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Estados Unidos | Turbulência nas eleições dos EUA: Um regime em declínio

Lênin já disse: “Há décadas em que nada acontece; e há semanas em que décadas acontecem.” Na vida política recente dos EUA, toda semana tem parecido uma década. O maior poder imperialista do mundo está passando por uma crise em múltiplas frentes, com Donald Trump cumprindo um papel de desestabilização central. O que isso significa para as eleições de 2020 e para a luta pelo socialismo?

terça-feira 6 de outubro de 2020 | Edição do dia

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Os Estados Unidos estão em uma crise profunda que afeta toda a sociedade. Há a pandemia, a recessão econômica, uma crise ecológica, uma crise de confiança nos partidos políticos, e também uma crise de legitimidade em praticamente todas as instituições. Com um dos piores históricos em relação ao coronavírus do mundo, um levante contra a violência policial, e agora com o presidente que ficou os últimos meses menosprezando a gravidade da Covid-19 estando hospitalizado com o vírus - tudo isso enquanto continua a minar ativamente a legitimidade das eleições que estão por vir - cada piora a crise na situação política, econômica e social.

Trump queria que acreditássemos que o país está indo melhor do que nunca, e que a recuperação da pandemia será rápida e já começou, mas os últimos dias tem demonstrado que isso é falso, da pior forma possível. Os sistema político dos EUA foi lançado em desordem porque Donald Trump, vários membros republicanos do Congresso e seu círculo íntimo de amigos contraíram Covid-19. Acontece que, apesar da estratégia de campanha de Trump de fingir que o vírus é coisa do passado e que dias melhores virão, passaremos os próximos 14 dias discutindo os efeitos do vírus na saúde do presidente. Além disso, o Senado está em recesso por mais duas semanas, já que vários membros da casa também estão com coronavírus.

A natureza perigosa da guerra cultural que Trump tentou lançar em torno do uso de máscaras e a seriedade do vírus nunca foi muito clara. Enquanto isso, ele enfrenta o vírus com um exército de médicos à sua disposição - algo muito distante da experiência dos trabalhadores negros e negras que morreram de Covid-19.

Trump também queria que acreditássemos que estamos passando por uma recuperação econômica em formato de V. Os números, no entanto, dizem algo diferente. Se o país realmente se recuperar da depressão da pandemia, iremos entrar numa recessão com perda massiva de empregos a ameaça de despejos em massa. Os altos níveis combinados de dívidas empresariais e baixas taxas de lucro mostram que a queda econômica da Covid é apenas a ponta de um problema muito maior para a economia capitalista. Claro, não podemos descartar a possibilidade de outra queda brusca na economia devido à pandemia, o que faria toda a economia cambalear novamente.

Nesse contexto de crise e incerteza, há uma polarização entre a esquerda e a direita dentre as massas americanas. Vimos o ressurgimento do movimento militante Black Lives Matter e um aumento nas lutas de classes nos locais de trabalho durante a pandemia. O movimento BLM é o maior e mais difundido movimento da história dos EUA, representando - em um país profundamente racista - um giro à esquerda em uma escala massiva. Na direita, temos visto o avanço de vigilantes da direita, mobilizados e prontos para enfrentar manifestantes com violência.

Carros atropelando manifestantes se tornou algo comum, ocorrendo mais de 100 vezes desde junho. E agora, com Trump no hospital, milhares se mobilizaram em marchas sem máscara para se unir a seu líder. Esta extrema direita não é um movimento de massas, mas se mostra cada vez mais violenta. Estão aliados aos policiais, são encorajados por Trump. Se encontram numa situação muito favorável, pois setores do capital podem se apoiar nessa extrema direita para avançar com seus projetos, como vimos nas demonstrações armadas de pessoas demandando a reabertura prematura de vários estados neste ano.

Ao longo de sua presidência, vimos Trump tentar deslegitimar instituições que há muito tempo são consideradas sagradas pelo regime, desde as eleições para a Suprema Corte até o FBI. Ele fez o mesmo no cenário mundial, recuando de instituições imperialistas globais como as Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Saúde. O distanciamento de Trump das instituições, entretanto, não representa uma mudança no conteúdo de classe do governo ou nos objetivos finais do capitalismo; apenas sinaliza uma forma mais unilateral de governar. Alguns setores do capital rejeitam a ousada política externa de Trump, pois observam como ela ajudou a China a abrir caminho durante a crise de hegemonia internacional dos EUA. É por isso que Trump e Biden têm tentado superar um ao outro em quem é mais duro com a China.

Liberais e alguns membros da esquerda estão preocupados com o desgaste de Trump com as instituições que sustentam o sistema capitalista americano, e tentam desesperadamente restaurá-las à sua posição anterior. Eles esperam que Biden reconstrua a legitimidade dessas instituições. É precisamente por isso que o capital está favorecendo amplamente Biden, cuja campanha está atraindo significativamente mais doações de bilionários e de Wall Street. A questão no momento para a classe capitalista é: Quem implementará melhor a austeridade no próximo período? Nesse contexto, enquanto Trump tenta atiçar a direita e se apoiar nela, o papel de Biden é domar a polarização da esquerda.

Nesse contexto, é fundamental que a esquerda lute contra a ascensão da direita e seus ataques contra os direitos democráticos conquistados pela classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, é essencial destacar que as instituições que Trump trouxe ao centro do palco - os tribunais, o FBI e o próprio processo eleitoral antidemocrático - são todas armas do capital usadas contra a classe trabalhadora. O problema não é apenas Trump; é também o sistema que o produziu.

Donald Trump e a direita

Trump deixou claro que planeja semear dúvidas o bastante sobre as cédulas de votação enviadas pelo correio para poder contestar a eleição na Suprema Corte se necessário. E ele foi explícito dizendo que deseja um novo juiz da Suprema Corte que fique do seu lado em tal evento. Ele também disse muito claramente no debate que deseja que sua base de direita e supremacista branca "fique de prontidão" e se mobilize para "vigiar as pesquisas", um movimento que lembra os esforços de intimidação dos eleitores durante a era de Jim Crow.

Essa extrema direita deve ser levada a sério. Os Estados Unidos têm uma longa tradição de setores paramilitares armados de direita desempenhando um papel sabotando os direitos democráticos e aterrorizando a classe trabalhadora e pessoas não-brancas, como fez a Ku Klux Klan no início da era pós-Reconstrução.

Grupos de direita proliferaram durante o governo Obama e encontraram representação em Donald Trump, que apóia o movimento - desde sua recusa em condenar David Duke em 2016 até seu comentário de que há “gente boa em ambos os lados” sobre Charlottesville. Este suporte apenas cresceu. À medida que o movimento Black Lives Matter cresceu em popularidade, Trump começou a apoiar abertamente vigilantes armados como Kyle Rittenhouse e até elogiou o assassinato extrajudicial de Michael Reinoehl como "retribuição".

Trump, entretanto, será capaz de fraudar as eleições? Não sozinho. E a verdade é que, embora sua base de direita seja armada e perigosa, ainda é pequena. Isso causará violência em alguns locais de votação no dia da eleição? Certamente é provável. Isso será o suficiente para roubar a eleição para si? Não. Trump terá que contar com as próprias instituições da democracia burguesa e da classe dominante para isso.

A maioria das análises sugere que muito mais eleitores democratas do que republicanos terão votado pelo correio até 3 de novembro e, portanto, os resultados dos votos que serão contados nas seções eleitorais tradicionais podem ser distorcidos para Trump na noite da eleição. Isso poderia fornecer uma abertura para que Trump reivindique a vitória e prepare um processo judicial para disputar as cédulas de correio. Os tribunais federais e a Suprema Corte estarão ocupados em favorecer os conservadores, e esse pode ser o caminho de Trump para a vitória - e tudo perfeitamente dentro da legalidade.

Como o infame artigo do The Atlantic , “ As eleições que podem quebrar os Estados Unidos” coloca: “Trump é, sob alguns aspectos, um autoritário fraco. Ele tem a boca, mas não os músculos para trabalhar sua vontade com segurança ... Ele dobrou a burocracia e desrespeitou a lei, mas não se libertou totalmente de suas restrições. Um déspota adequado não se arriscaria ao inconveniente de perder uma eleição. Ele fixaria sua vitória com antecedência, evitando a necessidade de anular um resultado incorreto. Trump não pode fazer isso. ”

Em outras palavras, Trump mostrou que late mais do que morde - mesmo que esse latido seja muito perigoso.

Em termos marxistas, Trump é mais bonapartista do que fascista - e é fraco nisso. Bonapartismo se refere a um líder autoritário que surge quando diferentes classes sociais lutam umas contra as outras e diferentes setores do capital não conseguem encontrar uma forma de impor um representante hegemônico. Dito isso, Trump é realmente reacionário e sob outras condições certamente poderia ser um fascista, mas atualmente está usando mecanismos institucionais para implementar políticas reacionárias, não contando com paramilitares armados que atacam a classe trabalhadora em escala de massa. É importante que ele ainda não tenha violado a legalidade burguesa. E ele está realmente fraco, incapaz de conduzir suas políticas, o que coloca um limite em sua tentativa de orquestrar um golpe em qualquer coisa que não seja o cenário da Suprema Corte de 2000 que entregou a eleição a George W. Bush.

Trump como um sintoma e uma causa

Mas não estamos em 2000. Há uma pandemia, uma crise econômica, quatro anos de Trump e uma crescente polarização esquerda-direita. Durante seu mandato, Trump desempenhou um papel central na deslegitimação de muitas das principais instituições do regime dos EUA. Nada é sagrado para Donald Trump, nem mesmo a Suprema Corte ou os resultados das eleições (a menos que ele ganhe). Ele os vê como ferramentas políticas para seu programa. Em meio a disputas entre os capitalistas, ele abriu as cortinas mostrando que as instituições antes tidas como objetivas são na verdade ferramentas políticas que são usadas contra a classe trabalhadora e oprimida.

O Colégio Eleitoral significa que quem ganha a maioria dos votos não necessariamente ganha a presidência. A votação dos trabalhadores é suprimida em geral pela realização das eleições em um dia útil. A repressão eleitoral mais direta, especialmente de comunidades de não-brancos, é antiga e inclui a privação de direitos de pessoas presas atualmente e que já foram anteriormente presas. E já temos o precedente do Supremo Tribunal Federal intervindo para interromper a contagem de votos e decidir uma eleição presidencial. Nove pessoas de elite não eleitas decidiram a eleição de 2000. Eles decidem sobre nossos direitos civis básicos e os direitos reprodutivos de metade das pessoas neste país.

Essa é a “democracia” americana.

O problema agora não é, como os liberais nos querem fazer acreditar, que o fascista Donald Trump veio para quebrar as instituições americanas. Ele não quer quebrá-las. Ele quer dominá-las. O problema é com as próprias instituições. Há uma “crise de democracia” porque a democracia dos Estados Unidos, e o capitalismo em geral, simplesmente não é democrático. Trump é um sintoma e uma causa da crise atual.

O papel de Biden

Para os capitalistas, o objetivo desta eleição é restaurar a legitimidade daquelas mesmas instituições que sustentam o sistema mais desigual do mundo e a potência imperialista mais brutal do mundo. Os capitalistas, em geral, escolheram Joe Biden para esse trabalho.

Biden, que está na disputa pelo político menos carismático da história recente, está liderando a maioria das pesquisas por 10 ou mais pontos nacionalmente, o que é uma expressão de quão profundo é o anti-trumpismo. Ele está fazendo uma campanha que promete “defender a democracia” e trazer de volta a honra às instituições americanas. Algumas figuras republicanas estão até mesmo o apoiando, como é o caso de um setor das forças armadas, porque ele promete restaurar a “legitimidade” dos EUA no cenário mundial - o que significa influência imperialista inquestionável. Não é de se admirar que Biden seja amplamente favorecido pela classe capitalista, arrecadando mais de quatro vezes mais em doações de campanha de Wall Street do que Trump.

Esta é uma boa aposta para os capitalistas. Homens fortes populistas e instáveis ​​como Donald Trump não são os melhores para os negócios no momento. Mas é uma aposta terrível para a classe trabalhadora. Biden é o candidato do establishment que nos oprime, e seu programa é um retorno à “normalidade” que nos trouxe a este ponto catastrófico.

Claro, Biden usa uma máscara - mas ele representa o setor de saúde privada e pretende anular até mesmo a possibilidade do Medicare for All. As centenas de milhares de mortes devido à pandemia não são apenas responsabilidade de Trump, mas também de Biden e seu partido, que falhou em garantir que todos tenhamos saúde como um direito. Biden representa o Projeto de Lei do Crime de 1994, que expandiu o complexo industrial das prisões - e o torna o candidato da “lei e ordem” tanto quanto Trump. Biden representa a “normalidade” de socorrer os bancos enquanto a classe trabalhadora perde suas casas - como fez o governo Obama - e a promessa de que ele vai domar os trabalhadores o suficiente para instituir medidas semelhantes e piores quando for presidente. E no cenário mundial, Biden quer restaurar a legitimidade dos EUA e sua participação nas Nações Unidas e na Organização Mundial da Saúde, mas está igualmente comprometido com os interesses imperialistas, tanto em forma de bombas quanto de sanções.

Biden afirma defender a democracia e ser a antítese de Trump. Mas na verdade ele está fazendo campanha para restaurar a "legitimidade" de um sistema cujos pilares incluem uma Suprema Corte na qual nove juízes não eleitos comandam a população pelo resto da vida, um Colégio Eleitoral que nega o voto popular e a privação sistemática de direitos de pessoas não-brancas e trabalhadores. Biden está fazendo de tudo para restaurar o “normal” quando o normal é o próprio problema.

A campanha de Biden esmagou a plataforma de campanha de seu principal inimigo do Partido Democrata, Bernie Sanders. A campanha de Biden não dialoga de forma alguma à ala mais progressista do partido. Biden até mesmo concorda com Trump sobre o redbaiting anti-socialista (acusar pessoas de comunistas). O fato de Biden ter rejeitado até mesmo a plataforma do “New Deal” (não socialista) de Sanders destaca que sua candidatura é a do consenso capitalista, reunindo as elites republicanas e democratas em uma coalizão anti-Trump.

A esquerda e a classe trabalhadora

A situação política havia oscilado para a esquerda durante o verão, com milhões de pessoas nas ruas, no maior levante da história dos Estados Unidos. Mas, em muitos aspectos, as coisas agora estão girando para a direita. O presidente pretende roubar a eleição e está acelerando sua base de direita para criar o caos. Há marchas pró-Trump nas ruas de Washington, DC, e apenas algumas semanas atrás, neofascistas armados dirigiram pelas ruas de Portland e Seattle. Parece provável que haverá mais Kyle Rittenhouses.

Enquanto isso, os protestos do BLM retrocederam, em grande parte por causa do papel de Biden e das manobras do Partido Democrata, já que eles desempenham um papel histórico de “coveiros dos movimentos sociais”. Um grande setor do que resta do movimento BLM está fazendo fila para votar em Biden, incorretamente vendo-o como um mal menor que permitirá que eles continuem protestando pelas vidas dos negros. Mas como votar em um racista que apóia a violência policial e o aumento do financiamento da polícia pode ajudar o BLM?

Alguns jovens negros estão desiludidos e ficam em casa. Outros fazem parte de uma pequena vanguarda que está sendo cada vez mais criminalizada por democratas e republicanos, mas continua a tomar as ruas. O establishment está aproveitando a atual fragilidade do movimento. Apesar de um verão inteiro de mobilizações, documentários e capas de revistas, os assassinos de Breonna Taylor não foram acusados ​​de seu assassinato.

A esquerda tem uma responsabilidade neste momento. Não podemos criar ou apoiar quaisquer ilusões de que Biden é algum tipo de baluarte contra Trump e a direita radicalizada. Ele não é. Biden é um co-líder da classe dominante, junto com Trump. Ele é um arquiteto do mundo em que vivemos e uma ponta de lança da contra-revolta contra o levante BLM.

Foi o fracasso do projeto neoliberal durante os anos Bush e Obama que preparou o cenário para Trump. Não podemos abrir mão do poder de nossas mobilizações apenas alguns meses depois. Essas mobilizações abalaram a nação. Nem tudo está perdido. Apesar da desaceleração neste período eleitoral, esses protestos estabeleceram uma base para futuras mobilizações.

Agora é a hora de se preparar para as batalhas que virão. Independentemente de se Trump ou Biden ganharem, teremos que lutar contra os capitalistas e seu plano para fazer a classe trabalhadora pagar pela crise econômica, assim como o plano de ataques que Obama fez em 2008.

Protestos de rua não serão suficientes. Precisamos nos organizar para atingir os capitalistas onde dói mais. Teremos que encerrar a produção. E teremos que unir nossas lutas - nossas lutas econômicas e políticas, nossas lutas pela vida dos negros, contra a violência policial, contra os despejos e contra as reaberturas prematuras e forçadas. Precisamos fechar este país e exigir nossos direitos. Organizações como a DSA devem romper com os democratas e mobilizar seus membros para lutar nas ruas e em seus locais de trabalho, seja contra o governo dos EUA liderado por Trump ou Biden e a classe dominante.

Votar em Joe Biden não é a solução para a ameaça crescente da direita. Para garantir que Trump não roube a eleição, devemos organizar mobilizações de massa e greves exigindo que todos os votos sejam contados, não em apoio a Biden, mas em apoio aos nossos direitos democráticos. Essas mesmas mobilizações devem exigir a abolição de instituições não democráticas, como o Colégio Eleitoral e a Suprema Corte. Precisamos construir a força, a confiança e a estrutura para defender nossos direitos democráticos básicos agora, sabendo que precisaremos lutar no próximo período pelos nossos direitos e contra os capitalistas que obrigam os trabalhadores a pagar pela crise econômica.

Traduzido de: https://www.leftvoice.org/an-election-in-turmoil-a-regime-in-decline




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