Caecus – o documento-cênico de “um grito calado que precisava sair”

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Por Fernando Pardal

Está em cartaz na SP Escola de Teatro a peça Caecus – um documento cênico, da Cia. Los Puercos. Segundo a própria companhia, é “o reflexo de um passado revisitado e de um futuro temeroso”. Como diz a atriz do grupo no programa, “Desde o início foi como um desabafo, um grito calado que precisava sair”.

Creio que o primeiro a ser dito sobre a obra da Cia. Los Puercos é a luta dos seus próprios membros para manter acesa a chama de uma arte que está na contramão de qualquer futuro temeroso. Com seus próprios recursos, escassos e conquistados pelo esforço dos próprios artistas, Caecus não recebe um centavo de financiamento de empresários, governos, leis de fomento. O cobertor cada vez mais curto de recursos financeiros que os governos dos capitalistas – nesse momento Covas, Doria e Bolsonaro – cortam dos trabalhadores, da cultura, dos recursos públicos, para manter lucros milionários, evidentemente não está disponível para o jovem grupo teatral. O que não deixa de ser totalmente coerente, pois é contra esse estado de coisas que está colocado Caecus.

                O grupo se funda na crua e pungente tradição do teatro documentário. Uma tradição que não surgiu para entreter e ornar, mas para combater, esclarecer, colocar-se do lado da luta pelo direito a uma vida digna; mais especificamente, surgiu para ser uma arma na mão dos trabalhadores em sua luta contra o capitalismo. Sua filosofia é a de um teatro fundado no fato, o documento como suporte para o ato dramático que toma partido diante da vida e de uma sociedade fraturada em classes, em explorados e exploradores, oprimidos e opressores. O teatro documentário, na radicalização que era proposta por Erwin Piscator, se colocava inclusive a perspectiva de riscar a palavra “arte” de seu programa para se colocar o objetivo de ser uma arma na luta de classes.

Caecus é um documento cênico que fala do Brasil assolado pela extrema-direita, e retoma não apenas os projetos de barbárie de Bolsonaro e toda a corja que o cerca, como também liga os pontos históricos que mostram que há raízes, profundas, mas nem tão ocultas, em toda a ideologia reacionária e podre que ocupa os postos governamentais. O que os documentos históricos, associados aos atuais, conseguem demonstrar com nitidez, é que não se trata de um mero projeto ideológico da direita, mas de questões que fazem parte da própria estrutura social capitalista – e por isso se perpetuam na história de nosso país.

Quatro aspectos fundamentais político-ideológicos desse setor são eleitos para tomar a cena: o machismo, a LGBTfobia, a medicina psiquiátrica e o militarismo ditatorial. No trabalho documental-cênico de tal teatro, a arte fundamental dos que procuram colocar essas questões em cena está na construção narrativa que é capaz de tomar fragmentos documentais e costurá-los em um todo coerente, numa narrativa que aponte para sentidos que vão para além do factual, do específico, e mostrem que por trás de cada barbárie privada existe uma ampla trama social, política, econômica e historicamente situada que lhe dá sustentação, justificativa e a garantia da perpetuação e da impunidade.

Por isso, a Los Puercos acerta em cheio ao receber os espectadores com uma das cenas mais representativas atualmente de todo o avanço político-ideológico contra nossos direitos: a votação na Câmara dos Deputados da consolidação do golpe institucional que colocou Temer na presidência. A projeção de filmes e imagens, ao longo da peça, cumpre o papel decisivo de amarrar as cenas particulares mostradas pelos atores ao seu contexto sócio-histórico, atuando assim como o elemento “épico”, enlaçando em uma narrativa coesa os diversos elementos apresentados. Partindo da cena bizarra do impeachment – com suas declarações de voto que nos pareceriam inverossímeis se não as tivéssemos visto diante de nossos olhos – a Los Puercos emoldura perfeitamente todo o cortejo de monstruosidades que fará percorrer pelo palco dali até o final do espetáculo. Com a cena ao fundo, os atores passam uma bola entre si, representando o velho jogo político da classe dominante, do qual o impeachment não foi mais do que uma jogada combinada “com supremo e com tudo”.

Os deputados, suas infindáveis homenagens a deus, às forças armadas, à pátria, às suas próprias famílias – em nome das quais votavam o sequestro do voto de milhões de brasileiros – são os porta-vozes exemplares dos valores que entram em cena.

O primeiro deles é o sólido pilar do patriarcado, hoje usado para perpetuar o capitalismo. Os documentos eleitos pela Los Puercos se combinam para mostrar que os casos mais escandalosos – ou talvez apenas os mais explícitos – de barbárie machista, como os feminicídios, são a expressão mais aguda de uma mentalidade que perpassa o trivial “humor”, a publicidade, os hábitos cotidianos. O trabalho doméstico se complementa com a violência; as propagandas de cerveja com as declarações públicas como as de Bolsonaro sobre o estupro.

A cena sobre a LGBTfobia traz um personagem, Gabriel, que nos relata todo o martírio de cada pequeno elemento da vida cotidiana de uma travesti. Desde a família e o emprego, às agressões e o medo cotidiano de sair na rua. Todo o peso de um mundo que vê como “aberração” um ser humano por causa de seus trajes, seus gostos, sua identidade. Gabriel pede a um espectador que se coloque no lugar dele, se imaginando chegando ao trabalho maquiado, de salto. Pede, assim, que cada um do público pense em como seria enfrentar o mundo a cada dia pelo simples direito de sua identidade, caso fosse como ele; mais do que mostrar a quem assiste o absurdo dessa perseguição a um ser humano, o diálogo do personagem com o público cumpre o papel de quebrar a passividade de um “espectador”, mostrando que somos todos sujeitos em uma história de opressão que se repete a cada dia, em cada local – e que precisamos escolher como nossas ações contribuem para que essa situação se perpetue ou não. A projeção das escandalosas manchetes de assassinatos de travestis surgem na tela nos lembrando que por trás de cada uma delas há um ou uma “Gabriel”, que lutou a cada dia pelo direito de viver. E que no Brasil, o país que mais mata pessoas trans no mundo, essa tragédia social está por toda a parte.

As “aberrações” em uma sociedade como a nossa são pessoas como Gabriel, mas são muitas outras. Desajustados de toda ordem, passando por alcóolatras, mendigos, mães solteiras, esquizofrênicos: trazendo para nós a memória do episódio conhecido como o “holocausto brasileiro”, com a história de 60 mil mortos, entre muitos outros torturados, humilhados, desumanizados, Caecus fala dos manicômios, da memória do hospital colônia de Barbacena. Os dados chocantes são jogados no público. Entre eles, o comércio de quase dois mil cadáveres para faculdades de medicina ao longo de dez anos, que a Los Puercos escancara e utiliza para demonstrar a hipocrisia da instituição médica ao nos lembrar que a ideologia oficial os justificaria como necessários para “o avanço da ciência”. A brutalidade de pensar que os mortos e torturados tinham sua própria carne transformada em mercadoria depois de terem sido eles mesmos massacrados por essa medicina é de revirar o estômago de qualquer um. E um lembrete de que não é por puro sadismo, mas também porque tudo – inclusive a tortura psiquiátrica – é uma mercadoria em potencial, que estas práticas existem.

E, como na cena de Gabriel, a Los Puercos combina os documentos históricos massacrantes com um rosto e uma história individual no palco, para lembrar que por trás dessa barbárie social que só os documentos e os dados são capazes de mostrar em sua grandeza, existe uma inapreensível e imensurável dor de cada indivíduo que foi submetido a esse sistema criminoso. Tantas dores que jamais viraram documentos, mas que eles querem recriar dramaticamente para que essa dor seja mais pungente, latente, concreta. É essa combinação poderosa entre o documento e a dramatização que confere a potência de Caecus e do teatro-documentário.

Chega-se então ao tema do militarismo, com a projeção das cenas de mobilizações de rua recentes da direita, os pedidos em nome “da família brasileira” por uma intervenção militar; em minha cabeça, ao ler os dizeres que, como os votos dos deputados do início da peça, pareceriam invenções desvairadas, me pergunto pelo tipo de reviravolta que vai tornando isso normal, bem como ministros terraplanistas ou que advogam coisas em nome de delírios religiosos. A aproximação evidente das cenas das marchas de 2015-2016 com as marchas da família com deus pré-golpe de 1964 são colocadas na tela, antes que mais uma vez a companhia eleja um caso particular para mostrar o que significava, no plano individual, a monstruosidade histórica expressa pelos documentos.

O depoimento de uma torturada é combinado com representações dramáticas da própria tortura. O afogamento, os choques. Entre o “dever” dos torturadores e o sadismo particular de alguns deles que se deleitavam ao torturar, o relato nos coloca diante não apenas da nauseante prática da tortura, mas do abominável discurso que quer justificá-la. O discurso que ouvimos da boca de Bolsonaro, que dedicou seu próprio voto favorável ao golpe à memória de um infame torturador, Brilhante Ustra.

No depoimento da jornalista torturada, brilha ao fundo e a cabo, não o pessimismo dos que se consideram irreversivelmente derrotados pela história, pelo peso de todos os crimes monstruosos colocados em cena. A Los Puercos fala pela voz desse documento, desse depoimento, quando ela diz que entre suas companheiras de tortura havia a futura presidente Dilma Rouseff, e que eles estavam certos.

Sim, eles estavam certos em resistir a barbárie, ao governo militar que estava a serviço do imperialismo e da burguesia. Mas como Caecus nos fala da cegueira, da barbárie de nosso passado e de um futuro temeroso, é preciso discutir a fundo o que representa o “estarmos certos”. Não podemos nos esquecer que as barbáries colocadas em cena falam de algo mais profundo do que esse ou aquele episódio, e os documentos resgatados, bem como as dramatizações de personagens, nos mostram isso. Gabriel não é um personagem só de um futuro temeroso ou de um presente selvagem: nos governos petistas, incluindo o de Dilma, seguiram morrendo aos milhares; os acordos feitos por esses governos recuaram de medidas de educação sexual e de gênero nas escolas, e colocaram em postos de comando figuras abjetas como Marco Feliciano por meio de seu apoio. As mulheres seguiram sendo oprimidas e exploradas, sendo que as que ocupam postos terceirizados e precários triplicaram nos governos Lula e Dilma, sem falar do direito mais do que elementar ao aborto, que seguiu sendo negado e matando milhares na clandestinidade; os militares que torturaram e mataram seguiram impunes, com a “justiça” sendo a primeira a ser esquecida na “comissão da verdade”, que fez muito pouco para trazer à tona o acerto de contas com esse passado; os políticos que eram seus mandantes e cúmplices foram aliados do governo, como os Collors, Malufs, Jucás, entre tantos outros.

Muitos outros documentos e dramatizações – como as dos índios do Xingu que tiveram suas vidas arruinadas pelas obras do PAC, ou dos trabalhadores haitianos ou vítimas das UPPs que foram massacrados pelas balas da polícia e do exército – poderiam ser trazidos para mostrar como o PT, em seus treze anos de governo, passou de cúmplice a agente direto das barbáries que o capitalismo “versão brasileira” cria e perpetua. São documentos necessários se queremos nos educar para a luta.

Caecus é certeiro, doloroso e pungente ao nos mostrar essas diversas faces da barbárie capitalista, mas não podemos esquecer que a seleção de documentos que a constitui implica em decisões políticas – e o final, como mínimo ambíguo em relação ao papel do PT na história desses crimes sociais, diz muito. É claro que hoje nos deparamos com uma situação política em que todas as faces dessa barbárie que foram colocadas em cena vêm a galope nas costas de um governo de extrema-direita (e inclusive a tal velocidade que podemos constatar que a peça, feita no início de 2018 e antes da assunção de Bolsonaro à presidência, já se encontra um pouco “envelhecida” por não incorporar tantos fatos, declarações e medidas políticas dos recentes meses). Mas isso não anula a necessidade urgente – pelo contrário, apenas a torna mais fundamental – de que o abrir de olhos trazidos por peças como Caecus não conduzam a um meio caminho, abrindo as portas para o canto de sereia de que partidos como o PT, que fez parte de manter a barbárie colocada em cena, sejam vistos como “saídas”. As “donzelas da torre”, incluindo Dilma, estavam certas em resistir à barbárie. Mas sem dúvida Dilma não estava certa ao assumir o governo e pactuar com os mesmos políticos que estavam no poder quando ela era uma “donzela da torre”.

Nossos documentos cênicos, bem como nossos textos, nossas obras de arte em geral, podem e devem ser armas de luta contra a possibilidade de “um futuro temeroso”. Eu creio que é assim que a Los Puercos deve enxergar sua excelente peça Caecus, que espero que seja vista por muitas pessoas. Certamente de lá saímos provocados a lutar por um futuro em que todos esses documentos façam parte de uma história de livros, e não do cotidiano. Como nos primórdios dessa forma teatral que tomamos como uma preciosa herança, precisamos retomar também a imprescindível ligação com a organização da classe trabalhadora, a única capaz de abrir caminho a tal futuro.

ESPETÁCULO: CAECUS – UM DOCUMENTO CÊNICO
De: Josemir Medeiros e Cia. Los Puercos
Direção: Luiz Campos
Elenco: Eluane Fagundes, Giovanna Marcomini e Nathalia Nigro.
LOCAL: SP Escola de Teatro
ENDEREÇO: Praça Franklin Roosevelt, 45 – Consolação – São Paulo/SP
QUANDO: De sexta à segunda, de 08 de março até o dia 25 de março.
Sextas (21h), sábados (21h), domingos (19h) e segundas (21h)
Valores: R$20,00 (inteira) / R$10,00 (meia)

Ficha técnica completa:

Direção: Luiz Campos

Assistência de direção: Eluane Fagundes

Texto: Josemir Medeiros e Cia. Los Puercos

Elenco: Eluane Fagundes, Giovanna Marcomini, e Nathalia Nigro

Iluminação: Juliana Sousa

Sonoplastia: Gustavo Metzker

Composição musical: Maria Inês Dias

Cenário e figurino: Eluane Fagundes

Boneco: Dalmir Rogério e Jessica Dibi

Orientador de manipulação: Joaz Campos

Preparação vocal: Arthur Medeiros

Operação de luz: Marcos Junior Valadão / Felipe Lima

Projeção: Jessica Faria

Operação de som: Gustavo Metzker

Contrarregra: Jessica Faria

Fotografia: Iara Marcek, Pamela Santos, Marina Farhat, Bruna Quevedo e Claudio Vitor Vaz

Produção: Cia. Los Puercos

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