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Um operário que lê: história dos estudantes-operários na ditadura militar

Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Imagem: Alexandre Alvez Miguez

Um operário que lê: história dos estudantes-operários na ditadura militar

Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Parte 2

Publicamos aqui a segunda parte do artigo “Um operário que lê: história dos estudantes-operários na ditadura militar”. Para ler a parte 1: http://www.esquerdadiario.com.br/Um-operario-que-le-historia-dos-estudantes-operarios-na-ditadura-militar

No quinto congresso da Juventude Comunista da União Soviética, em 1922, do qual tratamos aqui, Trotski discursa sobre como é importante para o sucesso da revolução que os jovens revolucionários consigam se formar politicamente, tendo claros os fundamentos da teoria que norteiam sua prática, algo extremamente necessário para combater qualquer forma de burocratismo de seus dirigentes:

Me permitam apelar a vocês e através de vocês a todas as camadas mais sensíveis, honestas e conscientes do jovem proletariado e campesinato avançado: aprendam, formem-se com o granito da ciência, se afinem e preparem-se para estar ao mando! (...) A obediência cega é uma virtude útil ao soldado de um exército capitalista, não ao combatente proletário. A disciplina revolucionária tem suas raízes no pensamento e na vontade coletivos. Um partidário do comunismo científico não acredita em palavras; julga tudo a luz da razão e da experiência. A juventude não pode aceitar o marxismo por mandato; o deve assimilar por si mesma, através de um esforço independente do pensamento.

Para Trotski, portanto, era fundamental que a juventude tivesse sólidos os fundamentos e objetivos de sua luta, para que fosse sujeito político da construção da nova sociedade comunista. A atuação do Partido Comunista Brasileiro, entretanto, vai ser todo o contrário disso: defendeu o “socialismo em um só país” de Stálin, que significou “socialismo burocratizado só na URSS” e boicote à revolução em qualquer outro país, perseguindo e executando todos aqueles que se opunham a suas ideias.

A ânsia da juventude estudantil-proletária de movimentar-se e construir espaços auto-organizados não veio, dessa forma, acompanhada de um programa, uma vez que o PCB, seguindo a tendência contra-revolucionária internacional dos PCs stalinistas, deixou essa juventude órfã de uma tradição operária que mostrasse o legado dos trabalhadores que fizeram a revolução russa em 1917 a partir da estratégia soviética. Isso fica evidente no relato do texto anterior, quando por duas vezes (tanto na escolha do presidente da comissão quanto na de quem faria as formações) Espinosa diz que o critério de escolha foi mais o da “escolaridade” que o da experiência política.

A ausência de solidez política já era apontada em balanços presentes em uma publicação da Oposição Sindical em 1981, que conta com uma série de relatos sobre as comissões de fábrica nos processos do final da década de 70:

Na greve de junho muitos companheiros despertaram e a oposição não se mostrou capaz de fazê-los avançar. Isso vem colocar um problema sério, pois a Oposição Sindical parece não ter encontrado ainda um caminho para ligação maior com novas lideranças que despontam e com a massa que se dispõe a entrar na luta. Parece que essa deficiência estaria ligada a duas coisas: por um lado, à ausência de solidez de direção política e, por outro, à ausência de mecanismos, meios, instrumentos, instâncias que possibilitem a participação e o desenvolvimento dos ‘novos’ e mesmo da massa.

Qual era o menu ideológico disponível para esses operários-estudantes?

Para entendermos o que levou dirigentes como Ibrahim à degeneração é preciso verificar o pano de fundo histórico. Essas gerações vivem no bojo de um mundo em convulsão:

Mas se tantos movimentos de protesto social e mobilização política agitaram o mundo todo, como o maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses, a ‘Primavera de Praga’ contra o ‘socialismo real’ sob domínio da URSS, o massacre de estudantes no México, as manifestações nos Estados Unidos contra a guerra no Vietnã, as distintas ações revolucionárias armadas em diversos países, os movimentos de contracultura, dentre tantos outros exemplos, o Brasil também marcou sua presença neste emblemático ano.” (Ridenti e Antunes, 2007).

A discussão sobre uma revolução estava na ordem do dia, bastante referenciada em Cuba e na China. A Oposição Sindical Metalúrgica surge entre as tendências antiburocráticas nesta convulsão, desde a experiência de Osasco em 68, mas ganha corpo a partir de 1973, quando começa a ressurgir com mais força um ativismo operário por conta da crise do “milagre econômico”.

Esta organização funcionou como uma espécie de frente única composta por diversas correntes, como a Ala Vermelha (cisão do PCdoB), Ação Popular, POLOP — Organização Revolucionária Marxista Política Operária, POC — Partido Operário Comunista, PORT — Partido Operário Revolucionário Trotkista, PC do B (maoísta), Grupo 1º de Maio, membros da Pastoral Operária, das comunidades eclesiais de base, etc. A Oposição consegue avançar na organização de base criando, além de inúmeras comissões de fábricas, reuniões clandestinas chamadas interfábricas, nas quais se encontravam operários de diversas estruturas fabris. Esses fóruns auto-organizados para deliberação de políticas sindicais conjuntas são como embriões de conselhos operários (como os sovietes), surgidos da necessidade operária de romper com a divisão por categorias imposta pelos sindicatos e articular ações unificadas.

Gilson Dantas, que foi estudante da UNB e participou da Oposição do ABC, em seminário sobre maio de 68 ocorrido ano passado discute sobre essa sensação da juventude da época de “que o mundo estava em convulsão e que era preciso fazer alguma coisa, ou qualquer coisa”. O conteúdo do “menu ideológico”, segundo Gilson, disponível na época para esses jovens que buscavam ser oposição antiburocrática ao stalinismo era ou uma fratura do PC, ou um “trotskismo” centrista bastante adaptado ao mesmo stalinismo, ou uma gama enorme de organizações adeptas à guerrilha. Esta última tornou-se “absoluta sedução” depois do fechamento do regime em 68, como relata:

O abraçar da luta armada foi assumido por uma série de companheiros com generosidade, heroísmo, abnegação, desprendimento e muitos deram a própria vida, então não posso criticar nenhum tipo da nobreza destes companheiros (...). Mas a estratégia está equivocada, absolutamente equivocada, porque substitui o proletariado, não tem programa. Nenhuma corrente discutia programa. Quantas armas, quanta munição, quantos companheiros, onde faz o ataque. Tudo bem, companheiros, pra que, pra fazer o que? Essa é que é a questão. Que na Nicarágua entrou em Manágua e ocupou o país por que? Pra fazer o que? Uma aliança com a burguesia (...). O que que Marx fala? Que a libertação da classe trabalhadora é obra dela. Então como é que eu vou organizar uma guerrilha se ela não está fundida à classe trabalhadora para organizar batalhões da classe operária para tomar o poder?

O que era o denominador comum entre essas diferentes tendências era uma espécie de tentativa de substituir o proletariado como sujeito: ou pela burguesia nacional (como fez o PCB), ou pela pólvora (como no caso da guerrilha). “Nenhuma dessas correntes, nem a minha, nunca fez cursos de formação para discutir a centralidade do proletariado”, aponta Gilson.

A Oposição, nas greves do final da década de 70 no ABC e em São Paulo, centra sua crítica (correta) à estrutura sindical, fazendo frente contra a falácia dos sindicalistas “autênticos” (grupo de Lula) de que as comissões enfraqueciam o sindicato, quando na verdade enfraqueciam a burocratização do sindicato. Entretanto, a falta de “solidez política” citada cobra seu preço aqui, pois a crítica à forma da estrutura sindical veio descolada de uma saída política em defesa da construção de uma superação revolucionária da ditadura. Ao não apresentarem uma saída política de superação do capitalismo, outro caminho é traçado pelos “autênticos”, que preparam a derrota das greves defendendo uma transição à democracia burguesa como única alternativa.

O partido que surge após a derrota das enormes greves do ABC — que culmina na abertura “lenta e gradual” do regime em vez de uma saída revolucionária — é o PT. Este nasce como partido ainda amorfo em seu programa, mas essencialmente proletário em sua composição. Composição inclusive diferente do projeto de Lula e da Igreja, que era constituir um partido que incluísse parlamentares burgueses e intelectuais pequeno-burgueses, para integrar-se ainda mais ao regime democrático-burguês. Fernando Henrique Cardoso, em 1979, propunha criar o Partido Popular Democrático e Socialista (PPDS), e os sindicalistas “autênticos” que organizavam o movimento pró-PT chegaram a participar de reuniões com esses setores. Não fosse a pressão dos trabalhadores, o PT não teria surgido como partido com composição operária.

Se por um lado algumas correntes da Oposição tiveram uma posição sectária sobre o PT, defendendo que não deveriam participar, outras tiveram uma posição oportunista, não se colocando contra a direção dos “autênticos” para batalhar por um partido com um programa operário. É o caso da Convergência Socialista (de onde surge o PSTU), orientada pela corrente trotskista argentina dirigida por Nahuel Moreno. Em vez de fazer críticas à direção dos “autênticos”, acreditava que as massas deveriam fazer experiência com as posições de Lula e no boletim Convergência Socialista N°9 (que recuperamos nos Cadernos Estratégia Internacional) dizem:

Defendemos sempre e vamos seguir defendendo este PT. Que saibamos não existe outro, nem queremos que exista. Defendemos este PT e suas bandeiras de luta. E vamos combater aos que querem modificar os objetivos traçados desde seu início pelos companheiros Lula, Bittar, Cicote, Ibrahim, Skromov e demais dirigentes sindicais. Não queremos que o PT tenha todo o nosso programa.

Importantes lições para os dias de hoje

Esses balanços são extremamente necessários para pensarmos o cenário atual. Hoje temos uma classe trabalhadora com emprego formal sendo extremamente atacada pela reforma trabalhista e a da previdência. O desemprego, que atinge grande parte da população e a juventude em especial, não está fazendo sumir a classe trabalhadora, pelo contrário, está criando um exército de trabalhadores informais, a partir da chamada “uberização” do trabalho. A massa desse exército é a juventude, grande parte dela também estudante.

O movimento estudantil (universitário e secundarista) é um movimento policlassista, ou seja, não tem um caráter de classe definido. É por isso que é preciso disputar para que este tome o lado da classe trabalhadora, que leve à frente o seu programa e suas pautas. A aliança do movimento estudantil com o movimento operário é estratégica, afinal utilizar todo o conhecimento da humanidade condensado nas escolas e universidades para fomentar a luta de classes pode ser explosivo. Isso não se encerrou no século passado, pelo contrário, está mais vivo que nunca. Nesta semana mesmo, se organizando através de grupos de whatsapp, os trabalhadores de um call center argentino conseguiram vencer uma batalha contra a patronal que queria proibi-los de ter intervalo para irem ao banheiro. Uma matéria do Izquierda Diario Argentina viralizou essa denúncia, que foi amplamente divulgada nas redes, e fez a empresa retroceder. O fator estudantil foi decisivo, como relatam:

Os grupos de whatsapp e a solidariedade dos estudantes

Foi surpreendente e inovador o que se deu nos grupos de whatsapp da faculdade. Longe da vista dos supervisores, a salvo dos ‘prints’ e sem o risco de ‘queimar-se’, os trabalhadores que também estudam começaram a opinar sobre a medida da empresa, as condições de trabalho, a fraude trabalhista do convênio e um sem fim de injustiças.

Os estudantes de direito ‘passaram’ argumentos jurídicos, as leis que os trabalhadores podiam usar a seu favor. Os de medicina ofereceram seus conhecimentos para demonstrar que é insalubre a forma de trabalho que queriam implementar e assim as diferentes disciplinas.

Que diferente seria se os centros de estudantes estivessem a serviço dos interesses dos trabalhadores. A solidariedade que se estendeu ontem é um grande ponto de apoio para repensar os centros de estudantes em uma realidade onde a crise afeta mais as condições de vida.”

Essa aliança é fundamental, já que é a classe trabalhadora que tem em suas mãos o poder de tomar para si o poder do Estado e os meios de produção, controlá-los por meio de conselhos operários para assim acabar com a propriedade privada, que é o coração do capitalismo. É preciso que todos esses setores se vejam como uma só classe, unifiquem suas fileiras e batalhem para que nosso futuro não seja colocado à venda.

Referências

Cadernos Estratégia Internacional Brasil. Tese 4 - Fundação do PT. Edições Iskra.

MOURA, Alessandro de. Movimento operário e sindicalismo em Osasco, São Paulo e ABC paulista: rupturas e continuidades. 2015. 434 f. Tese (doutorado) — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2015 https://repositorio.unesp.br/handle/11449/135966

RIDENTI, Marcelo; ANTUNES, Ricardo. Operários e estudantes contra a ditadura: 1968 no Brasil. Mediações, v.12, n.2, p. 78-89, Jul/Dez. 2007.


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Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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