes, classes médias independentes que não são necessariamente assalariados. Acho que se questões como proteção contra demissões, estrutura de negociação, as cláusulas abusivas em contratos de aprendizagem, ou mesmo o papel da justiça do trabalho fossem postas em prática, não haveria unanimidade. Voltando à responsabilidade da esquerda, parece-me, precisamente, que o papel de um partido político não é apenas apoiar o movimento, mas também oferecer uma solução política e, depois, levantar as questões desagradáveis. Satisfazer-se de dizer “somos todos Coletes Amarelos” não é suficiente …

Juan: Como eu disse antes, eu não acho que a heterogeneidade social é um problema em si, porque eu acho que é inconcebível pensar um bloco contra-hegemônico na França sem pensar sobre a questão de alianças com setores da pequena burguesia pauperized, e até mesmo levantar algumas reivindicações para ganhar ou neutralizar alguns pequenos patrões. Na década de 1930 Trotsky destacou algumas reivindicações que poderiam permitir ao Partido Comunista e à classe trabalhadora que as classes médias aderiressem a seu programa: monopólio do comércio exterior ou nacionalização de grandes empresas, que poderiam facilitar a obtenção de crédito em condições favoráveis para pequena propriedade privada. Ele tentou jogar em um país imperialista central, a lógica com a qual Lenin pensou a questão na Rússia no início do século XX, em um país onde o campesinato era a maioria, e onde era inconcebível pensar a questão da revolução proletária sem levar em conta a questão das alianças com o campesinato pobre. A questão das alianças sempre esteve no centro das preocupações de construir um bloco hegemônico. O mais importante é saber aonde está o centro de gravidade do bloco hegemônico: é possível direcionar a setores pequeno-burgueses maneira populista, ou “esquerda populista”, que nos leva a ter, voluntariamente ou por omissão, uma política de conciliação de classes, e mais cedo ou mais tarde nos leva a derrotar. Ou podemos estabelecer uma aliança social em que as demandas dos trabalhadores não vão se diluir, e em que setores de trabalhadores se afirme, ao contrário, como uma força dirigente do bloco contra-hegemônico em formação. Se tomarmos o caso dos Coletes Amarelos e de alguns de seus representantes auto-nomeados, que se opõem a este, tentando manter uma unidade do povo contra toda a definição menos consensual em termos de classe.

Stefano: Eu acho que, como você disse, a construção de um bloco social dominante é tarefa de políticos, não dos Coletes Amarelos. De alguma forma há duas posições simétricas nos atores políticos que não estão a altura para mim: o primeiro consiste em dizer “eu tenho meu programa, sei que é bom, vote em mim”; com isso, um se condena a ser minoria. O extremo oposto seria dizer “dê-me a lista de coisas que você acha que são importantes e eu me tornarei porta-voz dela”. A construção de um bloco hegemônico implica partir das demandas e aspirações dos eleitores e buscar articulá-los. Essa articulação é feita em torno de um projeto político e ideológico que deve ser construído pelo político. E na medida em que um projeto consegue convencer será apoiado. É esta viagem de ida e volta que está no centro da política.

Juan: Eu tenho uma matiz sobre a maneira como você concebe a formação de um bloco hegemônico. Tenho a impressão de que você pensa talvez exclusivamente em termos eleitorais. Não quero negar a importância das eleições, mas não penso que a formação de um bloco hegemônico possa simplesmente ser reduzida à busca de uma maioria eleitoral. Era assim como pensavam as direções dos partidos operários reformistas dos 30 que justificaram a sua capitulação ao Partido Radical, que conseguiu impor suas políticas pró-imperialistas e visão institucional dentro da Frente Popular ainda que fosse uma minoria, pretendendo assim atrair as classes médias. A fragmentação política pode ser resolvida através de um projeto e de um programa político. Mas para convencer e para aderir o conjunto das classes subalternas é necessário demonstrar uma determinação e capacidade de ir até o fim, no caminho eleitoral, mas especialmente na luta de classes e nas relações de forças concretas. É neste sentido que a luta para que o movimento dos trabalhadores substitua suas direções atuais, tão complacentes com as instituições da Quinta República e do grande capital, por uma direção combativa e que se apoie na luta de classes, é uma condição sine qua non para realizar uma aliança operária e popular efetiva.

Stefano: De fato, não porque um candidato vença as eleições construiu um bloco hegemônico. Concordo com você e, por outro lado, é tudo o que quisemos mostrar com o nosso livro [4]: ​​apesar de sua vitória eleitoral, o macronismo não é hegemônico e não tem base majoritária. Na construção de um bloco, o momento eleitoral é um momento importante, mas é apenas um momento, e não resume de todo o processo em seu conjunto. A questão social, mas também a dimensão ideológica, participam da construção de uma hegemonia, isto é, na capacidade de propor uma visão de mundo que norteie as políticas públicas e suscite a adesão de importantes setores sociais. É claro que a situação econômica e social tem um impacto, mas as mediações ideológicas e políticas de combate são decisivas. O neoliberalismo, por exemplo, primeiro se afirmou como uma ideologia dominante, antes mesmo de se traduzir em políticas públicas. A mediação política é desempenhada em parte no campo da ideologia. A mediação talvez seja um termo enganador porque faz pensar na busca de um meio justo entre diferentes demandas. Agora, não basta responder um pouco a cada demanda para chegar a uma síntese. A mediação política, especialmente a que triunfa, é um processo mais complexo, que corresponde à elaboração de um projeto que precisa ter uma coerência interna, mas no qual os grupos portadores de esperanças diversificadas podem ser reconhecidos simultaneamente. Aqui também é uma operação hegemônica.

Juan: Há uma dimensão cultural necessária na luta pela hegemonia, concordo totalmente. Mas se tomarmos o exemplo do neoliberalismo, e mesmo que a dimensão ideológica tenha sido importante, a construção do bloco neoliberal teria sido incapaz de impor-se em vitórias objetivas e concretas: Reagan contra controladores de tráfego aéreo, Thatcher contra os mineiros em 1984, após a vitória imperialista nas Malvinas, a restauração capitalista nos países da antiga URSS, etc. Todas essas derrotas tiveram um papel decisivo. É nesse sentido que ele falou sobre o impacto da determinação e a relação concreta de forças na luta de classes na batalha pela construção de um bloco hegemônico.
Para terminar, gostaria de fazer uma pergunta. Você conhece particularmente bem a situação italiana, que é mais “avançada” do ponto de vista do aprofundamento da crise do bloco burguês. Se você comparar a situação italiana com o que você vive na França, você diria que eles estão prontos para ir em direção a que tipo de cenário aqui? Ou em que parte do filme estamos para você?

Stefano: Eu não acho que você possa transcrever mecanicamente o que acontece em um país para outro quando o contexto e a história dos países são muito diferentes. Pelo contrário, podemos tentar extrair sinais do que acontece na Itália, com o objetivo de emitir algumas hipóteses sobre a evolução da situação francesa. Assim, a primeira coisa a enfatizar é que o cenário italiano é o de uma crise política sempre aberta e, portanto, de uma situação que ainda pode ter muitas mudanças. Na Itália, como na França, com diferentes modalidades concretas, o surgimento do bloco burguês foi uma reação à crise dos blocos de direita e esquerda. Depois que o bloco burguês se mostrou incapaz de resolver essa crise de hegemonia, houve enormes oscilações do ponto de vista eleitoral. Nas últimas eleições europeias, por exemplo, o Partido Democrata obteve cerca de 41%, agora as pesquisas dão 17%. Da mesma forma, o M5S, que não existia há alguns anos, chegou à liderança das legislaturas no ano passado, mas parece estar em fase descendente hoje. Por seu turno, a Liga passou de 4% em 2013 para 17% em 2018, e agora é atribuído 35% nas pesquisas. Sempre, após a vitória de Renzi e do Partido Democrata nas eleições europeias, em seguida, a afirmação de M5S e hoje, com a Liga, se tende a pensar que a crise acabou e impôs uma nova hegemonia social; mas devemos ser muito cautelosos, porque na realidade o que foi aberto com a crise dos tradicionais blocos de esquerda e direita é uma sequência de grande instabilidade política que provavelmente não terminou.

Na França, a estabilidade do apoio à Macron, que está praticamente no mesmo patamar de 2017, é enganosa, na minha opinião: porque acredito que a coalizão social que apóia o presidente não é a mesma coalizão que permitiu a ele ascender ao poder. Na eleição presidencial, foi o bloco burguês que permitiu a Macron vencer, ou seja, uma coalizão de classes burguesas que veio da direita e da esquerda e que Macron articulou um projeto no qual essas classes puderam se reconectar, uma mistura entre uma política neoliberal e um componente “progressista” do ponto de vista social, baseado em um forte compromisso pró-europeu.

Hoje eu acho que falta os componentes sociais que vieram do antigo bloco esquerdo. Macron tomou consciência da fraqueza do bloco burguês e apostou em aproveitar a crise dos republicanos para ir em direção à constituição de um bloco de direita mais tradicional. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, parece-me que suas frases depreciativas, por exemplo, correspondem mais a uma estratégia política do que a um traço de caráter: esquecer completamente seu perfil progressivo, no qual seu conteúdo hipócrita e enganoso pode ser claramente medido, e endireitando seu discurso, conta com ganhar setores da velha direita republicana em perigo. Mas o que é difícil para ele é que o próprio bloco direitista que está tentando se recompor também está em crise … Ao mesmo tempo, ao contrário, não há outro bloco com uma vocação hegemônica delineada.
Aqueles que sonham com um bloco “anti-burguês” que, de alguma forma exatamente o oposto ao bloco burguês, isto é, que seria baseada em uma superação do racha esquerda-direita para ligar a todas as classes populares, sem resolver os problemas crônicos como os de relação salarial, devem extrair lições das situações que deram origem ao Podemos na Espanha ou ao M5S na Itália, que foram, pelo menos inicialmente, tentativas nesse sentido. O que você vê é que quando essas formações deixaram de ser simplesmente movimentos de protesto e entraram em uma perspectiva de governo, o fosso esquerda-direita foi reativado, isto é, eles foram forçados a escolher. Uma escolha de signo oposto em Podemos e no M5S, mas uma escolha que está novamente dentro do velho racha esquerdo-direita. Estas experiências diferentes mostram muito claramente que as alianças sociais construídas “além da esquerda e da direita” não resististem a experiência do lado do governo ou burguesa bloco ou do lado do bloco anti-burguesa. É necessário perguntar então se a idéia de superar as velhas rachaduras não é uma solução fácil diante da crise dos blocos tradicionais.

Da minha parte, acredito que não haverá solução para essa crise histórica sem bater de frente com as fraturas dos blocos tradicionais, penso eu, em particular, à esquerda. É necessário verificar a profundidade dessas fraturas, não para afirmar que é hora de avançar para outra coisa, outra coisa destinada a conduzir a impasses, mas tentar recompô-los. Não é um processo simples ou rápido, mas a construção de uma hegemonia radicalmente alternativa ao neoliberalismo passa por isso.
[1] Pode-se consultar os resultados da pesquisa de opinião aquí.
[2] Emilio Albamonte y Matias Maiello, En los límites de la Restauración burguesa.
[3] Para se aprofundar nessa questão ver Juan Chingo , Um “1905 à francesa” e a crise histórica do sindicalismo.
[4] Bruno Amable e Stefano Palombarini, L’Illusion du bloc bourgeois.

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