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ENTREVISTA | Ustra morre impune, Merlino vive em nossos corações

Entrevista com Ângela Mendes de Almeida, viúva de Luiz Eduardo Merlino, uma das vítimas do coronel Brilhante Ustra.

Ariane ReisEstudante de História da USP

sábado 17 de outubro de 2015 | 00:33

Nesta quinta-feira, 15 de outubro, morreu o coronel Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI durante a ditadura civil-militar e responsável, segundo o relatório final da Comissão da Verdade, por 376 mortes. Uma dessas mortes foi a de Luiz Eduardo Merlino, jornalista, estudante de História na USP e militante do POC (Partido Operário Comunista).

A luta por memória, verdade e justiça continua viva, pois a Lei da Anistia e os sucessivos governos pós-ditadura têm garantido a impunidade aos torturadores, como Ustra, e aos seus cúmplices. Diante disso e das recentes descobertas de ossadas de desaparecidos do período ditatorial, nós, estudantes de História da Usp, entrevistamos Ângela Mendes de Almeida, historiadora, coordenadora do Observatório de Violências Policiais do CEHAL (Centro de Estudos de História da América Latina) da PUC-SP e viúva do militante do POC-Combate, Luiz Eduardo Merlino, assassinado pela ditadura civil-militar em 19 de julho de 1971

Esquerda Diário: Recentemente foram encontradas 614 ossadas em valas clandestinas no Cemitério de Perus, onde já foram enterrados diversos corpos de desaparecidos políticos do Brasil no período da Ditadura. Qual a importância da investigação da origem dessas ossadas?

Ângela: A investigação sobre a localização dos corpos dos desaparecidos políticos é um dos itens mais importantes da luta por Memória, Verdade e Justiça. No entanto é bom levar em conta que dessas ossadas – as 433 já em poder do laboratório da Unifesp e as 614 recebidas agora pelo MPF – a maioria são de pessoas anônimas, “pouco importantes” para as autoridades, provavelmente pobres, senão negras, crianças perdidas, pessoas de idade que sofreram algum mal súbito, pessoas mortas em virtude de acidentes, e outros casos nos quais o Instituto Médico-Legal não achou necessário procurar minimamente os familiares. O martírio das famílias dos desaparecidos políticos da ditadura civil-militar na busca dos corpos de seus entes queridos é também o martírio das famílias dos desaparecidos do Brasil, cujos cadáveres as autoridades tratam como coisas sem nenhuma importância.

ED: O que para você, Ângela Mendes, significa recuperar a história dos desaparecidos políticos no Brasil? O que a luta pela memória de Luiz Eduardo Merlino pode nos ensinar?

Ângela: A recuperação da história dos mortos e desaparecidos políticos é uma luta incessante que não terminou. Quanto aos desaparecidos, é angustiante saber que quase todos os pais e mães já morreram sem saber de que modo foram mortos seus filhos e onde estão os seus restos mortais, sendo que essa luta tem sido retomada pelos irmãos e irmãs, esposos e esposas, filhos e filhas e outros parentes e amigos.

No caso do Luiz Eduardo Merlino, não se trata de um desaparecimento. Nós, familiares, soubemos desde o início que ele foi morto no DOI-CODI de São Paulo, em consequência de torturas continuadas com choques elétricos no “pau-de-arara”, por mais de 24 horas seguidas, e depois pelo abandono completo em uma cela solitária, o que veio a lhe provocar a gangrena nas pernas. Com o auxílio de outros companheiros do POC-Combate e de outras organizações, então presos, cada um depondo sobre um pequeno pedaço da história dessa morte, pudemos reconstituir de que forma a violência, e depois a falta de cuidados médicos levaram à morte de Merlino. Pudemos inclusive saber quem foram os seus torturadores: o ex-comandante do DOI-CODI de São Paulo, coronel reformado Carlos Brilhante Ustra, o delegado aposentado Aparecido Calandra, o “capitão Ubirajara,” e o delegado da Polícia Civil, Dirceu Gravina, o “J.C.” (Jesus Cristo). E soubemos ainda que o então coronel Ustra decidiu a sua morte, ao não autorizar a amputação de sua perna. Por pouco Merlino não se tornou também um desaparecido, já que os organismos da repressão não avisaram a família de sua morte. Seu corpo foi localizado por seu cunhado que teve condições de penetrar no Instituto Médico-Legal, reconhecer o corpo e exigir a sua entrega.

Luiz Eduardo Merlino era jornalista e militante do POC (Partido Operário Comunista) e quando foi assassinado tinha apenas 23 anos. Nasceu em Santos e desde o curso colegial, nessa cidade, participou do Centro Popular de Cultura da UNE. Em 1966 veio para São Paulo onde, com apenas 17 anos, integrou a primeira equipe do então recém-fundado Jornal da Tarde, que procurava criar uma estética inovadora. Em 1967 começou a participar do movimento estudantil e foi aprovado no vestibular de História em 1968. Participou do 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, em outubro desse ano, e foi preso com os quase 800 estudantes, mas conseguiu ser liberado antes pois provou que estava cobrindo o congresso como jornalista. Publicou em seguida uma enorme reportagem na Folha da Tarde com um documento da corrente Universidade Crítica, que pode ser lida no link. Em 1971 fez parte de uma pequena equipe do POC-Combate que viajou à França para estabelecer ligações com a Quarta Internacional e a Liga Comunista Revolucionária. Poucos dias depois de voltar foi preso pela equipe do DOI-CODI.

Para conseguir Justiça, apesar da Lei da Anistia de 1979, nós, os familiares de Merlino, estamos movendo um processo na área cível, desde 2008, responsabilizando o ex-comandante do DOI-CODI, Brilhante Ustra, pela sua morte sob tortura. Além disso o Ministério Público Federal apresentou denúncia, em setembro de 2014, contra os três torturadores de Merlino e também contra o médico Abeylard de Queiroz Orsini, que assinou o laudo falso da sua certidão de óbito. Como todos os familiares de mortos e desaparecidos políticos, sabemos que só a luta contínua e organizada poderá conseguir Justiça.

ED: Desde a Ditadura Civil-Militar até os dias de hoje, qual o papel que vem cumprindo as instituições militares e policiais em nosso país?

Ângela: A forma pela qual a ditadura civil-militar terminou, isto é, sem terminar por completo, tem marcado poderosamente o chamado “Estado democrático de direito” que temos desde a Constituição de 1988. A Lei da Anistia, de 1979, continua sendo um sólido ferrolho que impede a concretização da Justiça, elevando um muro de silêncio sobre o que aconteceu. A interpretação dada pelo STF em 2010, garantindo a prevalência da lei de 1979 e assim a impunidade dos torturadores, é um exemplo desse muro.

Os sucessivos governos federais, inclusive os do PT, nada fizeram para corrigir a permanência, dentro das Forças Armadas, de um pensamento ditatorial e até de uma história do Brasil que ainda chama o golpe militar de 1964 de “revolução”. Toda vez que houve incidentes desta natureza, como, por exemplo, na comemoração anual do aniversário desta dita “revolução” em discursos da “Ordem do Dia” de 31 de março, os governos amorteceram qualquer debate. As escolas, os currículos de formação, os regimentos disciplinares das Forças Armadas seguem sendo os mesmos do tempo da ditadura.

Mas a permanência da ditadura é mais visível na área da Segurança Pública. O aparelho repressivo do Estado permaneceu o mesmo. São as Polícias Militares estaduais – seguramente o vetor mais presente na violência institucional cotidiana – estruturadas por um decreto-lei de 1969, subordinadas inicialmente ao Estado Maior do Exército, subordinação transferida posteriormente, em 1976, aos governos estaduais. Nada mudou com a Constituição Federal de 1988, já que no artigo 144, parágrafo 6º elas aparecem como forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro.

Prevalece, nas Polícias Militares, a figura do “inimigo interno,” que era, durante a ditadura, o “subversivo”, o “comunista”, o “terrorista”, conceito que vem da Lei de Segurança Nacional. Hoje o “inimigo interno,” é o “suspeito”. Até prova em contrário o “suspeito” é um traficante ou um “bandido”. Muitas vezes negro, mal vestido ou vestido com uma moda diferente, o “suspeito” tem que ser necessariamente aquele que é procurado nas imediações por um furto, um roubo ou outro crime mais grave. Ele sempre faz parte das populações pobres das periferias e favelas. A perseguição ao “suspeito” inclui invasões militarizadas nos territórios dessas populações, abordagens truculentas, encarceramentos, muitas vezes injustos e com provas “plantadas,” torturas, execuções sumárias e extrajudiciais e ocultamento de cadáveres. O Poder Judiciário complementa essa perseguição ao “suspeito” com sentenças draconianas para os crimes dos pobres e impunidade para os crimes dos policiais.

ED: A Deputada e advogada argentina Myriam Bregman, do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) vem travando um importante luta pelo julgamento de assassinos da Ditadura argentina. Ela foi querelante no julgamento de Von Wernich, que foi condenado à prisão perpétua em 2007. Porque há tanta dificuldade, em nosso país, do acesso não só à Memória e à Verdade, mas também à Justiça?

Ângela: A dificuldade no Brasil para se fazer Justiça, ao contrário do que aconteceu na Argentina, no Chile e no Uruguai, reside essencialmente no fato de que uma parte considerável da sociedade brasileira, inclusive e sobretudo as autoridades, querem ocultar o passado e o presente escravista de nossa sociedade. A tortura e a violência são partes integrantes de nossa história, usadas contra a classe dos escravos, no passado, depois usadas contra todos os pobres, trabalhadores ou pessoas em geral, sobretudo negras, em seguida usadas sistematicamente durante a ditadura civil-militar, e que continuam sendo usadas como forma de controle social. Reconhecer a tortura e a violência durante a ditadura obrigaria a reconhecer que tudo continua. Com a diferença que hoje o alvo, o “inimigo interno,” são os pobres, em sua maioria negros. É preciso manter na sociedade essa banalização da tortura. A difusão generalizada e em pormenores dos crimes da ditadura romperia com esse muro de silêncio. A Lei da Anistia de 1979 é o instrumento para conservar esse silêncio.

Agradecemos a entrevista concedida por Ângela Mendes de Almeida, que vem travando uma importante luta pela punição do coronel Brilhante Ustra, um verdadeiro assassino que morreu impune e não foi julgado pelas atrocidades que cometera há algumas décadas atrás. Apesar de sua morte impune, a luta pela punição dos torturadores tem de seguir, e nós, estudantes de História, temos que ser os primeiros a encampar essa luta, aliados a sindicatos, ativistas e trabalhadores. Luiz Eduardo Merlino, que dá nome ao nosso Centro Acadêmico (CAHIS) foi apenas um dentre tantos mortos e desaparecidos pela Ditadura Civil-Militar no Brasil. Lutar por Memória e Verdade é fundamental, e o faremos. Contudo, é preciso exigir que estes torturadores sejam punidos.

Aos parentes e familiares de Eduardo Merlino, bem como aos de todos os outros desaparecidos e assassinados, seja pela Ditadura Civil-Militar, seja por este "estado Democrático de Direito", nós dizemos: PRESENTES!




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