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Debates | Tirando o chapéu para Bolsonaro: como fica a esquerda que apoiou Pedro Castillo?

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

sexta-feira 4 de fevereiro de 2022 | Edição do dia

Pedro Castillo, presidente do Peru, decidiu encontrar-se em clima de harmonia com ninguém menos que Jair Bolsonaro, ícone da extrema direita trumpista na América Latina.

Mesmo para aqueles que foram dispensados pela natureza do dom da boa memória, não é difícil lembrar que Bolsonaro foi sustentador férreo de Keiko Fujimori na disputa eleitoral de 2021. Bolsonaro, entusiasta da continuidade da herança ditatorial do fujimorismo no Peru, que idolatra Pinochet e Stroessner, foi recebido com amizade por Castillo, com quem disse ter “todas as diferenças superadas”.

"Nós queremos uma América do Sul livre [...] Nós podemos até ter uma boa relação se a democracia impera de fato no seu país", disse Bolsonaro, pouco antes de receber Castillo para um encontro bilateral em Porto Velho, Rondônia, estado que faz fronteira com o Peru. “Tudo superado”, acrescentou, antes de iniciar negociações para estabelecer dois corredores logísticos entre Brasil e Peru. Castillo anunciou que receberá Bolsonaro em julho de 2022, na expectativa de aproximação dos dois governos.

A modificação do pêndulo político latinoamericano não favorece as pretensões políticas de Bolsonaro, vendo o capital financeiro que o apoiou em 2018 agora migrando para a figura de Lula, como amdinistrador dos ajustes implementados pelo regime do golpe institucional. E é nessa dificuldade que Pedro Castillo lança uma corda de salva-vidas a Bolsonaro.

Distintas correntes da esquerda brasileira lançaram seu apoio a Pedro Castillo nas eleições, com o argumento de que “era necessário derrotar a extrema direita nas urnas”. O PSTU (através de sua corrente peruana, o PST) chamou voto em Castillo dizendo que “a campanha de Castillo expressava eleitoralmente uma esperança de mudança e diante dos ataques infames de Fujimori, empresários e grandes meios de comunicação que veem seus interesses ameaçados”. Embora Castillo tivesse deixado claro que faria acordos com empresários e a direita, que não faria em seu “plano econômico estatizações, expropriações, confiscos de poupança, controles de câmbio, controles de preço ou proibição de importações”, o PSTU salvava a alma com a ressalva de que precisaria ser um governo “com independência de classe”…

O MES/PSOL explicava seu apoio a Castillo dizendo que o professor era “uma nova oportunidade para a esquerda peruana”, com inúmeros artigos saudando sua guinada “firme para a esquerda”, ou tocando a melodia do “quem tem medo de Pedro Castillo?”, pergunta que o regime burguês peruano respondeu com gracejo. O Resistência, franco apoiador no Brasil de um Lula “com um programa anticapitalista” ecoou a mesma cantilena no Peru, animado pela ideia de que “a vitória de Castillo possa alentar a mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras, da juventude e dos movimentos indígenas, feministas e ambientalistas, movimentos LGBTQI+” (um candidato que já então se opunha ao direito das mulheres ao aborto e ao matrimônio homoafetivo). Agora todos assistem ao abraço de Castillo e Bolsonaro. Onde esconder a cabeça?

Seria difícil igualar a lírica do PCB em favor de Castillo. Em particular, Jones Manoel foi destacado para o papel de trovador oficial do partido, e demonstrou competência na capacidade de previsão. Sem qualquer interesse pelas evidências do seu programa liberal de campanha, Jones defendeu Castillo porque “não queria outro governo alinhado com Bolsonaro”.

A vida prega peças amargas. Jones também anunciou que “não viu provas” de que Castillo era conservador no tema das opressões, embora as provas estivessem estampadas naquilo que, em períodos eleitorais, vulgarmente se conhece como “discurso de campanha”. Não contente, Jones Manoel parabenizava Castillo, já presidente, por não ter escolhido “um Palloci ou Henrique Meirelles” para o seu gabinete...

Mas e o liberal Pedro Francke, então ministro da economia, que eliminou qualquer noção de ataque aos interesses dos capitalistas, batendo o martelo em que não haveria aumento salarial no Peru? Já então, Castillo integrava em seu gabinete Oscar Maúrtua como ministro das relações exteriores, um personagem que havia apoiado a ofensiva golpista de Guaidó na Venezuela. E o que dizer do caráter “anti-imperialista” que Jones encontrava no governo peruano? Castillo e seu primeiro-ministro Guido Bellido haviam aprovado a entrada das forças militares dos Estados Unidos em território peruano. Poucos meses depois, Castillo nomeava o empresário xenófobo e misógino Ricardo Belmont como seu conselheiro presidencial e Daniel Salaverry, neoliberal de direita, para a chefia da empresa estatal do petróleo. “Nem Palloci nem Meirelles”...

Jones Manoel provavelmente ainda “está buscando as provas” do giro à direita, mas a realidade fornece sua ajuda: trata-se de um governo com um gabinete que agrada até mesmo Guedes e Bolsonaro.

Em sua reconfiguração ministerial, Castillo foi mais à direita. Deu deu vida a um gabinete ministerial formado principalmente por figuras que garantiram o aprofundamento das políticas neoliberais e a manutenção do regime fujimorista de 1993. Exemplos são Héctor Valer Pinto, Alfonso Gilberto Chavarri Estrada, que é vinculado ao narcotráfico, e o novo ministro da economia, o neoliberal Oscar Miguel Graham Yamahuchi, que serviu distintos governos direitistas.

A coalizão Nuevo Perú de Verónika Mendoza, dentro da qual o MES possui sua corrente irmã no Peru, foi deixado de lado e perdeu os ministérios que adquirira na fase anterior do governo Castillo (detinham os ministérios de Economia e Finanças e o Ministério da Mulher e das Populações Vulneráveis). O neorreformista Nuevo Perú foi condescendente até aqui com todo o giro à direita do governo Castillo, até serem ejetados pelo próprio presidente.

A Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), organização irmã do MRT no Peru, ao mesmo tempo em que esteve na linha de frente do combate a Keiko Fujimori e à extrema direita, alertou contra as ilusões no nacionalismo reformista de Castillo. A defesa clara contra as manifestações golpistas do fujimorismo, que não reconheciam a derrota eleitoral, assim como o chamado para que os trabalhadores, jovens e indígenas fossem às ruas defender o resultado das urnas, estava em sintonia com o rechaço ao conteúdo pró-capitalista do programa de Castillo, não chamando voto no atual presidente em defesa da independência de classe dos trabalhadores. Em sua declaração antes do segundo turno, dizia que “Não podemos perder de vista que a luta contra a grande burguesia, suas instituições e seus partidos, que Keiko representa neste segundo turno, não se reduz ao campo eleitoral. Por isso, para além de quem vencer as eleições, se realmente queremos desmantelar o legado do fujimorismo expresso na constituição de 1993 e na implementação do modelo neoliberal, é urgente que os explorados e oprimidos se organizem em uma grande frente unida de trabalhadores, camponeses, professores, estudantes, mulheres e desempregados”.

Da mesma maneira, desde as eleições a CST vem batalhando para reagrupar a vanguarda dos trabalhadores e estudantes ao redor de uma política de independência de classe, atacando duramente o franco curso direitista do governo Castillo, como se verifica na seção peruana do La izquierda Diario. Onde estão as críticas – ainda que a posteriori – da esquerda brasileira que apoiou Castillo?

Não se trata de um tema restrito ao Peru. Esse epsiódio político diz respeito à compreensão (ou não) de que tipo de batalhas é necessário dar na América Latina a fim de enfrentar verdadeiramente a fato a extrema direita. E que tipo de articulação programática, animada pela independência de classes, é necessário apresentar para superar pela esquerda os velhos reformismos nacionalistas latino-americanos que abriram caminho para a direita.

Para nomear outro país da região, no Chile o triunfo de Gabriel Boric não levou a responder nenhum dos problemas estruturais que levaram à rebelião contra a herança pinochetista em 2019; pelo contrário, Boric encabeça uma coalizão junto ao Concertacionismo (Partido Socialista e Democracia Cristã) e o social-liberalismo que governou o Chile pelos últimos 30 anos, em comunhão com a direita (não se procedeu nem sequer à liberação dos presos políticos de Piñera). No Brasil, a campanha de Lula está animada pelo mesmo projeto de conciliação de classes que levou o país ao golpe institucional, nos marcos de um projeto de país que, ao buscar administrar a agenda econômica pós-2016, se fundamenta nos mesmos pilares que oxigenaram as forças políticas bolsonaristas: a precarização do trabalho, muitas das privatizações dos serviços públicos, a penetração das multinacionais, a reprimarização exportadora com especialização em commodities, a dependência do capital financeiro internacional.

A batalha contra a extrema direita na América Latina (como em qualquer lugar do mundo) exige que a classe trabalhadora empunhe um programa anticapitalista com independência de todas as variantes patronais. A atuação político-programática da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade (FITU), terceira força política nacional na Argentina (sendo nas ruas a principal força de luta contra os acordos com o FMI e os ajustes aos trabalhadores), é um grande exemplo de luta pela independência de classe e por um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo. No Brasil, essa disjuntiva será chave.

A resposta à como fica a esquerda que apoiou Castillo parece enterrada no solo, junto à cara dessa mesma esquerda.




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