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DOSSIÊ TRUMP | Trump: a queda do relato neoliberal

A vitória de Trump tem sido objeto nas últimas semanas de diversas análises sobre suas causas e possíveis efeitos. Neste dossiê, além das reflexões de Claudia Cinatti do staff da rede do Esquerda Diário, contamos com as contribuições de distintos intelectuais e referências de esquerda que vivem nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha e que oferecem seus próprios pontos de vista, com os quais não necessariamente concordamos, no debate sobre esse fenômeno que tem agitado o panorama político a nível internacional: Mike Davis, Tariq Ali, Kshama Sawant, Bhaskar Sunkara. O dossiê foi publicado originalmente em 10 de Dezembro de 2016.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

sexta-feira 20 de janeiro de 2017 | Edição do dia

Leia as matérias do dossiê

Mike Davis: Os Mortos Vivos

Tariq Ali: A vitória de Trump, algumas primeiríssimas reflexões
Kshama Sawant: Construir um movimento contra o establishment democrata e republicano
Bhaskar Sunkara do Jacobin: A revitalização da esquerda virá junto com a da classe operária

Muito se tem escrito para digerir a avalanche conservadora que tingiu de vermelho republicano o mapa dos Estados Unidos. Provavelmente, nem os roteiristas de House of Cards tenham imaginação suficiente para projetar o futuro da Casa Branca. A transição já começou a andar na Trump Tower, com uma forte orientação conservadora e de direita.

O “Brexit moment” dos Estados Unidos
Os grandes meios corporativos, que militaram pela Hillary Clinton, recorreram à metáfora do “cisne negro” para explicar o desconcertante triunfo de Donald Trump. Porém, quando os “cisnes negros” saem em bando, como ocorreu nesse ano – o triunfo do Brexit, as eleições presidenciais nos Estados Unidos, a ascensão do UKIP, da Frente Nacional e de outras variantes da extrema direita europeia –, a teoria da aves rara perde valor explicativo. Embora haja particularidades nacionais e muitas razões combinadas – econômicas, mas também étnicas, religiosas, de gênero, geográficas, culturais, etárias –, as causas eficientes da irrupção dessa espécie de “internacional populista” de direita existem há um tempo. Deve-se buscá-las nas condições de polarização social criadas pela crise capitalista de 2008, que teve seu epicentro nos países centrais. E, mais em geral, nas décadas de globalização e neoliberalismo que deixaram como saldo uma desigualdade obscena e criaram um punhado de grandes ganhadores – corporações e bancos – e uma multidão demasiado numerosa de perdedores. Entre estes últimos, contam, fundamentalmente, as classes médias com nível educacional baixo ou médio e setores dos trabalhadores industriais (da qual também fizeram parte trabalhadores industriais), frações do capital não globalizado, microempreendedores e pequenos exportadores que se sentem impotentes diante de forças que não controlam e, como dizia a consigna da direita pró-Brexit, querem “recuperar o controle”. Esse conglomerado social heterogêneo é o que está por trás da revolta contra o “establishment” e os partidos tradicionais – conservadores, socialdemocratas ou liberais – que conformaram o “extremo centro” [1] do consenso neoliberal, para usar a acertada categoria de Tariq Ali.

Ao longo da campanha eleitoral norte-americana que teve início com as primárias de ambos os partidos, esse repúdio à casta política teve múltiplas expressões: a altíssima impopularidade tanto de Trump como de Hillary, a explosão do fenômeno juvenil que se manifestou na candidatura de Sanders, o baixo comparecimento às urnas e também os quase 7 milhões de votos que receberam os terceiros partidos, entre eles o Partido Verde, que se apresentou como uma alternativa pela esquerda. Essa votação em terceiros partidos triplica a de 2012 e esteve concentrada sobretudo nos millennials.

Trump perdeu o voto popular por uma margem que não tem precedentes históricos. A diferença a favor de Hillary poderia terminar próxima aos 2 milhões de votos. O antecedente mais próximo é o de George W. Bush, que perdeu a eleição popular com Al Gore por 540 mil votos no ano 2000, apesar de ter sido consagrado presidente por uma decisão da Corte Suprema. Isso mostra o caráter profundamente antidemocrático do sistema político norte-americano, que dá um peso desproporcional às zonas rurais no Colégio Eleitoral.

Por mais que agora seja uma anedota, mostra até que ponto estão podres as bases do bipartidarismo. Resumindo, mais do que a última série de surpresas desagradáveis, o triunfo de Trump confirma e aprofunda a tendência à crise orgânica que vem se manifestando nos países centrais a partir da Grande Recessão de 2008 e pode ser lido como esses “fenômenos aberrantes” dos quais falava Antonio Gramsci, que surgem em situações intermediárias quando o velho não vai mais e ainda não estão claros os contornos do novo.

Essa mudança de rumo na política norte-americana anuncia que se abrem tempos extraordinários, uma situação em que estão inscritas maiores tensões interestatais, guerras comerciais, conflitos militares, agudização da luta de classes e respostas burguesas no mínimo cesaristas.

O governo e o mundo que vêm

Apenas o fato de que tenha ascendido à presidência da principal potência mundial um multimilionário xenófobo que flerta com o protecionismo e o nacionalismo é uma amostra de que a ordem neoliberal comandada pelos Estados Unidos, que após o fim da União Soviética anunciavam o reinado do livre mercado e da globalização sem alternativas (o falido “fim da história”), está sendo dinamitada desde dentro.

Nem os aliados nem os inimigos e competidores dos Estados Unidos sabem muito bem o que esperar no próximo 20 de Janeiro, quando Trump se tornar formalmente o 45º presidente norte-americano e os republicanos passarem a controlar todo o poder estatal.

O establishment, esse “inquieto clube de executivos, generais e políticos”, como definido por Howard Zinn, que quase em sua totalidade jogou a favor da continuidade que expressava Hillary Clinton, passou do choque inicial ao pragmatismo. Todos os sinais políticos indicam que o sistema bipartidarista parece disposto a metabolizar o “fenômeno Trump” e baixar a intensidade dos “apocalipses” a uma mais modesta “presidência de transição”.

Não está dito que não o consigam. Contudo, é muito provável que a governabilidade requeira uma completa negociação entre a coleção de frações e grupos de interesse que compõem o Partido Republicano, dentro do qual perderam a hegemonia os conservadores moderados a favor da (extrema) direita racista, sexista, xenófoba, homofóbica.

Talvez a adrenalina de ter voltado à Casa Branca e a necessidade de influir sobre as decisões do próximo presidente façam com que o Grand Old Party deixe para trás o #NeverTrump e rodeie o magnata. Junto a supremacistas raciais e membros da chamada “alt-right” [2], vários nomes tradicionais do Partido Republicano já ressoam para integrar o próximo gabinete: Newt Gingrich, o autor da “revolução conservadora” de 1994; R. Giuliani, o prefeito policial da “tolerância zero” da cidade de Nova York, Reince Priebus, o presidente do partido. Generais aposentados e inclusive conservadores moderados como M. Romney desfilaram pela Trump Tower, desde onde o empresário está comandando a transição e gestando seu governo. Mesmo os “neocon”, a fração dos “falcões” mais refratária à liderança de Trump e mais próxima à Hillary Clinton em política exterior, também buscam se infiltrar no arranjo da nova administração. Mesmo que pareçam visões difíceis de conciliar, não há uma muralha entre o isolamento seletivo que anuncia Trump e o unilateralismo que professaram os neocon sob os dois governos de Bush. Ambos consideram que se deve redefinir o papel das instituições da “comunidade internacional” como Nações Unidas e a OTAN, as que percebem como obstáculos relativos para a realização do interesse nacional norte-americano.

A aposta do “mainstream” é de que a presidência de Trump esteja dentro dos parâmetros de um governo republicano inovador, a la Ronald Reagan. E um aspecto disso tem. Em um sentido, o “trumpismo” poderia definir-se como a “reaganomics” (baixa de impostos aos ricos, desregulamentação e taxas de lucro mais altas) mais medidas protecionistas. No plano interno, a reindustrialização é uma quimera, mas Trump parece decidido a que retorne ao país uma porção do capital norte-americano que está fora. Tem para oferecer na negociação uma baixa do imposto corporativo, de 35% a 15%, desregulamentações e outros cortes como a abolição do chamado “Obamacare”, que liberaria os empresários dos custos do sistema de saúde. Até agora, o único mais concreto é um plano de obras públicas. Não parece ser ainda suficiente para equiparar os benefícios das deslocalizações às zonas de baixos salários.

Ninguém pode arriscar ao certo qual será o caminho para “Fazer grande novamente os Estados Unidos”. Mas o que já se pode dar por descontado é que uma porcentagem dos slogans da campanha de Trump não será apenas demagogia eleitoral. Vários analistas consideram que esse giro brusco da política norte-americana tem o potencial de produzir mudanças geopolíticas e econômicas equivalentes à queda do muro de Berlim de 1989, ainda que de significado contrário.

Está claro que a política exterior de Trump vai significar uma mudança de rumo em relação a Obama, que levou adiante uma política de “centro” para recompor a liderança mundial dos Estados Unidos e que privilegiava a diplomacia para diminuir a exposição militar direta e dar por superada a derrota da estratégia militarista e unilateral de Bush e os neocon, que levaram às guerras e ocupações do Iraque e Afeganistão.

Nas mensagens oficiais sobre o que poderiam ser seus primeiros 100 dias de governo, o presidente eleito anunciou medidas já conhecidas: retirar os Estados Unidos do Tratado Transpacífico e renegociar os termos do TLC com o México e talvez também com a OMC, com a ameaça de abandonar os acordos se não forem mais favoráveis para os Estados Unidos. Buscar a cooperação da Rússia para combater o ISIS e encontrar uma saída para a crise na Síria, o que supõe a continuidade de Assad. Renegociar com os aliados um maior aporte ao financiamento da OTAN e condicionar as bases que os Estados Unidos têm em outros países como Japão e Coreia do Sul. No Oriente Médio, a política pareceu ser reafirmar as sociedades tradicionais como as que os Estados Unidos têm com Israel e as monarquias do Golfo, o que poderia levá-lo a repudiar ou ao menos repensar o acordo com o Irã.

A relação com a Rússia e a China segue sendo terreno de especulação. Parece difícil que Trump possa mudar o que foi uma política de Estado durante as últimas duas décadas, marcadas pela hostilidade em relação à Rússia. Em última instância, essa estratégia obedece a um interesse fundamental de longo prazo que é a redução da Rússia ao status semicolonial. Contudo, as declarações amistosas de Trump a Putin já estão causando nervosismo nos países bálticos e no Leste Europeu que se incorporaram à OTAN e estão na primeira fila da implantação de mísseis do Ocidente contra a Rússia.

Alguns se inclinam para que Trump tenha uma política mais dura, mas no terreno da negociação, e outros põem o eixo em que não se podem descartar aventuras. As apostas estão abertas. Entretanto, em condições de ascensão de nacionalismos vários, de perspectivas de guerras comerciais ou ao menos de concorrência aguda e de deterioração persistente da hegemonia norte-americana, qualquer ação unilateral dos Estados Unidos pode derivar em crises de magnitude imprescindível. Para isso, o mundo parece estar se preparando.

Bonapartismo, fascismo e o debate da esquerda

O conteúdo concreto social e político do fenômeno Trump ainda é tema de debate. De todos os recortes possíveis da composição do voto de Trump, o que tem recebido mais atenção é o voto de uma porcentagem inesperada de mulheres, dada a misoginia manifesta do novo presidente, e sobretudo o voto de setores da velha classe trabalhadora industrial branca – os rednecks ou, como também são chamados, o “trumpenproletariado”, caracterizado por seu atraso político e certa sensibilidade ao racismo e à xenofobia. Convém analisar mais de perto esse fenômeno.

É um fato que nos swing states a grande maioria dos trabalhadores de “colarinho azul” foi interpelada pela demagogia de Trump, que fez como nunca uma campanha no “Rust belt” com a promessa de restaurar os postos de trabalho perdidos. E contra todo prognóstico, expandiu para mais além do eleitorado republicano tradicional. No entanto, o núcleo duro da base social “trumpista” está fundamentalmente nos pequenos empresários e profissionais autônomos, que, diferentemente das grandes corporações, não se beneficiam dos tratados de livre comércio e das importações e, por outro lado, são sensíveis aos discursos que combinam o protecionismo econômico com o programa tradicional republicano-reagoniano da baixa de impostos e da eliminação de regulações estatais (entre outras, o sistema de saúde, que sob a legislação atual são obrigados a pagar em parte). Como disse uma interessante nota publicada na Jacobin, mais que uma revolta dos assalariados, Trump representa a “revanche do encanador Jo” [3], o ativista conservador que repreendeu Obama em Ohio nas primárias de 2008 e se transformou no símbolo da frustração da pequena burguesia.

Apesar de ter obtido uma porcentagem maior que a de Reagan nas famílias em que há ao menos um filiado aos sindicatos, Trump combateu ativamente a sindicalização como empresário e assume com uma clara política antissindical, típica do Partido Republicano, que inclui reforçar as leis do “direito ao trabalho” e derrogar as escassas leis da era Obama, o que praticamente equivale a proibir os sindicatos no setor privado e escalar o ataque sobre os sindicatos dos trabalhadores públicos [4].

A emergência de Trump abre um amplo debate estratégico na esquerda. Vários intelectuais liberais, de esquerda e socialdemocratas, em todo o mundo, arriscam suas definições.
J. Habermas define Trump como parte da onda populista, como uma espécie de ruptura da racionalidade política. Para o sociólogo polaco Z. Bauman, estamos diante da emergência de um “líder decisionista”, retomando a definição clássica de Carl Schmitt do poder soberano que tão bem explicou as primeiras etapas do nazismo. Para Alain Badiou, trata-se de uma espécie de “fascismo democrático”, uma contradição nos termos que o filósofo francês resolve à sua maneira, dizendo que é dentro do sistema democrático e sem enfrentar os inimigos que o fascismo enfrentou nos anos ’30, o movimento operário e os partidos comunistas. Além disso, abundam as referências ao 18 Brumário ou as analogias com as eleições alemãs de 1933 para dimensionar a potencialidade reacionária do triunfo de Trump.

Em sentido estrito, Trump expressa mais o giro a um regime mais bonapartista e autoritário do que a emergência imediata do fascismo, mas sem dúvidas contém elementos fascistizantes, como o KKK e os grupos supremacistas da “alt-right”, em um marco no qual já existe de fato uma guerra civil escondida contra a população afroamericana. Como ocorreu com o Brexit, uma parte minoritária da esquerda partidária e de intelectuais progressistas põe o eixo em que, em última instância, o triunfo de Trump tenha um custo positivo porque pode desestabilizar a classe dominante e expressa cruamente o caráter despótico do poder capitalista. Esses setores tendem a diminuir o fato de que franjas importantes do proletariado optaram por um “salvador”, um multimilionário racista e xenófobo que promete restaurar o poderio do imperialismo norte-americano.

O governo de Trump será um governo da ala direita da burguesia, não devolverá aos trabalhadores seus empregos e seus salários perdidos e atacará conquistas democráticas como o direito ao aborto. Seu triunfo já tem encorajado grupos rançosos da extrema direita.

Porém, seria incorreto afirmar que o único fenômeno é um giro uniforme e unidirecional à direita. Existe um neorreformismo que, como mostrou a subordinação de Sanders ao Partido Democrata, é impotente frente à ascensão da extrema direita.
O mais auspicioso é o processo de mobilizações que começaram na própria noite da vitória de Trump. Dezenas de milhares de jovens, trabalhadores, estudantes, mulheres saíram às ruas ou tomaram os campi universitários para dizer que não vão permitir deportações de imigrantes não documentados e que vão resistir.

A classe operária não se recuperou da derrota dos anos de Reagan, mas nos últimos anos têm surgido novas formas de luta e organização, como o movimento Black Lives Matter, o movimento pelo salário mínimo e as greves dos fast foods e grandes cadeias de supermercados, sem contar o movimento antiguerra, Occupy Wall Street e antes, o movimento No Global que explodiu em Seattle em 1999. Trump representa o perigo de uma ruptura entre a classe operária e seus aliados das minorias afroamericana, imigrantes e as mulheres.

Por isso, o que está na ordem do dia é a construção de um “terceiro partido” que tem de ser de esquerda, operário e revolucionário, para poder levantar um programa que unifique as forças dos explorados e oprimidos tanto dentro como fora dos Estados Unidos contra o capital. O relógio já está em marcha.

Notas

[1]. Tariq Ali, El extremo centro, Alianza Editorial, 2015. Em um sentido similar, Peter Mair havia feito uma análise profunda da crise dos partidos tradicionais e da democracia capitalista mais em geral a partir da queda do muro de Berlim e sua relação com o surgimento da “anti-política”. Ver: “Rullying the Void? The Hollowing of Western Democracy”, NLR 42, 2006.

[2.] A chamada “alt-right” (direita alternativa) é um conglomerado frouxo e heterogêneo de grupos e indivíduos de extrema direita que defendem a “identidade branca” e a “civilização ocidental” e se opõem ao establishment conservador tradicional. Steven Bannon, nomeado por Trump como seu assessor principal é acusado de pertencer a este grupo.

[3.] M. McCarthy, “The Revenge of Joe the Plumber”, Jacobin, 26 de outubro de 2016. Se se tem em conta que há umas 30 milhões de empresas pequenas que empregam mais da metade dos trabalhadores, compreende-se o peso específico desse setor.

[4.] R. Verbruggen, “Trump and the Unions”, The American Conservative, 20 de noviembre de 2016.




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