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Trotsky e a Assembléia Constituinte – Parte IV (Quem a instaurará?)

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quarta-feira 18 de janeiro de 2017 | Edição do dia

O leitor desta série (Parte I, II e III) deve se perguntar a razão da busca deste tema da assembléia constituinte em países tão diversos, estruturas e formações sociais tão distintos entre si.

A primeira resposta a esta indagação vem do próprio motivo da pesquisa: como um revolucionário como Leon Trotsky se dedicou a articular a consigna democrático-radical da assembléia constituinte, como alavanca preparatória da revolução socialista, em formações nacionais tanto do “Ocidente” como do “Oriente” (conceitos utilizados à época da III Internacional em seus quatro primeiros Congressos, ou seja, as estruturas mais complexas do parlamentarismo ocidental, e as de capitalismo atrasado no conjunto das colônias e semicolônias do Oriente).

Mas há outros dois aspectos igualmente ou mais importantes. Em primeiro lugar, mostra a potência da “grande estratégia” da revolução mundial, a denominada teoria da revolução permanente, contra a diferenciação pedante e morta entre “países maduros e não maduros para a revolução socialista”, estabelecida pelo stalinismo (e que influenciou a perda de horizonte revolucionário em praticamente toda a esquerda até hoje).

Em segundo lugar, observando os escritos de 30 de Trotsky, é possível ver como utiliza, com forte imaginação criadora, as consignas da “democracia revolucionária” para minar as bases dos próprios regimes democrático-burgueses no “Ocidente”, ou para evitar desvios “democratistas” nos países em que a burguesia, por seu caráter débil e tardio, não pode instituir suas próprias tradições parlamentares e surgem como apêndices do imperialismo.

Neste último caso se enquadram a Índia e a Indochina (atual Vietnã), países coloniais “clássicos” onde se desenvolviam núcleos da Oposição de Esquerda trotskista na década de 1930.

A experiência na Índia

Vimos no caso da China (na Parte II das “Notas”) como Stálin e Bukharin, dirigentes da degeneração burocrática da Internacional Comunista depois de 1924, aplicaram a concepção menchevique (reformista) da revolução democrática no processo chinês de 1925-27. Para assegurar à burguesia chinesa um papel dirigente na revolução (esta era a concepção fundamental do menchevismo russo), a burocracia stalinista transformou o jovem Partido Comunista Chinês numa seção subordinada do partido burguês nacional (Kuomintang). Assim, o partido dos trabalhadores entrou na revolução como cativo da burguesia. O resultado é conhecido: a burocracia stalinista destruiu a revolução chinesa.

Repetindo esta mesma estratégia, Stálin preparava a derrota da revolução hindu, que estava em ascenso no início dos 30 contra a dominação britânica. Concediam à burguesia hindu o privilégio de conduzir com seu programa as camadas enormes da população camponesa, além do pequeno mas importante proletariado urbano.

Vimos como Trotsky, pelo contrário, ligava a articulação das consignas democrático-radicais com a intervenção dirigente da vanguarda da classe trabalhadora como sujeito da revolução sobre o restante das classes oprimidas. Na Índia não era diferente: se o proletariado hindu era menor numericamente que o russo, isto não significava que suas possibilidades revolucionárias eram menores; pelo contrário, todas as peculiaridades que tornaram inevitável a Revolução de Outubro na Rússia existiam na Índia de forma agravada. Os stalinistas tinham a posição oposta: subordinavam os trabalhadores ao programa burguês, e negavam qualquer utilização das consignas da “democracia radical”.

Trotsky, no documento “Tarefas e perigos da revolução na Índia”, de maio de 1930, diz que:

"Para o camponês a revolução democrática significa igualdade, principalmente a partilha equitativa da terra. A Assembléia Constituinte, na qual formalmente os representantes de todo o povo ajustam suas contas com o passado, mas que em realidade as distintas classes sociais ajustam suas contas recíprocas, é a expressão generalizada, natural e inevitável das tarefas democráticas da revolução não só na consciência das massas camponesas que despertam mas também na consciência da própria classe operária. Na Índia, a consigna da constituinte ganha um significado particularmente profundo”.

Segundo Trotsky, por culpa da errônea e traiçoeira direção stalinista, o Partido Comunista da Índia se privou "em meio ao ascenso revolucionário, de uma das armas mais importantes para mobilizar as massas, precisamente a consigna democrática da assembléia constituinte".

Alguns meses depois retorna ao tema, em sua carta “Sobre a declaração dos oposicionistas vietnamitas”, de setembro de 1930, o diálogo com os revolucionários da outrora Indochina partia desta articulação da defensiva para a ofensiva, também com o tema da constituinte.

Para os camponeses, a revolução democrática é, antes de mais nada, a solução do problema da terra e sua libertação do jugo dos impostos e do militarismo, o que é impossível sem a libertação nacional. Para os operários a redução da jornada de trabalho é a pedra fundamental da democracia, porque é a única coisa que lhes dá a possibilidade de ter participação na vida social do país. [...] Para lutar contra o sanguinário regime da ocupação francesa, devemos levantar as consignas da democracia mais completa e conseqüente. Os comunistas devem ser os melhores e mais valentes combatentes contra a injustiça militar, pela liberdade de palavra e reunião, e pela assembléia constituinte vietnamita. Não podemos chegar à ditadura do proletariado negando a democracia a priori. Somente na luta pela democracia a vanguarda comunista poderá dirigir a maioria da nação oprimida e criar assim as condições para a transição para a revolução socialista em inseparável união com o movimento operário mundial.”

O grande interesse destas reflexões é que, ao utilizar estas consignas democrático-radicais para opor a vontade dos trabalhadores e camponeses à vontade dos generais, capitalistas e latifundiários, dotava-se esta política de capacidade mobilizadora para batalhar pelos grandes temas nacionais (como a revolução agrária e a expulsão do imperialismo), e por essa via iniciar o reagrupamento destes “volumes de força material”, força de classe (frente única defensiva), que no próximo ascenso poderia levar à instauração insurrecional de uma democracia dos trabalhadores contra os exploradores, em ruptura com o capitalismo.

Não se trata de equivaler as condições, situações e estruturas sociais do Brasil com a Índia ou ao Vietnã daquela época (como não se disso com a China) mas de entender a lógica política que movia a imaginação criadora de Trotsky.

No Brasil, está claro, uma Constituinte Livre e Soberana imposta pela luta teria como objetivo opor a vontade dos oprimidos contra os opressores em todas as principais questões nacionais, ou seja, incrementar – e não diminuir – o grau de luta de classes e a recomposição dos trabalhadores como sujeito político independente contra a direita e seu Congresso, e também contra a conciliação do PT na política e no movimento sindical.

Quem instaurará a assembléia constituinte, e como funcionará?

Uma observação final não poderia ficar ausente, já que se trata de uma dúvida recorrente na própria esquerda. Ainda aqueles que simpatizam com a idéia, renovam suas dúvidas: seria factível convocá-la no Brasil? Se sim, que sujeito social a instauraria? Para a maior parte da esquerda, o fato de que os partidos golpistas tenham se fortalecido na superestrutura torna quase impossível que ela seja convocada pelas organizações de massas do movimento operário. E isso, desde já, mostraria “quão utópica” é a idéia.

Vale refletir algo mais antes de conclusões precipitadas. Não há nenhum motivo para decidir de antemão que “não é factível”. Para o caso da Índia, Trotsky se esforça por traçar mais um paralelo com a China, para concluir que a questão de “quem instaura” uma assembléia constituinte é um problema que se define pela relação de forças que resulta das batalhas para impô-la.

Quem instaurará a assembléia constituinte, e como funcionará? Apenas podemos especular. No caso de um debilitamento maior do regime dos militares e do Kuomintang, e de um crescente descontentamento das massas, sobretudo das cidades, pode ser que um setor do Kuomintang, com algum ‘terceiro partido’, tente convocar algo que se pareça a uma assembléia nacional. Obviamente, restringiriam o mais que possível os direitos das classes e setores mais oprimidos. Nós, os comunistas, entraríamos numa assembléia nacional assim restringida e manipulada? Se não contamos com as forças suficientes para substituí-la, isto é, para tomar o poder, é óbvio que entraríamos. Essa etapa não nos debilitaria, minimamente. Ao contrário, nos ajudaria a reunir e desenvolver as forças da vanguarda proletária. Nesta assembléia espúria, e acima de tudo fora da mesma, desenvolveríamos nossa agitação por uma nova assembléia mais democrática. Existindo uma mobilização revolucionária das massas, simultaneamente construiríamos sovietes. É muito possível que, num caso, os partidos pequeno-burgueses convoquem uma assembléia nacional relativamente mais democrática, que sirva de dique de contenção diante dos sovietes. Participaríamos nesse tipo de assembléia? Supostamente, sim. Novamente, somente se não contássemos com as forças suficientes para superá-la com um tipo mais elevado de governo, ou seja, com os sovietes. Entretanto, essa possibilidade surge somente no auge do ascenso revolucionário”.

Note-se a audácia do sistema de engrenagens proposto por Trotsky: não se possuindo a força suficiente para superar a democracia burguesa, admite-se a entrada dos revolucionários numa assembléia constituinte restrita e manipulada (reacionária) para que nela se batalhe por uma convocatória mais democrática. E que no curso dos eventos sirva de “escola de parlamentarismo revolucionário” para os trabalhadores. Em todos os casos, trata-se de servir-se das circunstâncias impostas pela luta de classes para desenvolver os volumes de força que em dinâmica servirão para a destruição do poder burguês.

Desde já que buscamos as melhores condições possíveis. É por isso que no Brasil o MRT levanta uma Assembléia Constituinte, Livre e Soberana, imposta pela luta dos trabalhadores, e onde a tática da frente única defensiva desempenha um papel nada negligenciável.

Acreditamos ter perpassado nestas quatro “Notas” as principais questões sobre a Assembléia Constituinte no pensamento marxista. O que nos permite dar o passo seguinte desta série de ensaios e debater o problema da hegemonia operária, um problema estratégico crucial para a discussão destas táticas e da política revolucionária no século XXI.




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