Trotski, Frente Única operária e o programa da Assembleia Constituinte

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Ilustração: Romualdo Nicola

 

ANDRÉ AUGUSTO

Número 1, maio 2017

 

A inédita extensão dos regimes democrático-burgueses nas últimas décadas, inclusive em países da periferia capitalista, habituou distintas correntes de pensamento à idéia de que isto seria o “limite” da liberdade a que se poderia aspirar. Essa percepção ultrapassou os debates entre correntes teóricas, e foi assumido por um amplo espectro de massas. Um triunfo ideológico da burguesia que permanece em meio ao fracasso ou debilitamento de tantos empreendimentos da classe dominante desde a crise de 2008.

A tradição marxista revolucionária, entretanto, sempre orientou sua atuação, quanto a este tipo de regime político, entre dois pólos: a defesa mais irrestrita de todos os direitos democráticos contra a classe dominante (que sempre busca arrancá-los, quando a relação de forças permite), ao mesmo tempo do combate implacável à “charlatanice democrática”, ou seja, às inúmeras falsidades de uma democracia de exploradores contra os explorados e oprimidos.

Entretanto, a adaptação de boa parte da esquerda a esse sentimento estendido de que a democracia capitalista é o último estágio do desenvolvimento político da humanidade a deixou perplexa e desarmada para responder a uma situação em que esses regimes democráticos degradados entram em crise (ou mais precisamente “crise orgânica”, conceito do marxista italiano Antonio Gramsci, que debatemos neste número da revista).

Por isso, os revolucionários marxistas “tem muito a dizer” sobre o tema, já que apenas uma posição de classe independente pode impedir que a crise dos regimes democrático-burgueses não resultem num fortalecimento ainda maior das aberrações da extrema-direita “antiestablishment” como Le Pen na França, ou Bolsonaro no Brasil (que apesar da retórica anti-sistema, servem-se desse sistema político e são agentes agressivos do capitalismo em crise).

Neste caminho, a consigna da Assembleia Constituinte, como consigna democrático-radical – que implica combate – é um grande “legado abandonado” por parte da esquerda, num momento em que é especialmente importante para a situação brasileira.

Trotski e a Constituinte

Leon Trotski foi o teórico e dirigente revolucionário que no século XX melhor desenvolveu e situou estas consignas democrático-radicais em sua dinâmica concreta: deu a elas uma articulação estratégica indissolúvel com a teoria da revolução permanente, devendo conduzir à construção de forças materiais para a destruição do poder burguês.

Ao contrário do que se pensa comumente, o dirigente do Exército Vermelho lançou mão desta política em inúmeros países, tão diferentes entre si em sua estrutura sócio-política como China e Índia, França e Inglaterra. Ou seja, em formações nacionais muito mais atrasadas que a Rússia (“Orientais”), assim como às mais avançadas democracias parlamentares do Ocidente.

O emprego da consigna de Assembleia Constituinte, como parte de um sistema combinado de medidas que levaria em dinâmica ao fortalecimento do programa revolucionário nas massas trabalhadoras, estava profundamente ligada aos debates estratégicos dos quatro primeiros congressos da III Internacional, que a partir de 1921 sintetizaram a tarefa dos comunistas no lema “para a conquista do poder através da prévia conquista das massas”.

De fato, grande parte da esquerda ignora esta utilização estratégica das consignas democrático-radicais. Desfigurando o papel que cumprem como parte do programa transicional para a ditadura do proletariado – ou seja, a mais ampla e irrestrita democracia para as massas trabalhadoras – certas correntes transformaram, por um lado, o programa democrático-radical em um fim em si mesmo, substituindo a “ditadura do proletariado” pela conquista de uma suposta “democracia (burguesa) até o final”. Por outro lado, a reação oposta foi negar taxativamente a importância das consignas democrático-radicais, por considerá-las em si mesmas “democratizantes”, em uma caricatura do pensamento de Trotski que nega o papel fundamental destas para erodir a hegemonia burguesa, como parte da luta pela revolução socialista.

Curiosamente, aquelas correntes que se reivindicam trotskistas, e que hoje no Brasil se opõem à consigna da Assembléia Constituinte Livre e Soberana contra a Constituição de 1988, propõem em seu lugar a bandeira de “eleições gerais”, que não só atende aos interesses de revitalização da hegemonia burguesa, mas mais do que nunca está francamente à serviço da volta de Lula em 2018 (com sua estratégia de conciliação petista).

A articulação da consigna proposta por Trotski partia de outros pressupostos. Via sua importância em dois aspectos centrais que se repetem em suas elaborações na década de 30: 1) intervir no despertar político de setores de massas, abrangendo as camadas mais exploradas e oprimidas que em tempos “normais” estão excluídas da política pelos próprios instrumentos institucionais do Estado burguês; 2) a necessidade de aproveitar este despertar de setores de massas para lutar pela conquista do conjunto da classe operária, reunindo-a ao redor de um programa comunista.

Tarefas como a abolição do latifúndio no Brasil e a partilha da terra a todos que trabalham nela; a ruptura dos acordos de submissão com o imperialismo, começando pela anulação do pagamento da dívida pública; a estatização das principais empresas de energéticas e de infra-estrutura nacionais, como a Petrobrás, sob administração democrática dos trabalhadores; estatização do sistema financeiro e a criação de um banco estatal único administrado pelos trabalhadores e pelo povo; a estatização do sistema financeiro, com a criação de um banco estatal único administrado pelos trabalhadores e pelo povo; o fim dos privilégios políticos, com a elegibilidade de todos os políticos e juízes, sua revogabilidade em todos os níveis, com o mesmo salário médio de um trabalhador. Estas tarefas – dizíamos – compõem o caráter anticapitalista de uma nova Constituinte que defendemos, e ajuda a que na experiência real os trabalhadores concluam a necessidade de um governo próprio de ruptura com o capitalismo.

Eram ainda especialmente úteis, quando articuladas ao programa revolucionário, para tarefas tão importantes quanto assentar as bases de um partido revolucionário (quando este ainda não existia), e mesmo a luta por conquistar a maioria dos trabalhadores nos organismos de autodeterminação de massas (sovietes, ou conselhos operários), como expõe Trotski nos trabalhos que dedicou à China em 1931.

A experiência política que confere aos trabalhadores não é menor, inclusive em processos revolucionários. No curso de 1917, os bolcheviques foram os maiores defensores da Assembléia Constituinte. Se tivesse sido convocada no início do ano, teria obrigado as classes dominantes a colocar todas as suas cartas sobre a mesa e o papel traidor dos conciliadores teria sido explicitado. O bloco bolchevique da Assembléia Constituinte teria conquistado grande popularidade e isso lhe permitiria ganhar a maioria dos sovietes. Em tais circunstâncias, ao contrário de atrasar a revolução proletária, a teria antecipado. Assim se expressava Trotski retrospectivamente sobre a Rússia de 1917:

Se a Segunda Revolução ocorresse em julho ou agosto, e não em outubro, o exército estaria menos exausto e debilitado na frente e a paz com os Hohenzollern [governo alemão], certamente, teria sido um pouco mais favorável. Ainda, supondo que a Assembléia Constituinte não antecipasse a revolução proletária um dia sequer, a escola de parlamentarismo revolucionário teria deixado sua marca no nível político das massas, facilitando, assim, nossas tarefas posteriores à Revolução de Outubro.

Mas um novo processo constituinte que ataque verdadeiramente os capitalistas não “cai do céu”: como dissemos, vem do combate. Por quais meios se constituiriam os “volumes necessários de força material”, ou seja, de atividade real de amplos setores da classe trabalhadora e do povo, para que a utilização revolucionária desta política passasse do “plano estratégico” à aplicação real?

Nunca é demais resgatar do arsenal teórico marxista um de seus mais profundos tesouros: a frente única operária.

A tática da Frente Única operária

Após a derrota da Revolução italiana em 1920 e das Jornadas de Março na Alemanha em 1921, fecha-se o período da “primeira onda expansiva” da revolução russa de 1917. A III Internacional, dirigida por Lênin e Trotski, passou por um período de “despertar de ilusões” no que se referia à crença de que, depois da vitória russa, a revolução “faria sua marcha triunfal” de maneira quase automática pela Europa.

Estas reflexões, especialmente nos terceiro e quarto congressos da Internacional Comunista, foram verdadeiras “escolas superiores de estratégia revolucionária”.

Um dos problemas centrais que se abordou na III Internacional de então foi como os comunistas podiam conquistar influência e ir preparando os requisitos subjetivos (um partido comunista com influência de massas e organismos operários que tendessem a disputar o poder ao Estado burguês) para chegar o melhor preparados possível a uma situação revolucionária.

Neste contexto, de estabilização relativa do capitalismo após a derrota da onda revolucionária oriunda da Primeira Guerra Mundial, surge em 1921 a discussão da chamada “tática da frente única operária”, primeiramente em sua modalidade defensiva (mas que não se detinha aí). Seus antecedentes estão na Alemanha de finais de 1920 e princípios de 1921 (na luta exitosa contra o golpe militar do general Kapp), mas principalmente na política bolchevique durante a revolução russa para derrotar o golpe contrarrevolucionário do general czarista Kornilov, e a posterior preparação direta para a insurreição armada de Outubro.

A tática da frente única operária consistia, em princípio, na proposta dos comunistas a todas as organizações operárias, tanto os sindicatos como os partidos políticos (inclusive as organizações reformistas, como a socialdemocracia), de impulsionar a resistência comum contra os ataques do capital. Em seu aspecto defensivo, vinculava-se à luta por demandas elementares econômicas e democráticas. Mas esta tática não se reduzia meramente à articulação da defesa: na medida em que conseguisse seus objetivos defensivos, desempenhava um papel fundamental na articulação do contra-ataque dos trabalhadores para a conquista do poder, momento em que primariam suas funções ofensivas.

Portanto, a tática da Frente Única operária foi concebida pelos revolucionários para a intervenção de massas na luta de classes. Seu terreno é o da ação extraparlamentar. Esta foi sua origem e significado para a III Internacional e também para Trotski, que a defendia sempre em íntima conexão com a mais clara delimitação política com as organizações reformistas (políticas e sindicais) do movimento operário. Sua síntese era “golpear juntos, marchar separados”.

Nenhuma plataforma comum com a socialdemocracia ou os dirigentes dos sindicatos alemães, nenhuma publicação, nenhuma bandeira, nenhum cartaz em comum! Golpear juntos, marchar separados! Colocar-se em acordo unicamente sobre como golpear, quem golpear e quando golpear” (“Por uma frente única operária contra o fascismo”, 1931).

Tomando a definição de Emilio Albamonte e Matías Maiello, em “Gramsci, Trotski e a democracia capitalista” , “Podemos dizer que a frente única constitui uma tática complexa que tem um aspecto de manobra, outro tático, e outro estratégico. Por um lado, implica acordos – produto de determinada relação de forças entre as tendências – com reformistas como aliados circunstanciais (aspecto de manobra), com o objetivo de unificar as fileiras operárias para lutas parciais em comum (aspecto tático). E por outro lado, como objetivo principal, a ampliação da influência dos partidos revolucionários como produto da experiência em comum (ou do seu rechaço pelas direções reformistas), no sentido de reduzir as ‘reservas estratégicas’ para a tomada do poder (aspecto estratégico)”.

Toda a concepção desta poderosa arma do arsenal estratégico do marxismo revolucionário encarava a tática da frente única como a unidade entre seus aspectos defensivo e ofensivo. Isto seria desenvolvido no quarto Congresso da Internacional, em 1922, na tática de “governo operário”. Esta política, fruto da articulação entre defesa e ataque da tática da frente única, não era entendida como triunfo eleitoral de um governo “de esquerda” que se propusesse a administração do capitalismo (como vimos na tragédia do Syriza na Grécia), e sim como um chamado dos comunistas às organizações operárias (especialmente à ala esquerda da socialdemocracia) nos momentos de desagregação do poder estatal e ascenso revolucionário para a composição de um governo cujas principais atribuições fossem o desarmamento da burguesia, o armamento do proletariado e a preparação imediata da insurreição.

Nas fileiras comunistas houve um grande debate sobre a frente única operária, que incluiu uma forte oposição (por parte de setores ultra-esquerdistas da Alemanha, Holanda e outras seções da IC). Alguns se perguntavam: que sentido tinha os comunistas terem se separado da socialdemocracia, formando um partido próprio e combatendo-a, se agora havia que voltar a propor acordos a ela?

Em 1922, em seu documento “Teses sobre a Frente Única”, Trotski esclarece a dialética intrínseca à tática:

A tarefa do partido comunista é de dirigir a revolução proletária. A fim de orientar o proletariado á conquista direta do poder, o partido comunista deve basear-se na maioria esmagadora da classe trabalhadora. Enquanto o partido não conte com essa maioria, deve lutar para consegui-la. O partido só pode alcançar este objetivo se for uma organização absolutamente independente, com um programa claro. Eis porque deve romper ideológica e organizativamente com os reformistas e centristas que não lutam pela revolução proletária”.

Em seguida dessa definição – que foi a principal conclusão estratégica do III Congresso em 1921, sintetizada na idéia “para a conquista do poder, através da prévia conquista das massas” – Trotski segue,

Mas é bem evidente que a vida de classe do proletariado não se detém durante esse período preparatório da revolução. O choque com os industriais, a burguesia e o aparato de Estado, segue seu curso. Nestes choques, que envolvem os interesses do conjunto do proletariado, de sua maioria, deste ou outro setor, as massas operárias sentem a necessidade da unidade na ação: de unidade para resistir o ataque do capitalismo, ou de unidade para tomar a ofensiva contra ele. Todo partido que se oponha a esta necessidade do proletariado de unidade na ação será condenado infalivelmente pelos trabalhadores.

Conclui que,

O problema da Frente Única – apesar do fato de que é inevitável uma cisão nesta época entre as organizações políticas da classe trabalhadora – surge da urgente necessidade de assegurar à classe operária a possibilidade de uma frente única na luta contra o capitalismo.

Portanto, a tarefa estratégica seguia sendo a superação das organizações reformistas e centristas tradicionais de massas que dirigiam os trabalhadores, para o qual era necessária a independência organizativa. Entretanto, isto não se podia conseguir apenas pela propaganda e denúncia. Era necessário que o movimento operário fizesse uma experiência profunda com seus dirigentes tradicionais: o meio privilegiado para isso era obrigar estas direções, aos olhos das massas, a responder publicamente o chamado para ação comum.

Caso seja obrigado pelas circunstâncias a aceitá-lo, a ação comum facilitaria a unificação das fileiras operárias, a confiança dos trabalhadores em suas próprias forças e o aumento da influência dos revolucionários. Em caso de negativa destas direções, ficaria claro “de que material eram feitos” e igualmente os revolucionários emergiriam politicamente como os mais interessados em lutar nas melhores condições e os mais aptos para o combate aos olhos dos trabalhadores.

Os órgãos da frente única eram múltiplos. Iam desde a construção de organismos de ação nos sindicatos contra a ofensiva dos capitalistas, a construção de organismos para coordenar as greves, a organização de milícias operárias para enfrentar as organizações repressivas estatais e para-estatais da burguesia, a organização de comissões de controles de preço e luta contra a falta de abastecimento, a construção de comitês de fábrica para exercer o controle operário. Todas estas constituem órgãos da frente única em sua modalidade defensiva.

Em uma situação revolucionária, ao conduzir uma série de batalhas defensivas parciais vitoriosas que freiam a burguesia e dão confiança aos trabalhadores, abre-se o caminho para as formas ofensivas da frente única, como os conselhos operários (sovietes). A exclusiva aparição destes organismos já evidencia uma profunda crise na autoridade do poder burguês, na medida em que podem ser (com uma direção revolucionária) organismos de luta pelo poder que se enfrentam ao domínio dos capitalistas.

Estrategicamente a chave dessa articulação era que permitia estabelecer uma ponte entre a consciência reformista das massas operárias e a preparação das condições para a ofensiva (insurreição). Não somente porque tornavam possível o avanço da Frente Única Operária para enfrentar a burguesia (aspecto tático) mas porque através dessa ação comum na luta de classes possibilitavam aos revolucionários a conquista da maioria para o “comunismo integral” (aspecto estratégico).

Frente Única como dinamizadora das consignas democrático-radicais

Voltando à pergunta que deixamos no primeiro tópico, a tática da frente única operária – que como tantas heranças da estratégia marxista, foi abandonada pela esquerda – pode desenvolver estes “volumes de força” material, capazes de impor a vontade ao inimigo (por exemplo, a Assembleia Constituinte); dialeticamente, as próprias consignas democrático-radicais atuam como dinamizadores no desenvolvimento da tática da frente única operária, pois dão um objetivo pelo qual lutar em comum.

Por outro lado, como objetivo principal, permite a ampliação da influência do partido revolucionário, como produto da experiência comum (ou de seu rechaço pelas direções oficiais), com o fim de conquistar a maioria da classe operária para a luta pelo poder (aspecto estratégico, ofensivo).

Aplicando concretamente ao Brasil: quando exigimos às centrais sindicais, como a CUT e a CTB, que unifiquem as fileiras operárias e encabecem um plano de luta que prepare uma greve geral contra os ataques do governo golpista de Temer, temos estes dois objetivos (tático e estratégico) em vista. Fortalecer a luta comum à ofensiva da burguesia, e ao mesmo tempo debilitar o controle reacionário que a burocracia sindical (“força material” da hegemonia burguesa no movimento operário) exerce sobre a classe trabalhadora, fortalecendo os revolucionários.

A auto-organização de massas e seus organismos – comitês de ação por local de trabalho, comitês de fábrica com delegados eleitos, inclusive seus organismos para autodefesa contra os ataques das bandas paramilitares da burguesia – é inseparável da exigência às direções tradicionais de que unifiquem as fileiras operárias. De fato, é com esta combinação entre ações audazes, auto-organização e autodefesa que se pode obrigar as direções burocráticas a não virar as costas à exigência de unificação real dos trabalhadores. Trata-se com isso de que os trabalhadores não aguardem passivamente a provável traição das burocracias, e tome sua luta em suas próprias mãos.

Essa política combinada, de frente única operária para dinamizar as consignas democrático radicais como a de uma Assembleia Constituinte, de característica anticapitalista, é a que pode erguer os trabalhadores como sujeitos políticos hegemônicos e desenvolver os “volumes de força” necessários para derrotar os capitalistas.

 

 

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1 comment

  1. Gustavo Menon 16 maio, 2017 at 01:26 Responder

    Mas pq os trotskistas são contra a proposta da assembléia constituinte na Venezuela? Sinceramente, inexplicável…

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