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Quão transtornado é um mundo onde até mesmo uma atividade vital elementar como a alimentação é objeto de controle e adoecimento de massas? Somente a histórica e nefasta aliança entre a classe burguesa e o patriarcado pode explicar tamanha aberração.

Marie CastañedaEstudante de Ciências Sociais na UFRN

quarta-feira 8 de dezembro de 2021 | Edição do dia

Na mesma realidade onde milhões padecem pela fome, outros tantos que dispõe de alimentos para sobreviver veem se conformar aí um terreno de sofrimento, adoecimento e controle sobre seus corpos. Somente no Brasil, a OMS dá conta de mais de 8,4 milhões de pessoas diagnosticadas com algum tipo de transtorno alimentar. Entre os jovens cerca de 10% convivem com isso. Esses números, entretanto, são seguramente menores do que a realidade. Isso porque sobretudo as camadas mais precárias da população jamais têm acesso a um diagnóstico e muito menos a um tratamento, uma pesquisa levada adiante pelo The Trevor Project nos Estados Unidos mostrou que 54% das LGBT declaravam ter algum distúrbio alimentar.

A maioria dos que convivem com isso são mulheres, mas homens também compõe esse número, porque o sistema capitalista e patriarcal, embora oprima duplamente as mulheres, não poupa os homens do controle e mercantilização de seus corpos. Os transtornos alimentares são a expressão doentia desse sistema na relação vital e elementar entre as pessoas e os alimentos através dos quais sobrevivem.

O objetivo dessas linhas não é indicar tratamentos nem abundar acerca de como reconhecer esses problemas, tampouco de suas causas e consequências. O objetivo aqui se restringe a mostrar como essa é uma entre tantas formas através das quais o sistema capitalista e patriarcal impede que sobretudo as mulheres e os setores mais oprimidos da sociedade, como a população LGBTQI+, tenham uma perspectiva objetiva de si mesmos e possam, a partir disso, fazer de seus corpos um instrumento de intervenção consciente na realidade.

Se trata de uma realidade na qual a desumanização é ferramenta de potencialização dos lucros dos capitalistas. Assim, se naturaliza o fato de que algumas pessoas simplesmente não comem, ou comem pouquíssimo, enquanto outras comem compulsiva e descontroladamente. Há ainda aquelas que, mesmo sem ninguém ver, comem e correm ao banheiro mais próximo para tirar de dentro de si à força a comida ingerida, muitas vezes até que saia sangue da garganta ou do estômago. A parte que ninguém vê disso envolve ainda culpa, pensamentos obsessivos, auto-punição, auto-mutilação, alcoolismo e, em casos mais graves, a morte ou adoecimento crônico. Envolve ainda uma amarga e contraditória satisfação por passar dias e dias sem comer, por ver o corpo diminuindo de tamanho às custas da saúde. Em outros casos envolve a frustração de ver que, mesmo descontando todo tipo de sentimento de ansiedade, tristeza, angústia e outros na comida, de maneira descontrolada, cada um dos motivos da ansiedade, tristeza e angústia se mantêm intactos, com o adicional de um enorme mal-estar físico e mental.

Essas pessoas convivem com o medo da comida, com o medo da transformação que os sofrimentos e frustrações descontados na comida podem gerar em seus corpos, com a vergonha de se alimentar e principalmente de expor seus corpos a um mundo que historicamente os julga e seguirá julgando e que, independente do peso e da aparência, nos ensina a se odiar constantemente. E quão caro é esse ensinamento a um sistema capitalista e patriarcal. A condição das mulheres e homens proletários como objetos de geração de lucro a uma minoria exploradora, como alvo de dominação objetiva e subjetiva, é fundamental para a manutenção e o funcionamento do sistema. O machismo enquanto ferramenta de anulação política de amplas camadas da população tem aí apenas uma de suas múltiplas expressões.

Não é por acaso que, embora setores dessa mesma classe dominante tentem surfar na força que o feminismo tomou nos últimos anos vendendo ideias de uma auto-aceitação abstrata e mercantil, como fazem empresas como a Dove, a Natura e outras, seguimos sendo bombardeados constantemente por padrões estéticos irreais - a não ser que se deposite todas as energias da vida para alcançá-los para enfim se frustrar, porque são fruto de edições e distorções. Corpos comuns, que não dispõe de todo tipo de condições materiais para centrar-se nele, são grandes ausentes na mídia hegemônica e por isso propagandas que apresentem mulheres reais ganham um apelo tão grande, transformando-se em um nicho de mercado produzindo ainda mais lucro para uma classe dominante que vive da exploração e degradação dos corpos dos trabalhadores.

Isso é parte de uma operação mais ampla, que tem no controle sobre os corpos uma importante ferramenta de pacificação e domesticação dos setores mais oprimidos. Porque uma vez que o sistema nos entende somente como produtores de lucro e alvo de exploração, tudo que contribua para que não se tenha uma visão objetiva de si mesmo ajuda a gerar disciplina nesta condição de força de trabalho explorada e, no caso das mulheres trabalhadoras, também produtoras de mais força de trabalho explorada.

Quer dizer, milhões de mulheres, LGBTQI+ e também homens depositarem muitas horas, inclusive anos de suas vidas na tentativa de alcançar um corpo irreal, e essas pessoas desenvolverem doenças e arriscarem suas próprias vidas com isso, contribui a que não consigam se ver como capazes de transformar sua própria vida, muito menos a realidade de conjunto a seu redor. Tudo isso é parte de cadeias de opressão e exploração muito mais amplas, às quais somos constantemente submetidos.

Não à toa os transtornos alimentares dificilmente existem de maneira isolada. Estão comumente relacionados com a depressão, ansiedade e outros problemas dessa ordem, também fruto de uma sociedade doente e doentia, que sobretudo à juventude não reserva outra perspectiva de futuro que não seja de mais miséria, opressão e exploração. É por isso também que a pandemia de depressão que já se via no mundo foi potencializada pela pandemia do coronavírus. Com isso, os transtornos alimentares voltaram à pauta, embora nunca tenham deixado de existir na vida concreta, sobretudo das jovens.

Como foi dito, aqui não serão apontados tratamentos, causas e sintomas de transtornos alimentares. Nosso objetivo é localizar esse sofrimento solitário de milhões de mulheres, meninas, homens e pessoas de todos os gêneros no marco de um sistema que nos quer domesticados e doentes, e que nos impõe distintos caminhos para padecer nessas condições.

Naturalmente é necessário estabelecer uma relação consciente com a comida, mas isso depende de múltiplas variantes, que em cada pessoa remeterá a distintas experiências, traumas e outros aspectos. Mas, mais do que isso, é necessário se enxergar objetivamente como sujeito de intervenção na própria vida e na realidade de conjunto. Não porque isso vá "curar" quaisquer problemas dessa ordem, mas porque é somente através de uma intervenção consciente e coletiva na realidade que pode se dar a mudança profunda capaz de erradicar toda a opressão que nos faz odiar a nós mesmos e adoecer por isso (sendo esse apenas um único aspecto da opressão de conjunto que é nos é imposta).

E essa obra coletiva de intervenção consciente e transformação da realidade terá de se dar com as camadas exploradas da humanidade tais quais elas são. Com todas as suas contradições, com todas as suas limitações, com todos os seus atrasos e traumas, com tudo que os explorados herdaram inclusive de pior da sociedade capitalista. Quer dizer, carregar contradições desse tipo não será um limitante e, inclusive, os sofrimentos individuais de cada explorado e oprimido agregará força e ódio a cada uma dessas batalhas. Porque, como nos ensina um importante revolucionário, aqueles que mais sofrem com o velho são os que mais fortemente batalharão pelo novo.

Esta frase tem um sentido comum com o qual dificilmente se pode discordar. A massa da classe trabalhadora, milhões de mulheres que têm seus corpos gastos e mutilados nos locais de trabalho e pela dupla, tripla, e infinita jornada, todo sofrimento ao qual é submetida, se reverterá em urgência de transformação profundíssima da vida.

Quando Leon Trotski escrevia isso, fazia uma aposta concreta em quem poderia ser o setor linha de frente da dinâmica de transformações da sociedade. Dizia também que tais transformações dependiam necessariamente de um "desejo íntimo e individual de auge cultural" que Trotski descreve, logo depois de afirmar que o egoísmo dos homens, em uma sociedade que batalha para se tornar socialista, não tem limites.

Sabemos que o patriarcado é anterior ao capitalismo e debatemos como se dá sua conexão e se desenvolveu sua dependência, por isso é necessário destruir o capitalismo para poder acabar com a opressão às mulheres e neste sentido, estamos tratando de uma batalha ideológica, do modo de viver que tem suas consequências e bases materiais. Mas o que isso tem a ver com o debate sobre transtornos alimentares e gordofobia na atualidade?

Este “desejo íntimo e individual de auge cultural” precisa existir e pulsar dentro dos revolucionários para que a sociedade existente possa parir a próxima, produzindo rechaço a toda podridão que a ideologia burguesa patriarcal produz, da qual a gordofobia e a pressão estética que pressionam e aprisionam os corpos é parte,dando-lhe as bases, que se combina justamente com a necessidade de avanço econômico estrutural, o que inclui batalhar pela não reprodução da ideologia burguesa perante os corpos humanos e a defesa da sua diversidade e livre desenvolvimento desde já.

O adoecimento físico e psicológico dos transtornos alimentares e da gordofobia é parte de uma longa cadeia de sofrimentos e violências às quais estão submetidas as mulheres como consequência do casamento entre o patriarcado, anterior ao capitalismo, e do próprio sistema capitalista, que coloca para a destruição da opressão às mulheres a necessidade de uma revolução socialista. Parte de construí-la envolve assegurar as melhores condições para que as mulheres trabalhadoras, as que mais sofrem em silêncio com esta opressão, possam estar na linha de frente, mover este desejo íntimo e individual de auge cultural e compreender, se sensibilizar e combater a reprodução da ideologia burguesa patriarcal que quer as mulheres com o patriarcado entalado na garganta, sendo os transtornos alimentares parte dos problemas da vida cotidiana.

Esta espécie de problemas,Trotski condenava a passar pelas pedras do moinho da consciência proletária coletiva, como forte moinho que dominará tudo que lhe seja dado para moer e é nesta perspectiva estratégica que apostamos, e nos colocamos na batalha de afinar as pedras deste moinho.




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