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Sobre Bolsonaro ou um negacionista que vestiu a máscara

Douglas Silva

Sobre Bolsonaro ou um negacionista que vestiu a máscara

Douglas Silva

A decisão monocrática do Ministro Edson Fachin e o discurso de Lula parecem ter gerado um tremor no negacionismo de Bolsonaro e seus filhos. Não porque tenham, subitamente, se tornado defensores ávidos das vacinas e máscaras, apesar de sua comitiva ao estado sionista de Israel se ver obrigada a vesti-las, mas, sim, como parte dos cálculos de quem, aparentemente, sentiu o impacto do retorno de Lula com seu discurso de conciliação para o empresariado e políticos brasileiros. Portanto, frente ao recorde de mortes em um dia pela covid-19 e a crescente possibilidade da restituição dos direitos políticos de Lula, o clã Bolsonaro corre em direção à falsificação da história de que sempre foram entusiásticos defensores da vacina.

Todavia, o negacionismo de Bolsonaro e da extrema direita poderia até ser cômico se não fosse responsável pelas centenas de milhares de mortes no país do regime do golpe. Chegando, somente na última semana, a 1.940 mortes em apenas 24 horas e quase 280 mil mortes desde o início da pandemia. Bolsonaro foi um exímio representante do negacionismo de uma extrema direita que não fez outra coisa que não fosse preparar o terreno de uma “tragédia” anunciada. O capitão, que chegou a chamar a covid-19 de uma “gripezinha”, foi o garoto propaganda dos mais variados métodos sem comprovação científica ou diretamente ineficazes, como a cloroquina e a ivermectina. Durante um dos momentos mais críticos em Manaus, com falta de oxigênio nos hospitais e pacientes morrendo nos corredores, o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, esteve na capital amazonense para divulgar o “kit cloroquina”.

Com a chegada da vacina, ainda que controlada pelas grandes indústrias farmacêuticas e seus capitalistas pelo mundo, Bolsonaro manteve sua postura negacionista e colocou sob sigilo (por até 100 anos) seu cartão de vacinação. Não bastando tal medida, responsável por jogar lenha no fogo de setores antivacina, o presidente também difundiu a possibilidade de que as pessoas vacinadas poderiam virar jacarés (sic!). Mas a postura de Bolsonaro vai além dos discursos megalomaníacos, o governo federal sequer garante vacinas para toda a população. O auge da pandemia, que faz o Brasil ser visto como uma ameaça mundial, e tem ceifado cerca de 2 mil vidas diariamente está sendo responsável pela maior queda de popularidade de Bolsonaro. Em pesquisas recentes 61% dos entrevistados opinam que a atuação de Bolsonaro frente o coronavírus é péssima, enquanto 63% declararam que a economia segue por caminhos errados.

Agora, a partir da decisão de Fachin e do discurso de Lula no sindicato dos metalúrgicos no ABC, na última semana, Bolsonaro e seus filhos parecem sentir a pressão por um disciplinamento relativo e tardio sobre a linha mais negacionista do clã e de sua extrema direita. Uma pressão que mudou o tom e os obrigou a acrescentarem mais uma arma em seu arsenal: um “zé gotinha miliciano”, com capa de bandeira do Brasil, segurando sua nova arma, a vacina. A imagem compartilhada por seu filho, Eduardo Bolsonaro, no twitter, chegou a ganhar repercussão nas redes, mas não pela ilustração em si e, sim, pelo duplo compartilhamento. A primeira vez, Eduardo compartilhou a imagem com a frase “nossa arma agora é a vacina” e, em seguida, apagou compartilhando novamente sem a palavra “agora”. Anedota a parte, a mudança discursiva de posição sobre a vacinação está presente apenas como demagogia, já que o Brasil segue sem uma vacinação em massa (menos de 5% da população foi vacinada) e com um crescente número de contaminados e mortos pelo coronavírus, marca – ao menos – uma viragem nos tuítes da família bolsonarista.

Em escala internacional, Bolsonaro também foi obrigado, recentemente, a assistir a derrota eleitoral de seu aliado imperialista, Donald Trump, marcando um nítido refluxo do populismo de extrema direita internacionalmente e da linha negacionista do ex-presidente dos EUA, o qual chegou a defender injeções de desinfetante contra coronavírus, uma declaração tão irresponsável que levou a inúmeros casos de intoxicação na cidade de Nova York. No caso brasileiro, com Bolsonaro mais debilitado do que em outros momentos da pandemia, o negacionismo bolsonarista oferece uma imagem ao mundo de um país como risco internacional, outro fator que serve de acelerador da crise e de instabilidades para o governo.

Desta forma, na defensiva, Bolsonaro e os filhos, se viram punidos no último período por enquetes de opinião que atestam uma queda na popularidade do presidente. Agora, principalmente, com o agravamento da crise, o fim do auxílio emergencial, ainda que o mesmo volte para metade dos beneficiados e com valor muito reduzido em troca de mais ataques pela PEC Emergencial do governo, a trupe busca manobrar o discurso negacionista em direção à defesa das vacinas e das máscaras, aparecendo, logo após o discurso de Lula, vestindo-as com seus ministros. Porém, ao mesmo tempo em que Bolsonaro passou a dizer que sempre defendeu a vacina, o Ministério da Saúde admitiu que a campanha nacional de imunização pode parar pela escassez dos imunizantes. A prática é o critério da verdade e, na prática, continuamos sem vacinas.

Ainda que possa soar de forma cômica ou até mesmo lunática o negacionismo da extrema direita brasileira, não se pode perder de vista que o fundamental das posições das alas mais reacionárias do regime se constrói em bases nada risíveis, pois, ainda que seja piada para o mundo todo, como foi na viagem a Israel, o bolsonarismo tem feito mais do que negar a pandemia como seu cartão de visita. A saber, possuem uma infinidade de ataques aos trabalhadores, centenas de milhares de mortes causadas, não apenas por negar o caráter mortífero da pandemia, mas, também, por suas medidas econômicas sustentadas pelo regime golpista, como a PEC do teto de gastos para saúde e educação – aprovada ainda por Temer –, privatizações e a precarização do trabalho como marca do agravamento da crise econômica e social atual sob um novo regime erguido sobre os destroços da Nova República.

Negacionismo, fake news, máscaras e a “guerra cultural”

Na primeira viagem internacional de Bolsonaro aos EUA, após as eleições de 2018, com Trump ainda na Casa Branca, o capitão – em jantar na embaixada do Brasil em Washington, com Olavo de Carvalho e Steve Bannon ao seu lado – ergueu a taça para um brinde enquanto dizia: “nós temos que desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa, para depois recomeçarmos a fazer”.

O brinde e o discurso de Bolsonaro simboliza a largada daquilo que chamam de “guerra cultural”, travada pela extrema direita brasileira. Uma guerra, sustentada por “intelectuais” da estirpe de Olavo de Carvalho e parte dos generais, como o falecido Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, que mira no suposto combate aos resquícios de imaginários governos de esquerda que, supostamente, munidos da teoria do intelectual comunista italiano, Antonio Gramsci, estariam presentes desde a Rede Globo (a mesma emissora entusiasta do golpe de 2016) até o Partido dos Trabalhadores e Lula. Da “criação do vírus da China comunista” até o “politicamente correto”, a extrema direita parece absorvida por um universo único e paralelo, repleto de comunistas beneficiadores de banqueiros e defensores da propriedade privada – um paradoxo que não se dão ao luxo de responderem. Diante de tais ideias, talvez o sardo dissesse: “somente tu, estupidez, és eterna” [1].

Entretanto, as raízes da ultradireita brasileira, saída das sombras com Bolsonaro, podem ser encontradas no mesmo país de sua primeira viagem internacional, os EUA. A ultradireita conhecida como paleoconsertives (paleoconservadores), que vieram à luz durante a crise de 1929 contra as orientações keynesianas do New Deal, desdobrando-se depois no pensamento neoconservador das décadas de 1980 e 1990, compartilhava de uma visão muito particular de que:

[...] tanto Gramsci quanto Adorno e Horkheimer estariam decididos a destruir os valores ocidentais, ou seja, estadunidenses, não através da tomada do poder e da socialização dos meios de produção, mas da cultura. Disso deriva, em partes, a obsessão da ultradireita com a pretensa guerra cultural e a tentativa de ideologizar a ciência e as universidades pela direita, com grandes serviços prestados pelos neopentecostais. [2]

O bolsonarismo parte da noção de que a ditadura militar brasileira teria perdido a guerra cultural para o comunismo, o que sustenta, hoje, a posição de quem acredita estar frequentemente num combate contra os inimigos vermelhos num Brasil atacado pelo vírus chinês. Desta forma, a “guerra cultural” encontra os ataques econômicos, não como cortina de fumaça para esconder os últimos, mas como arsenal de combate de um anticientificismo alimentado pelos inúmeros cortes nas universidades, uma “agenda de costumes” patriarcal, que anda de braços dados com a crescente subordinação das mulheres aos postos de trabalhos mais precários e serviços domésticos intensificados com a pandemia.

Para enfrentar o negacionismo é preciso reverter o regime do golpe e não aceitá-lo

Enquanto os bolsonaristas se debatem em grupos de WhatsApp com informações falsas sobre a situação pandêmica, a falta de oxigênio em hospitais públicos, a inexistência de uma eficaz campanha nacional de vacinação, que garanta vacina à todos, parece distante do radar do governo federal e descobre um flanco fraco de um governo que pode, em meio ao agravamento da doença em escala superior ao início da pandemia e seus reflexos no aprofundamento da crise econômica e da carestia de vida, sentir movimentar as placas tectônicas de possíveis levantes sociais. Um horizonte com o qual nenhum burguês, brasileiro ou estrangeiro, gostaria de se deparar ao abrir as cortinas de suas mansões.

Antes mesmo da pandemia, no final de 2019, como aponta Ricardo Antunes em seu livro “Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado” [3], mais de 40% da classe trabalhadora brasileira foi jogada na informalidade. Hoje, quando a pandemia parece entrar numa fase mais brutal do que no início do ano passado, assistimos a falta de leitos de UTIs, o colapso do sistema de saúde, o qual chega a ter ocupação de quase 100% em vários estados e municípios, o aumento do desemprego e da precarização agravados desde o golpe de 2016.

Todavia, não existe caminho que esteja fechado por ora. Afinal, a restituição dos direitos políticos de Lula pode ser uma aposta factível para setores da burguesia, não tão preocupados com uma suposta “guerra cultural”, que buscam se antecipar a luta de classes e resgatam quem sempre se fez um bom catalisador das mesmas, para evitá-la. Mas, ainda que seja uma possibilidade, também Bolsonaro, e todo o movimento que veio fazendo nos últimos tempos de aproximação com o Centrão, por exemplo, não está fora do tabuleiro.

Bolsonaro, sem sombra de dúvidas, se transformou na figura mais execrável diante da pandemia e de seu negacionismo escrachado para todos que quiserem ver. Entretanto, a chegada do capitão ao Planalto não se deu por um passe de mágica. Fruto podre do golpe de 2016, o presidente teve apoio, inclusive, de muitos políticos da direita dita tradicional, bem como [bolso]Doria em São Paulo. Os governadores, que hoje por conta dos efeitos da pandemia buscam dissociar-se de Bolsonaro, tampouco oferecem qualquer saída para a crise pandêmica. Sequer garantem um auxílio que possibilite os trabalhadores e o povo passarem pela crise que está colocada. Por isso, derrotar Bolsonaro passa, também, por se enfrentar com o regime do golpe de conjunto, lutar por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana que seja parte de organizar os trabalhadores para fazer emergir a vontade da maioria explorada e oprimida do país. O que passa, necessariamente, pelo combate dos privilégios de uma minoria de parasitas burgueses, juízes, militares e políticos que se apoiam nas instituições de uma "democracia golpista", enquanto fecham os olhos para a responsabilidade que possuem por Bolsonaro.

Lutar por esta saída significa contrapor-se aos interesses, inclusive, daqueles setores burgueses com os quais Lula diz ser possível construir uma Frente Ampla, dos políticos do Centrão aos partidos herdeiros da ditadura, golpistas de carteirinha responsáveis por cada ataque aos trabalhadores durante o regime golpista, a saber, a própria Reforma da Previdência de Bolsonaro aprovada com a ajuda de ninguém menos do que Rodrigo Maia (DEM). Tal consigna poderia ser responsável, a partir da luta, por anular todas as reformas, privatizações e ataques oriundos do golpe institucional. Uma posição que se encontra anos luz dos interesses de todas as variantes burguesas e suas instituições, inclusive aquelas que garantiram a prisão arbitrária de Lula e agora buscam trazê-lo de volta ao tabuleiro unicamente em benefício dos interesses de facções de classes burguesas. Portanto, uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana é chave para combater todo o regime do golpe, e não somente Bolsonaro, revertendo todos os ataques golpistas ao invés de aceitar suas bases.


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FOOTNOTES

[1Il Grido del Popolo, 4 de maio 1918 - disponível em https://www.resistenze.org/sito/ma/di/cg/mdcgba13-008114.htm

[2ISHIBASHI, Simone. A invenção do “marxismo cultural” e do “politicamente correto”, e seu uso pela ultradireita e militares no Brasil. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/A-invencao-do-marxismo-cultural-e-do-politicamente-correto-e-seu-uso-pela-ultradireita-e-militares

[3ANTUNES, Ricardo. Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo; 2020.
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Douglas Silva

Professor de Sociologia
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