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IDEIAS DE ESQUERDA | Uma nova geração combativa na fábrica

Sobre A disputa por dignidade operária, de Paula Varela

terça-feira 7 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

Quando militava no MAS – enquanto secundarista nos anos 80 - uma atividade recorrente foi o jornal "piquetes", de porta em porta em bairros operários da zona norte da Grande Buenos Aires (nos partidos de Tigre e de Escobar, na realidade já Província). A atividade tinha como objetivo não a organização local, mas a propaganda partidária, e o objetivo mais específico de contatos de construção em fábricas na área. O método era através do "posicionamento" e discussão do jornal (Solidariedade Socialista). Tratava-se de se concentrar em discussão política, mas da conversa surgiam todos os tipos de assuntos ideológicos e históricos.

O livro de Paula Varela nos fala sobre bairros populares nas proximidades, duas décadas mais tarde. O bairro que estuda, no entanto, é mais explicitamente em torno da fábrica FATE pneu (Barrio FATE). Esta é, além disso, uma investigação científica sistemática, cuja problemática é o surgimento de uma nova geração de trabalhadores que reivindicam os seus direitos na fábrica. O plano de exposição do livro é dividido em três partes: primeiro a história do conflito que culmina com uma nova liderança sindical de SUTNA (Sindicato Único de Trabalhadores do Pneumático da Argentina) da seção de San Fernando; em segundo lugar, uma explicação de como essa nova geração de ativistas surgiu; em terceiro lugar, a localização deste caso como parte do "sindicalismo" no país. Assim a exposição vai a partir do particular para o geral, do "micro" para o "macro" social. É, assim, um estudo de caso marcado por conceitos que permitem generalizar as interpretações. Mas também usa métodos especiais de construção dos dados próprios da "etnografia", da qual a pesquisadora observa diretamente os fenômenos, ainda que sem participar do trabalho.

A primeira parte é um relato do surgimento dos grandes conflitos dos anos 2006-2007, culminando em uma rebelião contra a burocracia da direção de SUTNA, tanto da fábrica quanto de sua seção nacional. Ela começa com uma descrição do bairro e as políticas peronistas tradicionais no mesmo. Pesquisa que marcou a agenda acadêmica e política evidenciaram um diagnóstico da retirada do movimento dos trabalhadores e ao fato de que os bairros se tornaram o lugar das políticas populares. No livro é discutida essa bibliografia, colocando a relação que os bairros operários têm com o mundo da produção, negado por aqueles autores. A ausência na agenda dos pesquisadores, então, foi o estudo dos bairros de trabalhadores industriais. Quando começou seu trabalho de campo, a autora encontrou um bairro tranquilo. Mas, encontra um conflito que eclodiu que foi objeto de política dos trabalhadores. No primeiro capítulo, o conflito é parte da onda de greves que acontece no país entre 2004 e 2006. Foi o retorno do "gigante adormecido" para as ruas depois de uma longa soneca desde o início dos anos 90. Durante 2004, vários ataques (cerca de 4 ou 5 dias, com a tomada de estabelecimentos ou bloqueios de ruas) seguidos, começando com os mineiros certamente a vanguarda desses anos, e o corte da Panamericana feito por SMATA em junho de 2005 e o duro conflito no Hospital Garrahan no mesmo mês.

Neste contexto que varreu a maioria dos sindicatos, o SUTNA convoca assembleias gerais para impulsionar paradas para abordar a rodada de acordos salariais. O conflito na FATE começa quando os seus trabalhadores desacordam com aumentos obtidos. Isso é expresso de forma explosiva em torno de 2007, com greves espontâneas, assembléias em que a burocracia perdeu a votação ou onde foram zombados, depois cortando a Panamericana em maio, até as eleições de delegados, onde a nova lista Marrón do ativismo de base se impôs.

O livro continua em seus capítulos que vão para trás no tempo para explicar o funcionamento da fábrica e controle que os líderes sindicais tinham sobre os trabalhadores, e como isso se dá até a crise de 2006. Aqui certamente encontramos uma articulação conceitual criativa para explicar esse problema. A rebelião de trabalho é o resultado de uma desconexão entre as expectativas da "cidadania de fábrica" ​​dos próprios trabalhadores, que eram mais velhos e não viam cumpridas em um contexto de crescimento econômico, que teria permitido (desde 2003). Os trabalhadores também ansiavam por uma empresa onde havia "justiça" quando foi dirigida por "Madanes", o ex-proprietário, que considerava os trabalhadores como pessoas. O novo ambiente econômico do crescimento contrastava com a realidade da "exploração" (no sentido da falta de justiça interpretado pelos trabalhadores) que foi gerando a situação para um estouro. Construindo um "sentimento de injustiça" (retirado do John Kelly), que foi chave para os trabalhadores entrarem em luta. Em seguida, o estudo dá conta de como a fábrica recebe o consentimento operário a partir de um sistema moral de intercâmbios econômicos (um conceito emprestado de Marcel Mauss), situação que teria ocorrido na era do "paternalismo industrial" quando reinava o patrão madanes. Durante muito tempo os trabalhadores acreditavam na justiça desse regime, e até mesmo os jovens ansiavam por aqueles momentos sem tê-los vivido.

A esses mecanismos devem ser adicionados o papel dos delegados burocráticos na fábrica. Retomando ideias do debate sobre clientelismo político, Paula Varela as usa para descrever um clientelismo sindical dentro da fábrica pelos delegados. Assim, os delegados se comportaram como porteiros sindicais que disseminavam o medo pela sua capacidade de gerar retaliação, mas também recebendo lealdades distribuindo favores. No entanto, esse sistema de controle é fraco porque a distribuição desses fatores está limitado a um grupo dentro do conjunto de trabalhadores. Um processo central aqui, que se torna uma fraqueza, é que os delegados individualizaram o tratamento de suas bases neste intercâmbio, assim como fazia Madanes. Deste modo, impedindo a formação de autonomia coletiva (classe) dos trabalhadores. De modo mais geral, a união SUTNA era fraca politicamente, seja por suas seções que giram em torno de grandes fábricas com muita autonomia, ou por seu alinhamento a um sindicato fraco (CTA). A presença de um grupo minoritário, mas de ativistas de esquerda, militantes finalmente permitiu dar curso a estes sentimentos de injustiça até uma saída coletiva.

Os novos líderes da base FATE são parte de uma nova geração de trabalhadores. Assim mostra as votações operárias em outros estabelecimentos, uma característica dos jovens é a sua "apoliticidade". No entanto, este fenômeno também indica a crise da política tradicional dos peronistas e a possibilidade de ação coletiva de classe. Esse apoliticismo também rejeita o papel que os sindicatos tiveram na legitimação da exploração durante os anos 90. Mas é a partir dessa apoliticismo que surge a "repolitização fabril" ​​expressa na participação coletiva em lutas (três indicadores: a ação direta, assembleísmo e militância de esquerda) surge.

O problema da politização é possivelmente uma das partes mais complexas, por este tipo de paradoxo conceitual (politização com base na despolitização). Se a base da nova geração é a despolitização, um aspecto de fraqueza pode estar presente na formação da consciência da classe política. Há um debate sobre a "ilusão do social" (que levanta Daniel Bensaid) no final do livro. O filósofo francês militante ligava esse conceito à ilusão da rejeição da política e da possibilidade de emancipação sem tomar o poder. Poderíamos dizer que a nova geração é muito alimentada com essa ilusão. Politicamente este ponto é relevante para a apreciação da força do "sindicalismo de base", uma categoria fundamental na proposta de Paula Varela. A fraqueza deste sindicalismo é o seu basismo, que denota a falta de politicidade para se tornar uma alternativa da classe e do povo. Isto não é resolvido com o parlamentarismo de Kautsky. Referimo-nos a complementar ou substituir diretamente a falta de desenvolvimento político do movimento operário com a colheita de votos nas eleições. Esta é uma tentação que veio para a esquerda ao longo da sua história. A formação de uma fonte de política social e alternativa é, ao mesmo tempo, ou em qualquer caso, passa por uma compreensão da potência nestes dois aspectos que aparecessem separados na ideologia. Os votos são necessários, mas não indicam o poder de impor decisões. Aqui o discurso de Daniel Bensaid estimula novas discussões.

Esta pesquisa ajuda a explicar a rebelião operária contemporânea a partir do micro-social. Deve ser complementada por perspectivas macro-históricos como Beverly Prata, Forças de trabalho (2005) ou do mesmo Repensando as relações industriais John Kelly (1998) utilizados no livro. Mas a classe trabalhadora ainda permanece dentro da hegemonia capitalista ou variantes políticas e sindicais que a mobilizaram mas não a questionaram a fundo. Internamente, no desenvolvimento histórico, esses dois momentos (hegemonia e rebelião) se encontram no caso FATE, antes, durante e depois de ’90. Neste sentido, é um inquérito que ilumina a contradição dos trabalhadores em sua sujeição ao capital, bem como a própria crise.

A disputa pela dignidade dos trabalhadores pode recorrer-se em suas implicações para a teoria marxista da consciência de classe. Na metodologia do caso estendido de Michel Burawoy isso é o que se buscaria. Reconstruir o geral à luz da interpretação do particular. É um exercício intelectual exigente que requer uma investigação separada no duplo nível da teoria acumulada (ou da "experiência histórica" ) e o estudo empírico limitado no novo caso. Tendo em vista novas generalizações, o livro de Paula Varela pode participar de uma série de estudos sobre o "marxismo sociológico."(3). Michel Burawoy e Erik Olin Wright criaram este nome para impulsionar novos programas de investigação social na tradição marxista. Este programa propõe uma "ciência social emancipatória", ou seja, entendido pela emancipação da classe. Uma das características deste programa é a abertura de diferentes perspectivas metodológicas, políticas ou argumentativas no seu quadro geral. Também a ideia de que o marxismo é uma teoria em construção, que pode e deve alimentar a vanguarda das ciências sociais. É o que faz Paula Varela em seu livro. A narrativa da rebelião operária em FATE discorre no desenvolvimento da observação de um diálogo com distintas vozes e linguagens, articuladas com um propósito claro. A conceituação é parte do percurso, não é arbitrário. Temos de resgatar, no entanto, a importância desta conceituação porque é um romance de estudos empíricos sobre a classe trabalhadora da nova geração. Deixamos para um outro ponto um balanço sobre a proliferação da investigação acadêmica que acompanha a revitalização do sujeito operário dos anos 2000. Mas ainda há que se comparar esse livro com o contexto, como um estímulo para outros livros. Tenhamos agora uma imagem distinta do bairro.

1 -Bs. As., Imago Mundi, 2015.
2 -“Los obreros de FATE exigían ser tratados como personas dentro de la planta. La minoría de ellos, exigían volver a ser tratados como personas (cuyo modelo era el trato que les profería el viejo Madanes)”, p. 144.
3- Tomamos esta idea de Rodolfo Elbert, quien incluyó esta obra su seminario sobre marxismo sociológico en la Facultad de Trabajo Social de la Universidad Nacional de La Plata. También se incluía nuestro estudio sobre la acción sindical en el sector automotriz (Labor conflict and capitalist hegemony in Argentina, Leiden, Brill, 2016).


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Marxismo    Teoria



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