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Vozes negras e femininas na literatura

Odete AssisMestranda em Literatura Brasileira na UFMG

segunda-feira 25 de julho de 2016 | Edição do dia

A literatura feminina sempre é deixada de lado pelo cânone tradicional. Se encontrar livros de mulheres escritoras já é difícil, quando essas mulheres são negras se torna ainda mais. E por mais que a sociedade tente calar nossa voz, nós existimos, nós resistimos. Esse texto pretende ser uma apresentação inicial sobre a história e obra de três grandes escritoras negras, Maria Firmina dos Reis, Maria Carolina de Jesus e Ana Maria Gonçalves. Que contra todo o machismo e racismo imperante ergueram suas vozes por meio da sua escrita e de suas obras incrivelmente sensíveis e belas.

Maria Firmina dos Reis, a pioneira

Nasceu em São Luís do Maranhão, no século 19 e tinha origem em uma família escrava. Maria Firmina dos Reis (1825-1917) era ­filha da negra Leonor Felipe dos Reis, aparentada do célebre gramático maranhense Sotero dos Reis. Mudou-se para Guimarães (MA) onde iniciou seus estudos em até se formar no magistério, e por muita determinação passar no concurso para jornalismo.

Em 1859, publicou o romance Úrsula, de temática abolicionista, tornando-se a primeira mulher a assinar uma narrativa de fôlego na literatura brasileira. O fato de ser negra, aumenta o seu pioneirismo e o seu pendor revolucionário. Erudita e intelectual, professora e escritora no século da escravidão, segundo Nei Lopes (Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, Selo Negro, p. 278), a sua erudição era tanta que fez cunhar a expressão “é uma Maria Firmina”, aplicada no Maranhão, a toda mulher inteligente e bem-informada.

Embora racializada e atacada pela elite oligárquica maranhense, de profundas raízes até hoje, essa mulher foi capaz de driblar o cativeiro, à sombra de Sotero dos Reis, de ideais abolicionistas e republicanos.

Maria Carolina de Jesus, uma voz necessária

Nascida em Sacramento, interior de Minas Gerais, no início do século XX, migrou-se para São Paulo passando a morar na Favela do Canindé (que foi destruída pela construção da Marginal Tietê e a especulação imobiliária a seu redor). Maria Carolina de Jesus (1914-77), filha de negros humildes, só teve dois anos de vida escolar regular. Deixou a escola para ajudar no sustento da família, pobre e desvalida. Pela escrituração nos velhos cadernos que encontrava nas latas de lixo da capital paulista, onde buscava os meios de criar seus filhos, foi adquirindo seu aprendizado literário. Passou parte da sua vida como catadora de papel nas ruas de São Paulo para alimentar os três ­filhos de pais diferentes.

Em 1960, o jornalista Audálio Dantas, ao fazer uma pesquisa para uma reportagem sobre a favela, acabou se deparando com Carolina e com os cerca de vinte cadernos que compunham seus diários. Surpreendido pelo grande talento da autora o jornalista desistiu de sua própria reportagem e se atribuiu o papel de editor dos diários de Carolina, tendo selecionado uma compilação e lançando como o livro “Quarto de Despejo”. A primeira edição, com dez mil exemplares, se esgotou rapidamente; em poucos meses vendeu cem mil exemplares e foi traduzido para treze idiomas.

O dinheiro e a fama potencializaram os desentendimentos com seus vizinhos e o ódio que alguns lhe tinham, como ela relatava nas páginas do diário. Carolina rapidamente se mudou da favela onde morava. Sua fama, depois da explosão inicial, rapidamente se transformou em um conhecimento restrito a poucos círculos. Em 1977, dezessete anos após o lançamento de “Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus morria de insuficiência respiratória, com somente 62 anos. Morreu na miséria, mesmo tendo espalhado sua história ao mundo.

Nas páginas de seu diário estão retratados a realidade de uma mulher negras e trabalhadora, submetida a pobreza, a fome e a violência praticadas pelo Estado e pela sociedade de forma sistemática e organizada. Sua literatura hoje intitulada pela academia de “Literatura Marginal” foi e ainda é um grito de resistência em meio a um sistema de exploração e opressão.

Ana Maria Gonçalves, a escrita engajada

Nascida em Ibiá, Minas Gerais, em 1947. Autora de dois livros, o primeiro escrito em 2002 intitulado Ao lado e à margem do que sentes por mim, e o segundo em 2006, Um defeito de cor, conquistou o Prêmio Casa de las Américas na categoria literatura brasileira. A obra, inspirada na vida de Luísa Mahin, conta a trajetória de uma menina nascida no Daomé e capturada como escrava aos 8 anos de idade, até a sua volta à terra natal como mulher livre.

Ana Maria tem sido também uma das vozes mais atuantes a levantar questões problemáticas nas relações raciais no Brasil. Esse ano participou de uma mesa "De onde escrevo", que inaugurou o Espaço Itaú Cultural de Literatura, mediada pela atriz, MC e escritora Roberta Estrela D’Alva, que além dela contava com a participação das autoras Andréa Del Fuego, Conceição Evaristo, Maria Valéria Rezende, que tinha como ponto central o fato de não haver pessoas negras convidadas para a mesa da Feira Literária de Parati, na ocasião em entrevista para o Jornal O Globo, declarou que: Faço literatura engajada, sobre política e gênero. É muito difícil para a gente ser respeitada como autora. Temos que brigar por nosso espaço, para sair desse lugar de personagem exótico. Precisamos mostrar nossa qualidade, outro ponto de vista. Ainda tenho a visão utópica da arte como instrumento de mudança da sociedade. É necessário abandonar modelos e estruturas obsoletas, como nossa política.

Essas três mulheres cada uma a seu tempo são vozes femininas e negras, que vem por meio da arte literária desmascarando o racismo existente na sociedade brasileira, herança de mais de 400 anos de escravidão. Mulheres que desafiaram e ainda desafiam a ordem racista de seu tempo e expressam por meio da sua escrita a vida, a história e a realidade de nós mulheres negras dentro desse sistema exploração e opressão.




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